UMA DESMISTIFICAÇÃO DO CONSERVADORISMO
RESUMO
O conservadorismo, enquanto vertente política, ainda é mal interpretado por muitos e, de modo geral, pouco conhecido do público brasileiro. Em sua essência – e mesmo em ambientes acadêmicos –, o termo continua envolto por densas névoas de preconceito e desinformação, o que dificulta uma melhor compreensão desse importante fenômeno político e sociocultural. Diante dessa realidade, o presente artigo busca, modestamente, fornecer um panorama introdutório para aqueles que desejem aprofundar-se e conhecer melhor esse tema, que tem se tornado cada vez mais relevante e atual.
Palavras-chave: Conservadorismo; Ciência Política; Filosofia Política.
RESUMEN
El conservadurismo, como vertiente política, aún es mal interpretado por muchos y, de modo general, poco conocido del público brasilero. En su esencia – e incluso en ambientes académicos –, el término sigue envuelto por densas nieblas de preconcepto y desinformación, lo que dificulta una mejor comprensión de ese importante fenómeno político y sociocultural. Frente a esa realidad, el presente artículo busca, modestamente, fornecer un panorama introductorio para los que deseen profundarse y conocer mejor ese tema, que se está volviendo cada vez más relevante y actual.
Palabras-clave: Conservadurismo; Ciencia Política; Filosofía Política.
ABSTRACT
Conservatism, as a political trend, is still misunderstood by many and, in general, scarcely known by the Brazilian public. In its essence – and even in academic grounds –, the term suffers from prejudice and disinformation, what inhibits a better comprehension of this important political and sociocultural phenomenon. Facing this reality, the present article modestly intends to furnish an introductory overview for those who want to know better and get deeper into this subject, which is becoming each day more relevant and contemporary.
Key-words: Conservatism; Political Science; Political Philosophy.
INTRODUÇÃO
Em discussões políticas não é raro encontrar pessoas que viram a cabeça e torcem o nariz à mera menção do termo conservadorismo. Por ignorância ou preguiça mental (e, às vezes, por pura má-fé), tendem a associá-lo a uma porção de coisas que, no imaginário coletivo, têm péssima conotação: atraso, obscurantismo, aversão ao progresso, etc. Essas opiniões, entretanto, não correspondem à realidade, e um dos objetivos deste artigo é justamente elucidar essa importante questão, desmistificando-a.
Que se comece, pois, com uma afirmação que, como se notará, traz em seu bojo um indisfarçável veio provocativo: Não pode haver verdadeiro progresso sem que haja conservadorismo, especialmente quando o assunto é política. A frase pode parecer estranha e até mesmo ilógica, mas nada tem de falso. Pelo contrário, escancara uma verdade que, à luz dos fatos, torna-se indelével.
Em primeiro lugar, é preciso entender que o conservadorismo não é avesso ou contrário ao progresso em si: os conservadores apenas se mostram relutantes em relação à postura daqueles que defendem ou advogam o progresso pelo progresso, isto é, como um fim em si mesmo. Ou seja, no entendimento conservador, as mudanças – políticas, sociais e culturais – podem e devem acontecer; no entanto, esse processo deve atender a necessidades legítimas da comunidade historicamente constituída, ocorrendo de forma espontânea e sem pressões artificiais (ideológicas, por exemplo). Em resumo, conservadores simplesmente rejeitam a postura do mudar por mudar, essencialmente irresponsável e inconsequente.
A esta altura, como se percebe, começa a tornar-se mais nítida e compreensível a diferença substancial entre conservadores e seus opositores progressistas, situados no outro lado do espectro político (i.e., na Esquerda).
Após essa breve exposição inicial já é possível compreender sem dificuldades que o conservadorismo não é, de fato, oposto ao progresso, constituindo-se, na verdade, em condição indispensável para que as sociedades possam progredir de modo prudente e saudável. Somente assim, afinal, os avanços e progressos alcançados haverão de ser plenos e duradouros.
