Futebol, religião e política
Quem ainda não ouviu de alguém próximo que futebol, religião e política não se discutem? Pois, dizem, a discussão pode começar amistosa, mas sempre desanda em briga. Quem ainda não ouviu, principalmente às vésperas de eleições: “Aqui não é lugar de discutir política.”? Uma frase equivalente a: “Aqui é proibido pensar.” Embora seja necessário reconhecer que há muita confusão entre a verdadeira política e a politicagem, que se faz com mentiras, demagogias e apelos ao lado mais sombrio da natureza humana. Sob o pretexto de evitar a vil politicagem, condena-se o debate essencial.
A escolha do time de futebol favorito é muito pessoal. São várias as razões que podem influenciar, talvez a maioria delas inconsciente: a cor do uniforme, uma palavra no hino, uma vitória marcante talvez já apagada da memória, o time de um craque inesquecível, o mesmo time do pai ou do avô, o time campeão quando atinamos com a decisão de nos tornarmos torcedores, o time que se identifica com uma cidade, um bairro, uma classe social, ou até mesmo um viés ideológico... Escolher o time de futebol para o qual torcer é como escolher a cor preferida, a culinária preferida, a flor preferida, o gênero musical ou literário preferido. Enfim, é uma escolha subjetiva. Ninguém deveria dar palpite nessa escolha. Talvez seja isso mesmo que acontece. Ninguém dá palpite sobre a escolha do outro. Ah, mas na hora de comparar os times, aí começa a lambança: o meu é melhor que o seu; mas o seu está pior no campeonato; mas o meu ganhou ano passado; o juiz roubou; o seu só tem jogador cai-cai; e o seu, patrocinado por bandidos; o seu tem torcida brucutu; a torcida do seu é de favelados... A arenga não tem fim. Melhor mudar de assunto.
Que a mudança de assunto não seja para a religião. Escolha igualmente pessoal, aqui com a fé a influenciar decisivamente, junto com a tradição familiar. Ainda há quem julgue que sua concepção de religião e de Deus é a única certa. Talvez não exista presunção mais descabida. Acho que a noção de Deus deve ser diferente para cada ser humano que reflita sobre a divindade. Creio que mesmo para os teólogos, que estudam a fundo o assunto. Então a escolha da religião, sendo também pessoal e subjetiva, deveria ser respeitada. As conversas a respeito deveriam ser em torno da troca de entendimentos, percepções e revelações. As trocas sempre enriquecem quem está disposto também a escutar, e não só a falar. Mas experimente começar uma discussão sobre religião. Outra vez, arenga certa, sem fim. Melhor mudar de assunto.
Opa, para a política? Aí é que a coisa degringola. E justo naquilo que diz respeito ao coletivo, que se refere a regras e procedimentos que influenciam a vida de todos. Se a escolha sobre as afinidades políticas continua com ingredientes subjetivos, como o futebol e a religião, agora a escolha pode influenciar a vida de toda a coletividade. Na nossa sociedade, essa escolha traduz-se em votos, que elegem governantes e legisladores. Não sou obrigado a compartilhar o time de futebol ou a religião da maioria, mas sou obrigado a acatar as leis e o governo escolhidos pelo voto da maioria. Na política, diferente do futebol e da religião, a racionalidade deveria ter muito mais peso que a subjetividade. O que não quer dizer que a amorosidade também não seja essencial: muitas vezes compreendemos melhor com o sentimento que com a razão. Mas o que acontece na verdade é que em política decidimos mais com o fígado que com a mente ou o coração. É na política, mais que no futebol e na religião, que as paixões exaltam-se e embotam de vez o bom senso.
Quando conseguirmos lidar nos assuntos políticos com mais razão e menos paixão, talvez consigamos fazer escolhas coletivas que avancem na solução dos grandes problemas que afligem a humanidade: as injustiças e segregações sociais, o consumismo insano que sacrifica o planeta e condena a vida, a cupidez e o culto ao deus dinheiro, o individualismo e o egoísmo, a xenofobia, o imperialismo, o belicismo... São muitos equívocos que temos cometido, que põem em risco o porvir da civilização atual.
A política está presente em tudo: na economia, no meio ambiente, nas convenções sociais, na educação, na cultura, na arte, até no futebol e na religião. Esquivar-se da boa discussão política é permanecer no atraso da passionalidade no que é essencial à vida. É reafirmar o “analfabeto político” do poeta Bertolt Brecht. É negar o esforço de esclarecimento para que nossas escolhas nos conduzam para uma sociedade civilizada, e não para a barbárie.
É preciso aprender a reconhecer quanto ainda somos pouco racionais e solidários, para assim emergirmos de nossa natureza egocêntrica e participarmos da construção de uma sociedade mais justa, em equilíbrio com a natureza e consigo mesma.