O AMANHÃ DE ONTEM É HOJE
O AMANHÃ DE ONTEM É HOJE
Vivemos no país do futuro que nunca se cumpriu. Um grande território na América do Sul onde os europeus enxergavam um paraíso perdido e cheio de possibilidades para o Capitalismo recém-formatado pelo Pacto Colonial Mercantilista. Esse olhar europeu sobre os nossos trópicos nos definiu como subdesenvolvidos antes mesmo de nos entendermos como povo. Estruturalmente divididos entre ricos brancos e pobres pretos ou mestiços, somos uma tentativa de democracia republicana. Esses ricos, por sinal, têm incutido há séculos nas mentalidades dos brasileiros um complexo de inferioridade visceral transmitido religiosamente de geração em geração. Com vergonha dum povo analfabeto e desnutrido, a inteligência tupiniquim sempre se acreditou mais europeia do que sulamericana, desdenhando, arrogante, qualquer saber ou valor oriundos dessa gente de pele mais escura e de fala menos formal. O curioso é que ao invés de democratizar o acesso à educação ocidental para que o povo do qual tanto se envergonham possa dominar o instrumental tecnológico e desenvolvimentista, nossa elite pseudoeuropeia sempre usou de sua formação educacional privilegiada para a manutenção do grande fosso segregador de existências que todos os dias vemos se aprofundar entre as favelas e os condomínios fechados nos espaços urbanos brasileiros.
Estas eleições têm me angustiado tremendamente. Tenho consciência histórica e sei que as fronteiras se movem enquanto os regimes evoluem entre ascensão e queda. Passada a apuração do pleito de 02 de outubro de 2022, muitos dos que se arvoram patriotas a partir de hoje seguirão lideranças num cenário de autodestruição. Sim, estamos falando de um pós-Brasil, segregacionista e ditatorial, talvez na iminência de ser reformatado por novos parlamentares conservadores a reboque dum Governo inspirado por AI-5s! Isso é a própria falta de amanhã. As manifestações cretinas de bolsonaristas contra os nordestinos, bem como as fantasias separatistas tanto entre Sul e Norte como entre Evangélicos e Não-Evangélicos… No limite dessa tendência, a criação de Pós-Brasis é o país dividido que enfim se separa para manter os autocratas militaristas e evangélicos com um país desenvolvido para chamar de seu.
Não obstante, o amanhã de ontem é hoje. Ou seja, o presente é resultado dos desejos do passado para o futuro. Desejar pouco é reflexo de quem não tem quase nada. Em que posso pensar e querer se me é vedado observar mais longe e ver que o mundo é maior do que a minha alvorada periférica? Hoje é um dia decepcionante porque ontem não se quis o bastante esse amanhã melhor que a maioria diz desejar. Tenho escrito muito por aí, mas não chego ao coração das pessoas… Arrogância intelectual do escritor ou má-fé sistemática dos leitores? Talvez ambos! Eis o que tenho escrito:
Tenho fobia a neonazistas, racistas, xenófobos, misóginos, desbocados, mentirosos, valentões, armamentistas, milicianos, rachadores, compradores de imóveis em espécie e, sobretudo, imbrocháveis que vivem andando de moto e jet ski ao invés de trabalhar pelo povo. #ForaBolsonaro
Lembro-me que fui uma pessoa muito religiosa na juventude. Católico, participei de pastorais na paróquia e de grupos cursilhistas na universidade. Afastei-me aos poucos vendo a expansão dos reacionários de extrema-direita entre os cristãos. Esses grupos que citei acima eram os que percebia ao meu redor. A Teologia da Prosperidade arrastava corações e mentes para as promessas de riqueza material duma espiritualidade familiar moralista e patriarcal. Afastei-me, junto com a esquerda militante em geral, das questões sobrenaturais para as dificuldades reais dos excluídos. A verdade é que o liberalismo econômico meritocrático sempre deixa o povo sem oportunidades no meio do caminho do progresso. N’outras palavras, o Primeiro Mundo tem levantado muros para deixar a miséria do outro lado, longe da vista deles. Pós-Brasis expressam o separatismo definitivo entre desenvolvidos e subdesenvolvidos dentro do nosso território. Todavia, não há desenvolvimento real sem desenvolvimento humano. Continuar sonhando com a Europa vivendo no Brasil é a neurose da nossa elite que sempre xinga o povo quando este se rebela contra o mandonismo, mesmo que seja pelo voto secreto.
Cego, o povo de Deus finge não ver as relações do bolsonarismo com os milicianos que dominam territórios da metrópole carioca. Protegidos por políticos, grupos armados parasitam o comércio e abrem loteamentos clandestinos em áreas de proteção ambiental enquanto a polícia estadual lhes faz vistas grossas. O armamentismo, que tenta fazer tolerável a existência de grupos usurpadores aqui e ali, tende a dar ao poder econômico enfim capacidade de intimidação sobre comunidades. A democracia está em risco num país, de religiosos de direita que tolera milicianos e exalta bilionários enquanto execra multidões de populares limitados desde o berço por um sistema que se reconhece conservador na sociedade, liberal na economia e reacionário nos costumes.
Se hoje temos um estado de coisas tão desfavorável, precisamos lembrar dos desejos que nos trouxeram até aqui, nesse dia seguinte do primeiro turno das eleições de 2022, com a eleição de senadores e deputados abomináveis. Sonhamos muito com uma vitória do campo progressista e não percebemos o risco de nos dividirmos entre candidatos de várias denominações enquanto egressos quase caricatos do Governo conquistavam mandatos no Congresso…
Temos mais vinte e sete dias de campanha eleitoral pela frente e vamos nos animando para conquistar a presidência da república para o campo progressista, apesar de todas as incertezas desse momento. O amanhã de ontem, quando pensávamos estar diante duma eleição ganha e da volta da normalidade social, é um novo chamado à luta para confirmar a vitória já parcialmente apresentada. Uma luta que não pode ser deixada de lado sob pena de nos esvaziarmos de humanidade em face dum país em risco de deixar de ser. Tenho claro que as elites não hesitariam em nos dividir em vários países se necessário. É preciso serenidade nesse dia de hoje para, no momento definido, possamos afirmar que somos brasileiros e que nenhum de nós vai ficar para trás na busca por desenvolvimento humano e sustentável para os que aqui vivem.
Eu, embora não mais religioso, tenho fé.
Betim — 03 10 2022