O ônus da democracia

Um dos pilares da democracia é o respeito incondicional à vontade da maioria, a chamada soberania popular. Espera-se ainda que no regime democrático, o Estado promova medidas efetivas para minimizar as desigualdades e/ou privilégios de classes e que a população seja plenamente atendida em suas necessidades básicas. Pelo menos seriam esses os preceitos fundamentais para a classificação de uma nação como democrática, mesmo naquelas em que os direitos elementares do cidadão muitas vezes são negligenciados por incompetência, omissão ou por conta de interesses pouco republicanos, como acontece sistematicamente no Brasil. Em época de campanha eleitoral, os candidatos tentam persuadir o eleitor exaltando uma situação completamente diferente da realidade e para as camadas carentes da população sobram apenas as promessas costumeiras e os discursos falaciosos, uma prova incontestável de que essa nação ainda tem um longo caminho a percorrer na busca pela verdadeira democracia.

O País convive com a expectativa do segundo turno das eleições e os dois candidatos qualificados para a disputa do cargo maior do executivo dispensam apresentações. Do atual mandatário, nesses últimos quatro anos a população teve incontáveis oportunidades para conhecer os controversos predicados de Jair Bolsonaro. Desde sua fixação por uma irrelevante virilidade ao palavreado nem sempre erudito, mas necessariamente polido que haveria de acompanhar diuturnamente o homem público, o messias tupiniquim pleiteia o segundo mandato tentando incutir em seus entusiastas a sensação de mudanças revolucionárias não realizadas até o momento, porém derrapa nas recorrentes e perniciosas incontinências verbais. Costume esse que acaba por repelir virtuais eleitores, que esperam por pelo menos uma postura condizente com a magnitude do cargo.

Seu adversário nas urnas é o ex-torneiro mecânico, ex-sindicalista, ex-presidente da República e ex-presidiário Luiz Inácio da Silva. O “Filho do Brasil” foi condenado em primeira e segunda instância do Judiciário pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro e esteve recluso por 580 dias. Obteve a liberdade e recuperou seus direitos políticos através de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Seu governo ficou maculado pelos escândalos de corrupção envolvendo a maior estatal do País. Procura transmitir a imagem do injustiçado, do inocentado, do venerado pelas massas, do paladino da pacificação e da reconstrução nacional. Em uma jogada puramente eleitoreira, resolve incluir na chapa como candidato à vice-presidência um de seus tradicionais desafetos políticos, fato esse que escancara uma incoerência absolutamente incompreensível para o cidadão comum.

O eleitor está, portanto, diante de uma complexa decisão, em meio a uma das campanhas eleitorais mais rasteiras dos últimos tempos. A questão atual se resume em outorgar mais um aval transitório ao capitão, mesmo conhecendo seu comportamento imprevisível e suas inevitáveis e danosas consequências ou passar o bastão adiante, empurrando para debaixo do tapete da história a sujeira acumulada pelos anos de desmandos e roubalheiras sem fim. Essa é a árdua missão do povo brasileiro, que deve ser conduzida com determinação e sem omissão, porque a liberdade da escolha é uma via de mão dupla: concede direitos, mas estabelece deveres. Esse é, indiscutivelmente, o ônus da democracia.