A democracia na UTI

 

Muito se fala sobre como Bolsonaro representa uma ameaça a democracia, mas um erro que cometemos é que focamos quase exclusivamente nos discursos do Presidente e muito pouco nas ações concretas por ele tomadas. Não que os discursos não gerem resultados concretos, pelo contrário.

 

De fato uma das estratégias centrais utilizada pelo movimento neo-fascista ao redor do mundo é baseado quase exclusivamente em discursos. Antes mesmo dos políticos vencerem qualquer eleição, só o domínio que eles conseguem fazer sobre as pautas do debate político acabam gerando a inclusão de temas impensáveis em tempos normais como temas legítimos. A normalização do absurdo tem sim um enorme poder para minar a democracia. Basta citar o exemplo de um deputado que faz ameaças aos ministros da Suprema Corte ser considerado por muitos um herói da liberdade de expressão.

 

Mas por focarmos quase exclusivamente no discurso antidemocrático de Bolsonaro acabamos por normalizar ou subestimar os vários atos concretos nestes últimos anos que já abalaram a nossa jovem democracia.

 

Talvez o que mais se destaca a vista seja a militarização da administração pública civil. Hoje temos mais militares ocupando cargos públicos civis do que na Ditadura de 1964. As Forças Armadas em uma democracia sadia deve se ausentar de qualquer pretensão política, visto que é o instrumento do Estado para exercer o monopólio da força. A presença das Armas na política é uma sombria ameaça de fazer das armas argumento no debate democrático.

 

E não são apenas os mais de 6.000 militares da ativa em cargos civis, como também as diversas concessões de privilégios aos militares e as forças de segurança durante o governo Bolsonaro, visando gerar uma identificação política das forças de estado. Uma fidelidade não apenas hierárquica, mas também ideológica. O exemplo mais claro disto foi a Reforma da Previdência, que reduziu direitos de todas as categorias civis, mas aumento os direitos dos militares.

 

O principal braço armado descentralizado no atual ordenamento jurídico brasileiro são as Polícias Militares, que são subordinadas aos Governos Estaduais. Não é coincidência que está atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 164/19, que propõe que a indicação dos Comandantes-Gerais das Polícias Militares deixe de ser de livre escolha dos governadores, e também daria autonomia orçamentária para as PMs. Na prática, considerando o grande alinhamento das Polícias Militares com Bolsonaro, este projeto de lei, caso aprovado, colocaria o comando das PMs sob a tutela da União.

 

Bolsonaro também se utiliza dos Decretos Presidenciais, Portarias, Resoluções e outros atos normativos como uma forma de, na prática, legislar sem o Poder Legislativo. Bolsonaro é recordista tanto no uso de Decretos quanto em número de Decretos questionados por inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.

 

E não se trata apenas do número de atos normativos sem debate no legislativo, como também o conteúdo deles. Por exemplo, o Decreto 9.926/19, que revogou a criação de Conselhos com representantes da sociedade civil em decisões sobre políticas públicas, reduzindo o controle social sobre o Estado.

 

Temos também um conjunto amplo de Decretos para facilitação da compra e posse de armas de fogo, que acabou por criar diversos grupos de civis armados, sem supervisão e acompanhamento do poder público. E estes civis armados são maioritariamente simpatizantes de Bolsonaro. Hoje no Brasil temos mais armas nas mãos de civis do que nas mãos das Forças Armadas e de Segurança. Em um cenário hipotético estes simpatizantes armados podem facilmente se organizar em milícias paramilitares, como feito na Venezuela.

 

Na área ambiental Bolsonaro também abusou do poder da caneta para desregulamentar a fiscalização ambiental, facilitar a exploração das florestas bem como a ação de garimpeiros, grileiros e a industria madeireira ilegal. Tudo isto de forma unilateral, sem o debate com a sociedade.

