O GOVERNO DA ANARQUIA E DO ACASO

A humanidade se tornou grande e diversa demais para ser governada

 

Observe o mundo à sua volta. Quanto do que acontece é por vontade dos governantes de sua cidade, estado ou país? Cada vez menos coisas dependem destes e mais delas são causadas pela iteração ao acaso da ação individual ou de pequenos grupos de pessoas. O poder do Estado, das leis, políticas sobre as pessoas diminui. A sociedade é cada vez mais anárquica e o acaso torna-se mais determinante no curso da vida do que autoridades de qualquer tipo.

 

Ao contrário do que a palavra soa, anarquia não quer dizer bagunça. Quer dizer ausência de hierarquia, de autoridades e de governo. Significa as pessoas agirem por suas vontades e não pela de um líder. Houve um movimento político entre o final dos anos 1800 e início de 1900 que defendia o fim dos Estados. Mais de um século após sua criação e fracasso dos seus defensores, parece que a anarquia vai surgindo na prática e que os governos têm muito menor influência na vida das pessoas e a iteração ao acaso de grupos agindo de formas descoordenadas, cada um no seu rumo define mais nossa realidade do que os desígnios das autoridades. Quer divagar nesta ideia?

 

Talvez a maior autoridade do planeta seja o presidente dos Estados Unidos. Líder eleito da maior potência econômica e militar do mundo, deveria determinar como vivem milhões de pessoas. No entanto, nem no seu próprio país sua vontade e decisões são determinantes. Lógico que tem influência e muita, porém, não consegue impor suas decisões a todos porque simplesmente as pessoas não obedecem. Se há muitos que o apoiam, muitos outros lhe fazem oposição e outros são indiferentes a ele.

 

E não é só Biden, cada vez menos os presidentes dominam seus países, porque há outras alternativas e basta ter duas pessoas para ter opiniões diferentes. Os Estados Unidos se dividem em democratas e republicanos, o Brasil se divide entre petistas, bolsonaristas e nenhum dos dois. Nem ditaduras como a Rússia e a China têm aceitação plena. Putin e Xi Jinping precisam de mão de ferro para manterem-se no poder.

 

A perda de poder das lideranças e o fracionamento dos grupos estão em tudo, até na religião. No Brasil, onde a maioria das pessoas são cristãs, a liderança sobre esta fé já não é da Igreja Católica, há centenas de cultos evangélicos, cada um diferente. A própria Santa Sé abriga seguidores progressistas e conservadores com diferenças fundamentais de pensamentos. Isso para não falar de muçulmanos, budistas, xintoístas, umbandistas, ateus, agnósticos e milhares de outras crenças que mostram que nem o poder de Deus ou de um ser superior qualquer que seja seu nome é inconteste. Hoje sequer é maioria no mundo ocidental. Isso porque as pessoas creem em coisas diferentes e não existe poder capaz de unificar as crenças de milhões de pessoas.

 

Tampouco as leis mantêm seu poder de outrora. A diversidade da humanidade faz difícil uma regra ser sempre correta. Ninguém de bom senso pode ser contra o “Não matarás” como norma geral. Matar uma pessoa é na maioria das vezes errado e absurdo. O mandamento ditado por Deus a Moisés parecia absoluto, num tempo em que a povo hebreu tinha uns poucos milhares de pessoas. O crescimento da humanidade fez até esta norma geral corretíssima tornar-se questionável em alguns casos. Naquela época da lei provavelmente não havia serial killers, assassinos de aluguel, executores do crime organizado ou de milícias, pessoas que sozinhas matam dezenas de outras. Para estas exceções, uma única pena de morte salvaria muitas vidas. Quantos teriam sido salvos se Hitler tivesse sido assassinado antes de iniciar suas guerras?

