Guerra cognitiva – as vítimas somos nós
“Guerra cognitiva” é o título de um surpreendente relatório da OTAN que organiza e aprofunda tudo o que o cidadão comum talvez já conheça sobre as guerras híbridas. É aquela guerra em que o campo de batalha não é mais o território sobre a superfície da Terra, mas é a mente humana. O território ─ e suas riquezas ─ é só o butim final. A guerra cognitiva ─ GC ─ visa vencer o inimigo sem a necessidade de pegar em armas, sem os custosos deslocamentos de tropas e equipamentos. Basta utilizar racionalmente os meios de informação, comunicação e poderosa capacidade de processamento de dados, para conhecer bem o inimigo ─ sua cultura, hábitos, crenças, valores, medos, fraquezas, gostos, viés ideológico, psicologia, etc. ─ e, a partir desse conhecimento, produzir estímulos ─ notícias verdadeiras ou falsas, controle de informações e anúncios, ofertas de amizades ou de inclusão em grupos, etc. ─ que conduzam o inimigo a derrotar-se a si próprio ─ consumindo compulsivamente, apoiando certas ideologias, votando em certos candidatos, insurgindo-se contra instituições, armando-se, tornando-se violento, odiando, rejeitando vacinas eficazes, acreditando em remédios ineficazes, etc.
A GC não é totalmente nova. Desde sempre sabe-se que, numa guerra, a verdade é a primeira vítima. Isto se acentuou nas guerras do século XX, com a evolução dos meios de comunicação e da propaganda, e consolidou-se no século XXI, com a fantástica capacidade de coleta, processamento e difusão de dados, e das neurociências que destrincham minuciosamente o comportamento humano.
O relatório da OTAN alerta para a urgência do aperfeiçoamento da GC nos quadros da Organização, para os enfrentamentos que estão em curso nestes nossos tempos. Menciona os casos da GC nas revoluções coloridas da Primavera Árabe entre 2010 e 2012, na Ucrânia em 2004 e 2014, no Brexit em 2016 no Reino Unido. Não fala do Brasil; cabe a nós deduzir a deflagração da GC contra os brasileiros e o gigante adormecido da América do Sul, desde a tentativa de democratização e emancipação do país, sobretudo a partir da descoberta do petróleo do pré-sal. Entre nós, a GC levou às manifestações de 2013, que culminaram com o afastamento de Dilma e ascensão da extrema direita. Cabe também deduzir o papel da GC atualmente, no conflito Ucrânia versus Rússia.
Quem são as vítimas da GC? Visto que o combate dá-se dentro da mente humana, esquadrinhada e mapeada pelas sagazes neurociências, a primeira vítima é o ser humano, derrotado pelas sofisticadas táticas de combate do aparato cognitivo: as vítimas somos nós! Cada vez que compramos algo que de fato não precisamos, já estamos sendo vítimas das armas de manipulação; mas neste caso para o consumo. Na GC, o objetivo não é só nos fazer consumir mercadorias; consumimos coisas muito mais danosas. Consumimos ideologias e convicções do interesse dos nossos inimigos na GC. Consumimos preconceitos, intolerâncias, demonizações ou endeusamentos. Consumimos o convencimento de que é preciso armar-se e participar de uma revolta, ou mesmo das brigas em que passamos a odiar familiares, amigos e antigos parceiros. A GC promove a cizânia e disrupção no território do inimigo através da cibernética. Nosso pensamento e nossa ação não são mais nossos. Tornamo-nos verdadeiros fantoches, marionetes irracionais. E, o que é pior, na maioria das vezes nem nos damos conta de que estamos em uma guerra, que há um inimigo guerreando conosco. Temos nosso livre pensar e nossa identidade roubados, somos vítimas derrotadas em uma guerra na qual não sabemos estar participando, por um inimigo que não sabemos quem é.
Agindo nas multidões irrefletidas, a GC pode levar a revoltas, surtos fascistas, deposição ou eleição de dirigentes políticos e até guerras civis; sempre no intuito de favorecer o inimigo cognitivo. A guerra visa submeter populações e países aos interesses daqueles que detêm o poder tecnológico de desencadear e vencer a GC.
As primeiras vítimas da GC são a verdade e as pessoas. As maiores vítimas são as nações que tentam emancipar-se, transformadas em eternas colônias, submissas a seus dominadores.
Queiramos ou não, estamos em guerra. Ela nos foi declarada. Um dos caminhos possíveis é conscientizar-se disso, e recusar participar dela.