Jesus nunca usaria uma pistola
São tempos estranhos estes, quando ateus como eu se sentem convocados a explicar a mensagem bíblica aos cristãos. Já dizia Shakespeare que “Até o diabo pode citar as escrituras quando lhe convém”. Isto pode ser um conselho para que vocês sejam céticos a interpretações deste descrente, mas também serve para que você desconfie de líderes políticos que citam as escrituras. Nem sempre quem cita a Bíblia está bem intencionado.
Pode parecer estranho que eu me importe com este assunto. Mas para este ateu aqui a Bíblia é a coleção de livros mais influentes em minha sociedade, e por isto deve ser levada bem a sério. Não é preciso acreditar que são livros inspirados por Deus para entender que a mensagem bíblica e a forma como a interpretamos pode influenciar e muito as nossas vidas.
Recentemente Jair Bolsonaro, junto a alguns líderes evangélicos, defendeu uma interpretação de um trecho bíblico bem comum em certos grupos armamentistas dos Estados Unidos, mas até pouco tempo atrás pouco defendida por cristãos brasileiros. Trata-se de Lucas, 22: 36 “Agora, porém, quem tem bolsa, pegue-a, assim como a mochila de viagem; e quem não tem espada, venda a própria capa e compre uma. ” Baseado neste trecho nosso presidente defendeu que se Jesus pudesse, ele teria comprado uma pistola. Seria então uma base bíblica para os cristãos, os cidadãos de bem, se armarem para a luta contra o mal.
Lembremos que a Bíblia é um texto extremamente rico, escrito por diversos autores em épocas diferentes. Todo cristão deve reconhecer que interpretar a Bíblia muitas vezes é algo nada simples. Um dos recursos mais comuns para pessoas mal intencionadas ao citar a Bíblia é citar um versículo fora de contexto e dar a interpretação que lhe convém. Então o primeiro passo para tentarmos fazer uma exegese adequada é ler pelo menos alguns versículos a mais, para entendermos em que discurso este versículo foi escrito, com qual intuito.
Permita-me então citar dois trechos:
Lucas 22: 35-38:
35 Em seguida, Jesus os inquiriu: “Quando Eu vos enviei sem bolsa, mochila de viagem e outro par de sandálias, sentistes falta de algo?” Ao que eles prontamente replicaram: “De nada!” 36 Então, Jesus os adverte: “Agora, porém, quem tem bolsa, pegue-a, assim como a mochila de viagem; e quem não tem espada, venda a própria capa e compre uma. 37 Pois vos asseguro que é necessário que se cumpra em mim o que está escrito: ‘E Ele foi contado com os transgressores’. Sim, o que está escrito a meu respeito está para se cumprir”. 38 Então os discípulos afirmaram: “Senhor, eis aqui duas espadas!” Mas Jesus lhes exortou: “É o bastante!” Jesus sai para orar no monte.
E Lucas 22: 47 - 53:
47 Enquanto Ele ainda falava, chegou uma multidão seguindo a Judas, um dos Doze. Este se aproximou de Jesus para saudá-lo com um beijo. 48 Jesus, no entanto, lhe argüiu: “Judas, por meio de um ósculo estás traindo o Filho do homem?” 49 Ao perceberem o que se sucederia, os que estavam com Jesus lhe propuseram: “Senhor! Devemos atacá-los à espada?” 50 E um deles feriu o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha direita. 51 Contudo, Jesus interveio e ordenou: “Deixai-os. Basta!” E tocando a orelha do homem, Ele o curou. 52 Então, voltando-se Jesus para os chefes dos sacerdotes, os oficiais da guarda do templo e os líderes do povo que haviam chegado para prendê-lo, inquiriu-lhes: “Viestes contra mim com espadas e varas, como se Eu estivesse liderando uma rebelião? 53 Todos os dias Eu estive convosco no templo e não estendestes as mãos contra mim. Contudo, esta é a vossa hora, quando as trevas dominam”
Aqui temos o contexto em que Jesus disse a frase citada por Bolsonaro. Ele estava pedindo aos apóstolos para que eles pegassem espadas (apenas duas eram suficientes) para que as escrituras se cumprissem. E logo após, quando Judas chega com legionários romanos para levar Jesus a Pilates, um de seus apóstolos empunha a espada, e ataca um legionário. E Jesus não apenas o repreende, como cura o ferimento causado pela espada.
