Debater, convencer, vencer. Como jogar xadrez com pombos?
Um livro que eu recomendo muito para quem quer aprender sobre técnicas desonestas de debate, bem como erros de raciocínio e falsas deduções é o “Como vencer um debate sem precisar ter razão”, de Arthur Schopenhauer. O nome Schopenhauer pode meter medo, mas este pequeno livro é de leitura acessível e até mesmo divertida para quem se interessa pelo assunto. E nele temos um compilado dos estratagemas desonestos de retórica mais usados e mais eficientes.
Curiosamente a edição mais vendida deste pequeno clássico no Brasil tem prefácio e comentários de ninguém mais, ninguém menos que Olavo de Carvalho. E diferente da maioria dos livros de filosofia comentados por Olavo, este parece que ele realmente leu. E até entendeu os conceitos. Só não entendeu ou não aceitou a proposta do livro. Schopenhauer escreveu este pequeno manual como uma óbvia ironia para aprendamos o que não deve ser usado, e como desmascarar quem usa. Mas o nosso guru de Virgínia ignorou a ironia de Schopenhauer e passou a usar dos estratagemas analisados no livro como métodos favoritos de debate. Como debater com quem esta conscientemente disposto a desobedecer quaisquer ética de debate?
Um meme bem antigo da internet é o do pombo enxadrista. A forma clássica deste meme é mais ou menos assim: “Discutir com Fulano é como jogar xadrez com um pombo. Ele defeca no tabuleiro, derruba as peças, e sai voando cantando vitória”. Um enxadrista normalmente estuda tática, estratégia, conceitos completamente inúteis neste contexto. Então, como jogar xadrez com pombos?
O primeiro passo é entender quem é quem nos debates. Podemos dividir os debatentes em três grandes grupos. Aqueles que querem realmente te debater, os que querem convencer (ou converter) e os que querem apenas vencer.
O debate ideal busca o debate em si. A busca de articular aquilo que você pensa para que aquele que discorda de ti consiga entender seu pensamento ajuda muito a você entender melhor aquilo que você pensa. E, as vezes, a detectar erros. Além disto ser exposto a outras visões pode lhe apresentar mais perspectivas e enriquecer a sua compreensão. Neste tipo de debate, todos ganham, não importa o que ocorra. Não há inimigos ou adversários. O bom debate é um trabalho cooperativo.
O debate mais comum é aquele onde as pessoas tentam convencer umas as outras. E isto por vezes leva a exaltação emocional, frustração, acusações. E muito raramente alguém acaba mudando de opinião. Na maioria das vezes apenas saem mais convictos de sua posição e da idiotice do adversário. Quando você se perceber envolvido em um debate deste tipo, minha sugestão é se concentrar em ser convincente para a platéia, para aqueles que querem aprender ao acompanhar o debate. E tente reconhecer, quando possível, os pontos positivos da visão do seu adversário, para esfriar o conflito e parar de focar em convencer.
Mas o terceiro tipo é um animal bem diferente. É o pombo. A real motivação do pombo enxadrista é vencer. Para ele um debate é uma guerra, e o que importa é destruir o inimigo. Por isto todo recurso é válido. Quando um grupo entende que esta em uma guerra cultural, e quem discorda dele esta ameaçando a própria civilização, acaba sendo tentado a justificar os meios pelos fins, e defecar no tabuleiro. O importante é mitar, ou lacrar. É criar frases de efeitos, fazer cortes para internet, humilhar, jantar o adversário.
Os atuais Grandes Mestres do enxadrismo pombal é a nova direita. Não apenas o bolsonarismo, mas todas as versões espalhadas pelo mundo. E é por saberem os segredos do anti-jogo que eles acabaram dominando completamente o debate nas redes sociais. Uma das maiores preocupações de nós, mamíferos sem penas que querem jogar um bom xadrez, é aprender a como lidar com eles. E não é nada fácil. Mas vou tentar apontar algumas ideias.