 

Mesmo quando há acordo sobre leis e normas, o poder do Estado de fazer cumpri-las diminui a cada dia. Não é difícil controlar o trânsito numa rua num dia de semana. Com sinais, guardas, radares e multas, consegue-se que a maioria dos motoristas e pedestres sigam as normas. Porém, quando um simples engarrafamento surge, a frágil ordem desaparece, os motoristas invadem as faixas de ônibus, fazem contornos proibidos. Quando termina um jogo ou show, ou há manifestações, os pedestres invadem as ruas, atravessam onde querem e a quantidade de guardas que seria necessária para controlar a ordem simplesmente não é disponível no momento necessário.

 

É um exemplo prosaico, entretanto, assim é com tudo, as populações tornaram-se tão grandes que não é possível o Estado controlar a ação de todos e alguns sempre conseguem burlar as leis sem serem percebidos. Isso ocorre porque não é possível controlar milhares de pessoas se elas não aceitarem o controle e obter essa aceitação de todos quase nunca ocorre.

 

Sequer o poder militar é eficaz para mandar em milhares ou milhões. A segunda potência militar do mundo invadiu uma Ucrânia que foi russa por décadas, onde todos falam a mesma língua, com poderio militar muito superior. Mas os ucranianos não abraçaram os invasores e o resultado é que nem um lado nem outro consegue impor sua vontade. Isso ocorre porque pode haver armas capazes de matarem milhares ou milhões rapidamente, entretanto, não é possível fazer as pessoas agirem de uma só forma. Todas as guerras deste século provam que forças militares muito menores conseguem se manter lutando por muitos anos.

 

Num mundo em que o poder das autoridades, das crenças, das leis e do Estado não é absoluto, é muito mais difícil de prever o rumo das coisas, o acaso passa a ser determinante. É como um cabo de força muitas cordas e cada grupo puxando para um lado diferente sem jamais soltar. Às vezes alguns grupos se juntam e conseguem ir mais ou menos numa direção, mas aí eles cansam, os outros reagem, novas coalizões se formam e o rumo muda. Tem sido assim em todas as sociedades, quando há muitos grupos e interesses diversos, a iteração entre eles e o acaso determinam os rumos de uma associação, bairro, cidade, estado e país.

 

Assusta um pouco pensar que o poder das autoridades, das crenças, das leis e do Estado não seja mais determinante da vida e que a tendência é que diminua conforme a população cresce e se diversifica. A maioria de nós cresceu em famílias e grupos, onde se seguiam regras e para simplificar nossa instrução, fomos ensinados que ou as coisas são certas, ou erradas, que as leis são para seguir e que tudo tem certa ordem aprendemos a crer numa sociedade ordenada. E é um choque descobrir na vida adulta que muitas vezes isso não acontece.

 

Há evidentes desvantagens na nova situação, com menos gente seguindo num mesmo rumo e sem sequer se enxergar qual é o destino da estrada, fica mais difícil de agir, há muitas incertezas e estas dão medo. Todavia, existem vantagens nas regras gerais não serem absolutas, principalmente quando não se é a maioria, pois as chances de se poder seguir um rumo próprio sem ser incomodado aumentam bem.

 

A mais importante vantagem é que num mundo com tanta diversidade e tanta gente, a única solução para se conseguir mover muitas pessoas num mesmo rumo é pela negociação, pela política. É uma alternativa muito mais difícil de governar, porém, se comparada com ser forçado a fazer algo, ser convencido a isso é muito melhor.

 

Você pode crer que a anarquia e o crescente poder do acaso são transitórios. Pode gostar ou não de viver num mundo com líderes menos fortes, maior diversidade de crenças, leis menos eficazes e com um Estado menos capaz de fazer as pessoas seguirem o que prega. Um mundo com mais anarquia, e menos autoridade, menos certeza e mais acaso. No entanto, a única certeza que se pode ter sobre o futuro é que as mudanças vão continuar e que identificar o que está ocorrendo é e será essencial para se adaptar.

 

Paulo Gussoni
Enviado por Paulo Gussoni em 24/11/2022
Reeditado em 27/11/2022
Código do texto: T7657033
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