Fica claro aqui que não era uma defesa que cristãos devem se armar, mas sim de cumprir a profecia de que o messias seria torturado e executado como criminoso. Tentar interpretar o versículo isoladamente como um pedido para os cristãos ser armarem é contraditório ao contexto do capítulo, e principalmente incoerente com Jesus intervir e impedir que os apóstolos reagissem violentamente. Jesus pede para os apóstolos pegarem espadas para ficar claro que ele poderia se opor com violência, mas prefere se entregar pacificamente.
Um dos trechos mais citados e conhecidos dos evangelhos nos ensina que devemos oferecer a outra face. Vejamos em Lucas 6: 27-36:
27 Contudo, tenho a declarar a vós outros que me estais ouvindo: amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam; 28 abençoai aos que vos amaldiçoam, orai pelos que vos acusam falsamente. 29 Ao que te bate numa face, oferece-lhe igualmente a outra; e, ao que tirar a tua capa, não o impeças de tirar-te também a túnica. 30 Dá sempre a todo aquele que te pede; e, se alguém levar o que te pertence, não lhe exijas que o devolva. 31 Como quereis que as pessoas vos tratem, assim fazei a elas da mesma maneira. 32 Pois se amais os que vos amam, que galardão pode haver nisso? Porquanto, até mesmo os ímpios amam aqueles que os amam. 33 E se fizerdes o bem aos que vos fazem o bem, qual é o vosso mérito? Até os infiéis agem deste mesmo modo. 34 E ainda, se emprestais àqueles de quem esperais receber de volta, qual é a vossa recompensa? Também os incrédulos emprestam aos incrédulos, a fim de receberem seu retorno desejado. 35 Concluindo, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem se desesperar por receber de volta. Então, sendo assim, grande será o vosso prêmio, e sereis filhos do Altíssimo. Porquanto Ele é bondoso até mesmo para com os ingratos e ímpios. 36 Sede misericordiosos para com os outros, assim como vosso Pai é misericordioso para convosco. Não cabe ao discípulo julgar o próximo
Note que Jesus defende que se alguém pretende roubar os seus bens, que o cristão não se oponha a isto. É o exato oposto do discurso de que os cidadãos de bem teriam que se armar para se defender dos criminosos.
A tradição cristã é a de valorizar o martírio, como podemos ver em vários trechos dos Atos dos Apóstolos. Cristianismo defende a resistência pacífica. Não é a toa que a Igreja Cristã se orgulha dos seus muitos mártires diante do Império Romano. Não há trecho no Novo Testamento mensagem que proponha a resistência armada, o uso da violência, ou subjugar os malignos.
Infelizmente esta parte tão central ao cristianismo foi repetidamente invertida por cristãos ao longo da história. E os exemplos do que acontece quando cristãos empunham armas para defender o bem contra o mal são terríveis. É esta atitude de armas justas que gerou a Inquisição, as Cruzadas, e as inúmeras guerras e conflitos sangrentos onde cristãos matavam cristãos e pagãos. Literalmente milhões de inocentes morreram por cristãos que consideraram ser algo sagrado portar armas.
Um exemplo bem recente foi a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1950 e 1960. Um grupo de cristãos conservadores consideravam que o modo de vida cristão incluía o uso de armas e da força para garantir a preservação de seu modo de vida. Eles se intitulavam cidadãos de bem. E vestiam mantos e capuzes brancos, e queimavam cruzes para marcar sua posição. Torturavam e executavam quem eles consideravam ameaça.
Mas felizmente um líder cristão se elevou acima do ódio. Martin Luther King. E diferentemente da Ku Klux Klan ele defendia a resistência pacífica. Nunca empunhou uma arma. E apesar de morrer em um atentado, suas ideias venceram o debate, pelo menos em parte.
Mas infelizmente o discurso das armas cristãs continua presente. Então eu peço a você, cristão, que escolha com sabedoria o seu caminho. Deseja oferecer a outra face, mesmo que isto signifique a possibilidade de martírio, ou deseja se tornar um cruzado, um inquisidor, um terrorista disposto a matar em nome de Deus?
O debate no fundo é este: Bolsonaro e alguns líderes claramente mal intencionados defendem o direito de matar. Outros defendem o direito de viver.