Como negociar com um chefe armado: Cultura relata perseguição sob Bolsonaro
Como negociar com um chefe armado: Cultura relata perseguição sob Bolsonaro
Imagem: EVARISTO SA/AFP via Getty Images
Leonardo Sakamoto e Isabel Harari
"Muita gente chorou na primeira reunião que fizemos com a equipe simplesmente porque puderam desabafar."
O secretário-executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, resume à coluna o sentimento de servidores concursados e terceirizados para quem a troca de comando no governo federal significou mais do que uma mudança no foco das políticas. Representou também o fim de assédio institucional
A coluna ouviu, ao longo de três semanas, servidores públicos que trabalharam na Secretaria Especial da Cultura (durante a gestão Jair Bolsonaro a área perdeu o status de ministério) e em órgãos relacionados a ela nos últimos quatros anos.
Todos relataram um ambiente insalubre de trabalho com casos de assédio moral, perseguição laboral, demissões injustificadas.
A condição para serem ouvidos foi de anonimato, pois temem retaliações.
"Temos pela frente um processo não apenas de reconstrução do ministério, mas também de cura das relações, de cuidado com as pessoas", explica Tavares.
O comportamento da gestão Bolsonaro segundo ele, ajudou a gerar uma diáspora de servidores, com quase metade do corpo funcional migrando para outros ministérios.
Ele diz que a atual gestão está tentando trazer esses funcionários de volta.
Chefiaram brevemete a Secretaria Especial da Cultura nomes como o do dramaturgo Roberto Alvinm (exonerado após imitar Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Adolf Hitler, em um vídeo institucional) e da atriz Regina Duarte (que deixou o cargo após minimizar mortes e torturas cometidas pela ditadura militar).
O ator Mário Frias foi o que permaneceu mais tempo no posto, quase dois anos, saindo para concorrer ao cargo de deputado federal - ele foi eleito pelo PL de São Paulo em 2022. Sérgio Camargo (que chamou o movimento negro de "escória maldita") presidiu a Fundação Palmares por quase dois anos e meio.
Procurado, o deputado federal Mário Frias (PL-SP), ex-secretário especial da Cultura, não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Chefia do ministério andava armada
A reclamação de que o então secretário Mário Frias e alguns de seus subordinados faziam questão de mostrar que andavam com armas na cintura foi uma das mais ouvidas pela coluna.
"Como você faz uma reclamação ao chefe, discute um assunto com o qual ele não concorda, se ele coloca uma arma em cima da mesa ou fica limpando a pistola enquanto fala com você?", questionou um dos servidores ouvidos.
Outros quatro servidores deram depoimentos semelhantes. Lembraram que o fato de esses chefes terem porte ou serem policiais não justifica levarem armamento àquele local de trabalho. A ostentação, em sua avaliação, seria para "mostrar poder e intimidar funcionários".
Mário Frias tem porte de arma, desde dezembro de 2020, sob justificativa de que, como secretário especial da Cultura, precisava se proteger. Ele possui licença para uma pistola 9 mm.
'Comunistas' em todos os lugares
A área da Cultura era vista no governo Jair Bolsonaro como um campo de batalha para reduzir a influência de liberais e progressistas e abrir espaço para uma visão ultraconservadora em costumes e comportamento.
Tanto que os métodos e ensinamentos de Olavo de Carvalho, guru da extrema direita, são compartilhados por Roberto Alvim, Regina Duarte, Mário Frias e Sérgio Camargo.
Nos corredores da secretaria, circulava a informação de que havia um index de "possíveis comunistas" entre servidores, o que gerava medo entre os trabalhadores.
"Havia varreduras nas redes sociais. Muita gente não sabia porque estava sendo mandada embora, principalmente servidores terceirizados", afirmou um dos ouvidos pela coluna. "Os chefes ficavam desconfiados, achavam que estavam sendo grampeados", disse outro.
"Mandaram uma funcionária embora porque já estava lá há muito tempo e achavam que era uma espiã, apesar de não haver nenhum indício disso. E a pessoa era boa no seu trabalho", conta mais um servidor.
Falta de quadros técnicos e despreparo bolsonarista
Por conta da falta de quadros para ocupar funções técnicas e devido à desconfiança com relação aos funcionários públicos que já trabalhavam na área, o governo Jair Bolsonaro tornou mais lenta a gestão da Cultura.
Um servidor mostrou à coluna uma troca de mensagens com outro colega. Nela, narram que um dos chefes havia acabado de pedir duas novas assistentes que "não soubessem nada de cultura e nem conhecessem ninguém da área cultural".
Não raro, segundo os servidores, os cargos eram ocupados por pessoas sem qualificação para assumir determinados cargos públicos. "Pessoas que mal sabiam passar um e-mail eram empurradas para reuniões sobre políticas culturais sobre as quais não tinham ideia", afirma uma das fontes.
O despreparo levava ao atropelamento de processos, à perda de prazos. "Às vezes o que parecia má fé era despreparo", diz.
"Tudo tinha que ter anuência, mesmo coisas corriqueiras, como acessar outro departamento para buscar informações. Imagine trabalhar em uma empresa e, para pegar uma resma de papel, tem que dar mil justificativas como se fosse fazer mal a alguém", conta um dos servidores.
Isso é chancelado pelo secretário-executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, que avalia a estrutura da Secretaria Especial da Cultura como absolutamente verticalizada. "Pessoas passaram anos sem poder falar com o chefe porque só uma pessoa poderia ter contato com ele", afirma.
O retrato pintado por servidores que atuaram na área da Cultura sob o governo Jair Bolsonaro é de um empregador que não confiava em seus trabalhadores, tratandoos como inimigos - o que gerou uma situação estressante para os servidores e produziu um hiato nas políticas -culturais.
Mas também para os bolsonaristas colocados em postos de comando, uma vez que foram frequentes relatos à coluna de murros em mesas, portas batidas Cultura dificultou a vitória olavista.
Colunista UOL: Leonardo Sakamoto -