 

A relação conflituosa de Bolsonaro com a imprensa também vai muito além do discurso e ofensas. O uso das verbas publicitárias deixou de ser direcionada por critérios técnicos, como por exemplo os níveis de audiência, e passou a ser direcionada para veículos que sejam “amistosos” ao governo, quando não claramente imprensa chapa branca, como a Jovem Pan e a Record. Lembremos também das diversas ameaças de Bolsonaro de não renovar a concessão do canal de TV Aberta da Rede Globo, baseado apenas na divergência política.

 

Combinando isto com o discurso que direciona os simpatizantes do governo para não consumirem os canais da imprensa tradicional, cria-se uma bolha perfeita para propagação de fake-news e manipulação política. A aversão ao contraditório e ao debate também se manifesta com o abandono da prática de entrevistas coletivas, e o uso de lives e redes sociais como mecanismo de divulgação quase oficial dos atos de governo.

 

Bolsonaro tomou diversas vezes atitudes de censor. Para tanto foi o Presidente que desde a redemocratização mais fez uso da antiga e felizmente hoje revogada Lei de Segurança Nacional para perseguir e em alguns casos prender quem criticasse seu governo. O caso mais absurdo foi a prisão de quatro manifestantes na Praça dos Três Poderes por portarem uma faixa com os dizeres Bolsonaro genocida” e a imagem de uma suástica, associando o Presidente ao nazismo.

 

Mas não foi apenas a antiga Lei de Segurança Nacional o instrumento de censura usado por Bolsonaro. Bolsonaro usou do Ministério da Justiça para a produção de um relatório com informações da vida pessoal de 579 policias e professores críticos do governo, por participarem de um movimento antifascista. Inimigos do regime?

 

Recentemente tivemos o caso de Flávio Bolsonaro conseguindo liminar na justiça para retirar a matéria do UOL sobre a compra de imóveis com dinheiro vivo feita pela família do presidente.

 

Tivemos ainda os embates do Presidente contra a Suprema Corte, que levou até mesmo a um pedido de impeachment assinado pelo próprio Bolsonaro contra Alexandre de Morais.

 

Somemos a este conflito entre poderes a PEC 159/19, apresentada pela deputada Bia Kicis, que propõe reduzir a idade de aposentadoria dos Ministros do Supremo para 70 anos de idade, o que permitiria Bolsonaro a indicar mais ministros em substituição aos aposentados. Sem falar na graça concedida preventivamente ao deputado Daniel Silveira, visando anular de forma unilateral decisão do colegiado do STF.

 

E agora, após divulgado o resultado das eleições, o atual governo admite abertamente estudar uma emenda constitucional que aumentasse o número de Ministros do STF, fazendo que Bolsonaro conseguisse indicar Ministros o suficiente para controlar a maioria da Corte Constitucional.

 

A própria eleição de Bolsonaro pode ser questionada quanto a representatividade, visto que seu principal adversário foi impedido de concorrer por uma condenação jurídica irregular. E ele só se manteve no cargo até o momento por causa do fracasso do sistema de freios e contrapesos, devido a blindagem fornecida por Artur Lira e Augusto Aras, impedindo qualquer julgamento de crimes cometidos pelo presidente. E as repetidas interferências de Bolsonaro na Polícia Federal, quase impossibilitando investigações de seus aliados.

 

O cenário atual é bastante frágil. Bolsonaro conseguiu o apoio popular de 50 milhões de brasileiros dispostos a confiar apenas no Messias para governar o país, e que enxergam nas instituições inimigos da liberdade.

 

Caso reeleito Bolsonaro terá facilmente a maioria do Congresso Nacional, não apenas por causa de seus correligionários eleitos como também pela institucionalização da compra de votos dos congressistas pelo Orçamento Secreto. Somado isto ao enfraquecimento da imprensa, a desconfiança popular com o Judiciário, e a promiscuidade dos militares com a política, temos um cenário perfeito para a total submissão dos três poderes a figura do Messias. O cenário para a venezuelização brasileira se completaria.