1. Desmistificando o conservadorismo
A definição de conservadorismo, para fins de ciência política, apresenta ao mesmo tempo obstáculos e facilidades. O que dificulta sua conceituação, por um lado, é o fato de não se tratar de uma doutrina dogmática e esquematizada, como costumam ser as ideologias em suas tentativas de oferecer soluções mágicas e simplistas para os complexos fenômenos da vida social humana. Enquanto progressistas acreditam ser possível resolver todos os problemas da humanidade por meio de fórmulas ideológicas apresentadas a priori como infalíveis (às quais todos devem adequar-se homogeneamente a fim de não obstruírem o “progresso”), os conservadores tendem a encarar tais propostas presunçosas com redobrado ceticismo. Enquanto os primeiros, enfim, se esforçam para transformar o mundo – radicalmente e a qualquer custo –, estes últimos preferem, antes, tentar compreendê-lo em toda a sua complexidade; uma complexidade, diga-se de passagem, que não pode ser abarcada por um único livro, manual ou manifesto de regras e ditames ideológicos.
Assim sendo, ao evitar as utopias próprias dos ideólogos, os conservadores buscam orientar suas ações políticas tendo como base de referência a experiência humana ao longo de séculos e milênios – e toda a sabedoria acumulada, resultante dessa experiência. Assim, o que é bom e já foi reiteradamente testado e aprovado pelo crivo da história – em se tratando de formas de governo e organização social, por exemplo –, não precisa ser drasticamente alterado; basta que seja reformado ou, quando muito, aperfeiçoado.
No que diz respeito à rejeição – tipicamente conservadora – das proposições políticas utópicas, o historiador Edward H. Carr (2019) apresenta uma interpretação particularmente interessante. Para ele, a famosa antítese Utopia versus Realidade reproduz em si mesma outra antítese igualmente válida, entre Radicais, de um lado; e Conservadores, de outro.
Como se nota, a ponderação e a análise histórica são pedras basilares do conservadorismo, que, como já vimos, é inimigo não do progresso, mas sim da inconsequência e da irresponsabilidade políticas. Caminhar com passos firmes e seguros é o segredo para seguir sempre caminhando – e, também, para evitar as quedas e as armadilhas pelo caminho. Eis o que propõe, em resumo, o conservadorismo: avançar com firmeza e cautela, mantendo as valiosas conquistas do passado para assegurar a todos um porvir mais auspicioso.
Concluindo essa linha de raciocínio, se se quisesse traçar um paralelo com a área da filosofia, tomando-lhe emprestado um termo específico, seria talvez possível descrever os pensadores conservadores como empiristas políticos, já que, ao buscarem soluções para os problemas de suas sociedades e países, valorizam sobremaneira o conhecimento empírico em detrimento de formulações artificiosas e pretensamente racionalistas.
1.1. Definições, análises e explicações de autores e pensadores abalizados
Em função, muito provavelmente, dessas características peculiares, o filósofo e historiador Michael Oakeshott (1901-1990) sempre preferiu classificar o conservadorismo como uma inclinação ou disposição de espírito, e nunca como um conjunto de dogmas ou doutrinas políticas. Com a seguinte definição, que tem inclusive um certo apelo poético, ele tenta explicar o que é a postura conservadora: “[...] é uma disposição típica de quem tem algo a perder; algo que o tempo ensinou a amar” (OAKESHOTT, 2018, p.178).
Entra em cena, nesse caso, a importância da tradição no âmbito do conservadorismo. O conservador é, com efeito, alguém que reconhece a relevância dos conhecimentos ancestrais e tradicionais para o salutar progresso das sociedades no presente.
Nesse sentido, é interessantíssima a interpretação de Edmund Burke (1729-1797), considerado por muitos o pai do conservadorismo moderno. Para ele, a ideia de tradição pode ser compreendida como uma espécie de “contrato entre gerações”, ligando de modo indissolúvel as sociedades do passado, do presente e do futuro – algo que vai ao âmago do entendimento conservador da questão (BURKE, 2014).
Outra definição que merece destaque – em especial, por sua genial simplicidade – é a de Gilbert K. Chesterton (1874-1936), para quem a tradição consiste, basicamente, na “democracia projetada através dos tempos” (CHESTERTON, 2013, p.77). Ou seja, valorizar o tradicional significa dar vez e voz às incontáveis gerações de seres humanos que nos precederam, cujo legado sapiencial não apenas podemos como devemos considerar.
