Barangas e mocréias. E os nenês. Ou: Dos pelos.

Causam-me estranheza certas coisas do nosso mundo, mundo bizarro, o dos humanos, escalafobético. E além de estranheza, espanto; espanto, aqui, não é sinônimo de susto, terror, medo, mas de incômodo, desconforto, incômodo e desconforto com o que presencio, que, de tão grotesco, quimérico, teratológico, dir-se-ia, inspira-me sentimentos contraditórios, que se anulam, que se mesclam numa tal miscelânea, mistureba, melhor dizendo, de sensações, que me sobrecarregam o cérebro, saturando-o a ponto de inutilizá-lo. E tais espanto e estranheza dão-me o que pensar; e o que penso não sei o que é, e tampouco se é relevante, ou não, se merece, ou não, registro, e, mais do que o registro, divulgação pública. São tantas as asnices e as asneirices modernas que nem em duzentos anos, dedicado à redação delas, durante vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, quatro semanas por mês e doze meses por ano uma pessoa, assim tão atilada, reuni-las-á num documento histórico de inegável valor sociológico e antropológico, um apanhado completo, íntegro, da sandice humana dos primórdios do século XXI. E um dos casos mais emblemáticos da era que vivemos, senão o mais emblemático, protagoniza-o o pelo. Sim, o pelo, parente próximo do cabelo, e da pena distante. Mas não o pelo em si, enquanto parte integrante do corpo, mas o pelo no corpo humano, a cobrir a superfície da película que os humanos encobre, a enfeá-lo, ou a embelezá-lo.

Os humanos nossos antepassados, conquanto se incomodassem com os pelos que os revestiam, e os arrancassem à fórceps, ou queimando-os ao fogo de uma tocha, não faziam de tal questão um campo de batalha. Mas nos dias de hoje, ou hoje em dia - ao gosto do freguês -, é o pelo um tema peludo, extremamente peludo, controverso, que engendra debates acalorados, infindáveis, os debatedores, civilizadamente, em luta renhida, a baterem-se com socos, joelhadas, pontapés e cotoveladas metafóricos - nem sempre, é verdade, e não raro eles perdem as estribeiras, e descompõem-se, e de doutor Jekyll convertem-se em senhor Hyde. Compreensível, afinal é o tema, além de peludo, espinhoso, de suma importância para a existência e a sobrevivência da espécie humana.

Não sei o que deu na telha de certas pessoas considerar sujeira o pelo no corpo dos homens e adornos no das mulheres. Confesso que não me entra na cachola tal idéia. O homem é, por natureza, peludo; carrega pelos no rosto, no tórax, nas áreas ocultas de olhos indiscretos, nas costas, nas pernas, nos pés, nas mãos, nas solas dos pés, no interior das cavidades nasais, na língua, no céu da boca, nas unhas; enfim, é o homem um ser peludo, animalescamente peludo, que sempre se orgulhou de exibir o pelame que o cobre, em especial o da cara; barba e bigode, quanto mais espessos, melhor, pois conferem ao seu dono ar imperial, nobiliárquico, distinto, aristocrático, sapiencial, venerável. Toda pessoa, ao imaginar um sábio traz à mente a figura de um provecto ancião barbudo e bigodudo, barba e bigode brancos, lácteos, ou prateados, grisalhos. E não resvala a cabeça de ninguém a figura de um espécime masculino humano imberbe, de tórax liso, desprovido de pelos ao se fazer uso da imaginação para evocar um guerreiro audaz, heróico, bravo, muito bravo, e destemido. O tipo másculo e viril, tem na cara, estampados, barba e bigode de bom tamanho, camada de pelos a cobrir-lhe o tórax avantajado, e um tufo de pelos em cada sovaco, e pernas e braços razoavelmente bem aquinhoados de pelos. Mas é hoje no corpo dos homens o pelo reprovado, sujeira, imundície, coisa de brutos incivis, bárbaros asselvajados. O pelo, diz-se, enfeia os homens; é sinal de falta de asseio corporal negligência para com o corpo. Barba e bigode, nos homens, nem pensar; são ninhos de ácaros, e de outros minúsculos bichinhos asquerosos, nojentos, infinitesimalmente teratológicos. Que se arranque, e desde a raiz, da cara dos homens o pelo, o indesejado, incômodo pelo, para que nela não brote mais nenhum, nem unzinho só. E no tórax dos homens é o pelo mal visto. Torso peludo era o dos neanderthais, o dos homens das cavernas. No dorso do homem moderno nenhum pelo é permitido, admitido, aconselhável, aceitável. Que se depile o torso dos homens modernos com recursos que impeçam que novos pelos cresçam; que se altere o dna humano para que no torso dos homens pelo não cresça jamais. Homem elegante, sofisticado, charmoso tem peito de nenê, lisinho.

