MIND THE GAP – Atenção à Diferença

Uma reflexão sobre o aumento nas diferenças entre o Brasil e o mundo desenvolvido

 

“Mind the gap” é um aviso nos metrôs londrinos, quer dizer “atenção ao vão”, é para que se tome cuidado com o espaço entre o trem e a plataforma, você houve tanto que grava, e fiquei pensando em diferenças. Tive a sorte na vida de poder ir ao mundo desenvolvido duas vezes, em 1993 e agora, 30 anos depois. Foi inevitável pensar nas diferenças entre o Brasil e a Europa, e em minha opinião, elas aumentaram a favor deles. Esse texto é sobre o que mudou, porque isso aconteceu e o que se pode fazer.

 

Em 1993, o Brasil caminhava finalmente para estabilizar a inflação e a ter alguma estabilidade política e a Europa consolidava sua unificação, iria criar o Euro. Era uma época em que se anteviam progressos nas regiões e eles vieram para ambos. E em muitos aspectos, a diferença cresceu.

 

O bem-estar da população

 

Na primeira vez no mundo desenvolvido, chamou muito a atenção não haver favelas, nem população de rua. Havia mendigos nos metrôs e locais turísticos, ambulantes ilegais e em algumas cidades andar à noite dava insegurança. Hoje, os mendigos sumiram dos trens (ainda existem nas ruas e entradas de estações, muito menos), o que chama mais atenção é não haver tanta gente que imediatamente você identifica como pobres. A pobreza existe, mas é muito menor e a sensação é de que se reduziu nesses 30 anos, apesar dos milhões de refugiados que lá chegaram, cuja maioria foi acolhida, vê-se indianos, paquistaneses, asiáticos, árabes em roupas normais, trabalhando no comércio igualzinho aos europeus.

 

Aqui, a pobreza não diminuiu. Naquela época, eram 80% de pobres, mais ou menos a mesma proporção que há hoje, se eram 126 milhões, hoje são 168 milhões, ou seja, 42 milhões de pobres a mais, sendo que muitos mais deles passaram a morar em cidades, estão mais visíveis. O resultado é pobreza em todos os bairros e cantos da cidade, refletida nas pessoas vestidas de trapos, pedintes, vendedores ambulantes nos sinais ou em barraquinhas, desocupados ou subempregados, milhares de motoqueiros que vivem para atender os mais ricos. Nós melhoramos, em 1993 muito menos deles tinham acesso à escola, não existia programas de auxílio emergencial, havia menos saúde (o SUS surgiu em 1990 tinha menos estrutura), havia menos transporte público e menos segurança. Muito foi feito, porém, insuficiente para reduzir a pobreza.

 

Não é só a quase ausência de pobreza que chama atenção, melhorou a qualidade de vida lá. Se na primeira viagem havia muitos engravatados, andando rápido para o trabalho parecendo os estressados americanos, hoje cresceu a proporção de pessoas na rua fazendo turismo ou em atividades de lazer, nos parques, andando despreocupadamente em bicicletas ou patinetes, os bares e restaurantes cheios a qualquer hora do dia, gente do mundo todo. Eu não lembrava de ciclofaixas por lá, agora estão em todo lugar.

 

Se no passado a comparação do metrô nos era favorável ao menos na limpeza, hoje os deles são tão limpos quanto, e com muitas linhas para todos os pontos das cidades, não parece ser necessário ter carro, pessoas de todos níveis sociais usam transporte público. As cidades se tornaram mais seguras, dá para andar em qualquer lugar de noite, o único risco são batedores de carteira, com a vantagem que lá não roubam celulares e menos ainda a mão armada.

 

O turismo ficou muito mais fácil, desde passar na alfândega como obter informações de tudo. São tantos turistas que até os franceses que detestavam falar inglês se renderam à necessidade e nos atendem sem problemas. As comunicações ficaram muito melhores, antes ligar para o Brasil era um tormento, hoje com um bom celular faz-se tudo, fala-se por zap com as pessoas daqui a qualquer hora, com o Google Maps vai-se a qualquer lugar, com apps tradutores é possível falar com os que não entendem nenhuma língua que você fale, traduz-se cardápios. É tão mais fácil que são muito menos excursões, mesmo japoneses e chineses conseguem viajar sem ajuda de guias. Ruas muito bem sinalizadas, bem como transporte público.