O primeiro ponto é entender que o jogo não é mais xadrez, não é mais um debate. Ter lido o livro do Schopenhauer, ou conhecer os detalhes da retórica, da erística, e da análise de discurso pode ajudar e muito. Mas está longe de ser suficiente. Pois assumir a estratégia comum é garantir que muitos tabuleiros fiquem fedendo, e nenhum jogo seja possível.
Vejo repetidas vezes as pessoas se preocuparem em não dar munição para bolsonaristas. Um exemplo atual: após a condenação do Deputado Daniel Silveira, e o perdão presidencial, o PTB indicou o deputado condenado para participar de cinco comissões, entre elas a CCJ, a comissão mais influente da Câmara dos Deputados. Isto é nada mais, nada menos que o pombo defecando no tabuleiro. Uma provocação sem sentido, que funciona como cortina de fumaça, para criar balbúrdia e fúria, e controlar o debate com os assuntos que o pombo escolhe.
Como reagir? Muitos defendem aceitar, ignorar, e focar em assuntos reais e importantes, como por exemplo, a alta da inflação, os escândalos no MEC, etc. Segundo estes, entrar na polêmica é dar munição ao inimigo, é deixar eles dominarem a pauta. Contudo isto parece para mim tentar jogar xadrez com o pombo. Ignorar os dejetos defecados pelo pombo tem seus riscos sanitários.
No caso seria deixar o STF isolado e sem apoio contra o ataque que ele tem sofrido. Sem o devido repúdio do Congresso e da sociedade fica muito mais difícil para STF tentar seguir independente, ao invés de se sujeitar. Além disto a preocupação de não municiar o adversário só funcionaria se eles ainda seguissem alguma lógica ou alguma ética. Para o bolsonarismo, qualquer coisa é munição. E se a munição acabar, é só inventar uma. Quem não tem nenhum compromisso com os fatos ou a lógica não precisa de deslizes nossos para disparar qualquer coisa.
É importante não deixar eles dominarem a pauta, mas também não podemos deixar os absurdos sem resposta. As polêmicas criadas para apenas gerar polêmica precisam ser respondidas. Mas de forma institucional, sóbria, incisiva, e breve. E precisamos também nos esforçar constantemente para em paralelo focar nos temas realmente significativos.
Um dos lemas da política é que aquele que tem um poder, mas não usa, acabará por perder este poder. Se bolsonaristas criam crises institucionais como cortina de fumaça para encobrir o desgoverno atual, e as instituições não reagem de acordo, isto coloca em risco o próprio poder de reação. Um dos exemplos mais claros disto é a questão do impeachment. Após ignorarmos repetidamente os crimes de responsabilidade do presidente, hoje temos uma realidade onde este remédio constitucional se tornou impossível. De tanto a Câmara dos Deputados considerar não ser conveniente usar do seu poder de fiscalizar o Executivo, hoje este poder é apenas virtual. Não podemos repetir o erro. A PGR e o Congresso deixaram de fiscalizar o Executivo. Resta apenas o Judiciário.
Mas, apesar disto, é preciso ser sábio. Uma coisa são as respostas políticas, outra as disputas nas redes sociais. Como nossa professora Anitta nos ensinou, não devemos dar espaço para bolsonaristas irem além de suas bolhas com a prentensão de refutar um absurdo. Nestes casos, o melhor é pegar seu tabuleiro e ir embora. Como, por exemplo, a CPI da Covid fez com os “especialistas” defensores do kit-covid. Deixem eles falarem sozinhos, quando querem atingir corações e mentes novas. Mas não abandonar o combate quando tentam confrontar as instituições.
Não é um caminho simples, e nem sempre é fácil decidir quando jogar e quando se retirar. E infelizmente, eles dominam esta arte do anti-jogo a mais tempo que nós. Mas, pelo menos, sabemos jogar xadrez. Quando as coisas se normalizarem, dominaremos os tabuleiros. Até lá, vamos ter que lidar com excrementos.