Têm muitos dentre os humanos horror de lembrar que descendemos de homens abrutalhados que, com uma pancada de clava na cabeça da mulher cobiçada, conquistava-a, dispensando-se de lhe recitar poemas de amor e gastar saliva com louvores à beleza dela, e conduzia-a, com seus proverbiais carinho e ternura, ao aconchegante ninho do amor. E ele, então, e sua consorte, a viverem, harmoniosamente, sob o mesmo teto, o da caverna, zelavam pela vida um a do outro, e pela vida dos filhos que geravam. Se nos tempos imemoriais, que os livros de História não registram, era este o comportamento dos homens, não sei; sei que tal idéia é a que desenhos animados, comédias cinematográficas e histórias em quadrinhos ensinam. Não desejamos que saibam os extraterrestres que nos une o pelo - cordão umbilical imarcescível - às criaturas, nossos antepassados, asselvajadas e abrutalhadas: os homens das cavernas. Eu fiquei a ponto de escrever 'alienígenas', e não 'extraterrestres', mas me recordei, não sei dizer porquê, que eu li, em livros escritos antes do advento da cultura pop, da literatura de ficção científica, e, particularmente, da popularização do substantivo 'alienígena' - ou 'alien' (popularizado pelo filme Alien, o Oitavo Passageiro) -, quando se emprestou à 'alienígena' sinônimo, exclusivamente, de extraterrestre, seres oriundos de outros planetas, que se designavam alienígenas os adventícios, pessoas chegadas de outras terras, e não de outros planetas. Daí, eu escrever, a tempo, 'extraterrestres', e não 'alienígenas'. Assumiu o substantivo 'alienígena', nos tempos modernos, significado que os nossos antepassados jamais imaginariam.

Mas vamos falar do pelo, o tema central deste artigo. Que seja o pelo, se de comprimento considerável e em boa quantidade, a escapar pelas bordas do nariz, desgracioso, concordo, seja ou não desgracioso o nariz, napa à Cyrano de Bergerac. Podá-lo é de bom alvitre; arrancá-lo, desnecessário; tem, lá, o pelo a sua função: a de filtrar o ar, que desce aos pulmões. E as sobrancelhas são, em muitas pessoas atavios, em algumas tão singulares que basta exibir-se delas uma foto, desacompanhadas do rosto de seu dono, que logo a figura dele é avocada e a elas associada. O caso mais famoso é o do Monteiro Lobato. E o que falar do bigode de Friedrich Nietzsche!? E os cílios em muitas mulheres são paramentos de beleza incomparável.

Deixemos de lado tais pelos, e nos concentremos em outros pelos, pelos controversos, que se converteram em discursos políticos, em manifestações públicas de rebeldia, em símbolos da luta dos justiceiros sociais contra o Grande Capital, contra a Família, opressora, arcaica, medieval, fundamentalista, escravocrata, contra a Sociedade Patriarcal, contra a Heteronormatividade, contra a Masculinidade Tóxica. Tais pelos no corpo das mulheres, no rosto, nos sovacos (não sejamos insensíveis e grosseiros: digamos axilas, para não ferir de ninguém os sentimentos), nas pernas, estão na raiz de políticas modernas. Se no corpo do homem é mal-visto o pelo (símbolo da masculinidade tóxica), no corpo da mulher ele é bem-vindo e benquisto, símbolo de liberdade, emblema de luta pelos direitos das mulheres, selo do combate contra a desigualdade entre homens e mulheres. Que os sovacos das mulheres sejam peludos. Sovacos, não; axilas. 'Axila' é meigo, conquanto as mulheres de sovaco peludo de meiguice não tenham um pelo. E não nos esqueçamos dos pelos das pernas e os que brotam debaixo do nariz. Mulher que se preze, segundo a mentalidade das sovacopeludas, tem de ser peluda e exibir o pelame, desavergonhadamente, em praça pública.

Está-se a emprestar às mulheres características que até ontem associava-se exclusivamente os homens, e aos homens as que eram particularidades exclusivas das mulheres. Continue-se assim, que logo os homens darão à luz seus descendentes, e as mulheres terão a aparência de machos neanderthais.

Barangas e mocréias de todo o mundo, uni-vos!

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 28/04/2022
Código do texto: T7504833
Classificação de conteúdo: seguro