 

Não quer dizer que seja o paraíso, eles têm medo de terroristas, tanto que não é incomum ver guardas com metralhadoras nas ruas e de vez em quando esvaziam lugares com medo de bombas, um problema raro e que quando ocorre afeta pouca gente, no entanto assustador. Também há questões sociais, tem cidades que recebem tantos turistas que as atrações da cidade ficam só para estes, quase todas com filas, o cidadão não consegue usar parques menores, prédios inteiros viraram Airbnb e muitas cidades estão criando impostos para cada dia que o turista fique lá. Imagino o que deve ser no verão, a alta temporada. Os europeus querem mais, é comum haver greves por aumento de salário, em quinze dias que lá fiquei soube de duas greves de trens.

 

A busca por maior qualidade de vida é muito mais foco dos europeus do que o crescimento econômico, enriquecer a qualquer custo, obsessão dos americanos. As pessoas lá buscam ter mais tempo para si, dedicam tempo dos seus dias a fazer esportes, vimos muita gente mais velha absolutamente saudáveis e já há países cogitando mudar a semana para quatro dias de trabalho e três de lazer. Imagine o quanto a vida das pessoas melhoraria!

 

Por que a diferença aumentou?

 

Não sou cientista, no entanto, tenho minha teoria. Eu diria que as principais causas são distribuição de renda e políticas de integração das pessoas e economias. A gente não entende sem sair daqui quão perversa é a concentração da renda em muito poucos. Segundo estudos, 5% dos brasileiros têm 95% da riqueza, uns 15% estão na classe média e os 80% restantes são pobres. Ter 168 milhões de pobres exige enormes investimentos para que essa população sobreviva, nenhuma política social consegue atender todos que precisaria.

 

Há ricos, classe média e pobres em qualquer lugar do mundo. Nos países desenvolvidos também, a diferença é que neles a maioria das pessoas está na classe média. Isso quer dizer que são parcialmente independentes de auxílio do governo, produzem mais riqueza por terem mais renda e que consomem todo tipo de produtos e serviços. Isso quer dizer que países com populações muito menores têm mercados consumidores maiores, pois muitos brasileiros consomem apenas habitação, alimentos, vestuário, remédios e serviços básicos. Não existe país desenvolvido com maioria da população pobre.

 

Nos países desenvolvidos, como há menos necessitados, é mais fácil fazer políticas públicas efetivas, que resolvam os problemas das pessoas, dar educação e saúde de qualidade, porque muitos estão consumindo e pagando impostos que financiam as coisas que ajudam pessoas a saírem da pobreza. E cada um que sai dela, vira consumidor, passa a fazer a economia crescer mais.

 

Outros fatores são as políticas de integração de pessoas e países. A Europa está totalmente integrada, pessoas e investimentos de todos os países circulam entre as várias cidades, levando turistas e consumo que gera crescimento, nos últimos 30 anos mais de 10 países entraram para a União Europeia, trazendo investimentos, trabalhadores qualificados, diversidade de pessoas e ideias. Vieram também imigrantes pobres e refugiados, como eram proporções pequenas das populações, muitos foram acolhidos, conseguiram empregos e hoje estão tão integrados como os imigrantes que vieram ao Brasil no início do século passado, em menos tempo.

 

Nós aqui não fizemos progresso algum em melhorar a distribuição de renda e progredimos muito menos que lá em integração com outros países, a maior parte de nossa relação comercial foi com países da América Latina, mais pobres do que nós, e importação de produtos industrializados de asiáticos, sobretudo China, e de bens de alto valor dos EUA e da Europa, enquanto continuamos vendendo para eles alimentos e minerais, que sequer são industrializados aqui, mas no exterior, gerando muito mais riqueza lá. Sem auxílio e investimentos de outros países, tudo fica mais difícil.

 

Mudar do Brasil?

 

Há várias alternativas, uma delas é ir viver no mundo desenvolvido, não esperar Brasil melhorar. Há uma quantidade impressionante de brasileiros lá, a maioria como turistas. Se há 30 anos não passava um dia sem encontrar conterrâneos, agora não se passa uma hora sem ouvir alguém falando nossa língua. Então, o que eu vi, muitos viram, entendem a diferença.

 

Também há muitos brasileiros trabalhando e/ou estudando lá, e cada vez mais querem ir. Há escolas de elite em que mais de 30% dos alunos vão fazer cursos no exterior. Essa gente está se qualificando, pode trazer conhecimentos de volta ou, se ficarem, podem contribuir enviando recursos ou vindo para cá de vez em quando. E as grandes cidades têm restaurantes e comunidades de brasileiros, quando bate a saudade ou se precisa de ajuda, nada melhor do que poder buscar ajuda com conterrâneos e falar português.

 

Hoje, existem mais chances do que nunca para quem quiser viver fora, os países ricos estão envelhecendo e oferecendo oportunidades de estudo e trabalho para jovens que queiram ir, conheço muitos que foram e é uma decisão que respeito e exige uma coragem que admiro.

 

Há 30 anos, eu me perguntei se deveria sair do Brasil. Nunca tive oferta, poderia ter tentado, eu sabia que para viver lá tinha de ter renda em moeda local, o que seria muito difícil, indo sem emprego estaria entre os pobres, tudo seria mais complicado. Eu acreditava que podia progredir aqui onde tinha a vantagem e sorte de estar na classe média,  estudo e o conhecimento a meu favor e minha esposa também queria ficar.

 

A decisão econômica foi acertada, criamos uma família e todos que amo estão aqui. Voltando lá hoje, não lamento minha decisão. A vida lá melhorou, no entanto, a minha aqui também e o que realmente importa é ter as pessoas de que gosta por perto e no meu caso, todas elas e tudo que construí aqui permanece.

 

Outro ponto é que tenho um idealismo difícil de entender, uma vontade de contribuir para que meu país também melhore. Virei servidor público e sigo estudando tentando aumentar minhas chances de ajudar para que, senão eu, meus filhos e quem sabe no futuro netos que aqui vivam tenham uma vida melhor. Já não tenho mais idade para começar tudo de novo, as chances de progredir são maiores onde tenho uma base. E, por último, tenho uma esperança quase ingênua de que as coisas podem melhorar, e sobre isso que quero falar.

 

É possível mudar o Brasil?

 

Sim, nunca houve tantas chances para isso em nossa história. O conhecimento flui entre os países, podemos conhecer o que foi feito, desde coisas da vida das pessoas comuns, até estudar políticas públicas de sucesso, aprender com os outros países, desenvolvidos ou não, criar novas relações com eles, receber gente que queira viver aqui. Se nossas chances de crescer pela integração com outros países são menores, temos uma enorme oportunidade que é nossa grande população, pode nos transformar num excepcional mercado, capaz de atrair investimentos do mundo todo.

 

Desenvolver o Brasil passa por mexer na distribuição de renda. É preciso encontrar formas de transferir um pouco da riqueza dos 5% que têm 95% da riqueza para tirar partes dos 80% de pobres e transformá-los em classe média. Se conseguirmos colocar na classe média apenas 1% da população já são dois milhões de pessoas, que vão se tornar consumidores e contribuir muito mais com o desenvolvimento. Com mais pessoas no mercado interno, as empresas vendem mais, o governo arrecada mais e pode tirar ainda mais gente da pobreza. Podemos facilmente voltar a crescer mais de 5% ao ano. Imaginem se fosse possível mover 10% dos pobres para a classe média, seria um mercado interno com o mesmo número de pessoas que o Chile ou duas vezes o de Portugal. Muitos poucos países têm esse potencial humano.

 

Falar é muito mais fácil do que fazer, os mais ricos são mais de 10 milhões delas, dominam empresas, política, imprensa, o topo do serviço público, controlam absolutamente tudo no país. Não se pode força-los a mudar, é preciso convencê-los de que para quem ganha muito, nada altera pagar um pouco mais de impostos porque permanecerão ricos, e demonstrar que se aumentar o mercado interno, eles mesmos ganharão ainda mais.

 

O momento chegou, depois de décadas, a discussão da Reforma Tributária está na pauta. Por enquanto, o que se fala é em unificar impostos e simplificar cobrança de impostos, pauta boa, porém com vantagens principalmente para empresários. Porém, discretamente, com o aumento da isenção do Imposto de Renda de Pessoa Física, voltamos a discutir o ganho dos assalariados, que é o que faz diferença e pode realmente tirar pessoas da pobreza.

 

As probabilidades são contra nós, o mais provável é que o Brasil não mude muito, seus conflitos permaneçam, que as pessoas foquem mais nas diferenças e em combater quem pensa diferente delas do que em aprender a conciliar acordos e que o país siga progredindo pouco. Todavia, probabilidade não é destino, é possível que seja diferente.

 

Há um mundo melhor lá fora, países que reduziram desigualdades, crescem e vivem melhor do que nós. Há menos de 100 anos, os europeus se destruíam em guerras, precisaram superar diferenças e aprender a construir juntos. Esses mesmos países discutiram e mudaram seus impostos e isso ocorreu principalmente desde a década de 50-60, o maior progresso da Europa é recente, tem menos de 40 anos, pouco tempo para países. As probabilidades também eram contrárias a eles, a vontade de mudar prevaleceu. O que eles fizeram para melhorar está registrado, é entender, aprender e adaptar para nossa realidade. Ninguém tem certeza sobre o futuro, eu prefiro crer que será melhor.