O poeta e crítico literário T. S. Eliot (1888-1965), por sua vez, fala sobre a necessidade de se valorizarem as “coisas permanentes” (ou, em inglês, permanent things): tudo aquilo que, devido ao seu valor intrínseco e inegável, constitui-se em baluarte e repositório de um processo de desenvolvimento civilizacional que é abrangente e multissecular (ELIOT, 2016). A herança civilizacional decorrente desse processo é formada por obras de arte, formas arquitetônicas, textos sagrados, composições musicais e até mesmo princípios éticos e valores morais: coisas que merecem ser preservadas e conservadas, graças a seu caráter único e especial, atestado inequivocamente pelo julgamento dos séculos; coisas, enfim, de cuja permanência depende, em última instância, a própria sobrevivência de uma civilização. Lembremo-nos, a propósito, de Gustav Mahler, que costumava dizer que a tradição não é o culto às cinzas, mas a preservação do fogo.
Oportunamente, outro autor de cepa genuinamente conservadora, José Ortega y Gasset (1883-1955), fez análises brilhantes a respeito da fragilidade desse edifício construído a duras penas, que convencionamos chamar de civilização. Para o filósofo espanhol, conservar a estrutura civilizacional que nos cerca é tarefa importantíssima e muito melindrosa, embora poucas pessoas se deem conta disso. Sua crítica dirige-se especificamente ao homem-massa, sujeito alienado em sua arrogante ignorância, que “crê que a civilização em que nasceu e da qual usa seja tão natural e primigênia quanto a própria natureza” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 165). No entanto, continua o filósofo,
[...]se você quer se aproveitar das vantagens da civilização, mas não se preocupa em sustentar a civilização, você se ferrou. Num piscar de olhos, você fica sem civilização. Um descuido e, quando você olha em volta, tudo evaporou! (ORTEGA Y GASSET, 2016, p.163).
Esse zelo civilizatório de cunho conservador, que Ortega y Gasset demonstrava ainda no início do séc. XX, encontrou ecos, mais recentemente, no arguto pensamento de Roger Scruton (1944-2020), eminente acadêmico britânico consagrado Sir pela Rainha Elizabeth II. Diz ele:
O conservadorismo advém de um sentimento que toda pessoa madura compartilha com facilidade: a consciência de que as coisas admiráveis são facilmente destruídas, mas não são facilmente criadas. (SCRUTON, 2015, p. 9).
Destruir é fácil; construir, porém, é muito mais difícil. Não por acaso, os que querem pôr abaixo tudo o que se encontra consolidado pela tradição, raramente conseguem explicar, de modo concreto e plausível, o quê, exatamente, será colocado no lugar daquilo que, segundo eles, precisa ser abandonado ou destruído.
Tudo isso, finalmente, acaba conduzindo a uma definição simples e acessível da essência do conservadorismo; uma definição que, apesar de sua concisão, acaba resumindo muito bem a postura ou inclinação conservadora. Quem a fornece é Russell Kirk (1918-1994), autor que define o conservadorismo basicamente como “a Política da Prudência” (expressão, aliás, que dá título a um de seus mais famosos livros). Kirk (2014), como bom conservador, sustenta com maestria a tese de que sempre se devem preferir políticas prudenciais em detrimento de políticas ideológicas e/ou dogmáticas. Demonstra, ademais, que quando isso não acontece, os resultados costumam ser desastrosos. As grandes tragédias políticas do século XX, motivadas e catalisadas por ideologias – o comunismo, o nazismo e o fascismo – são prova cabal da veracidade desse argumento.
Neste ínterim, tendo-se abordado a definição kirkeana de conservadorismo, recorde-se que Platão, 2.400 anos atrás, já considerava a prudência a principal virtude a ser cultivada por um político ou estadista.
2. O tripé da política conservadora
De acordo com Russell Kirk (2014), enquanto os ideólogos encaram a política como um instrumento revolucionário destinado a transformar radicalmente a sociedade e até mesmo a natureza humana, os conservadores pensam nas políticas de Estado como primordialmente destinadas a preservar a ordem, a justiça e a liberdade. Note-se que a sequência, nesse caso, precisa ser respeitada: para que possa verdadeiramente haver justiça e liberdade, é preciso, antes de tudo, existir ordem, sabiamente subdividida por Kirk em “ordem da alma” (a ordem interior, ou “ordem moral”) e “ordem da comunidade politicamente constituída” (a ordem externa, ou “ordem constitucional”). Indo ao encontro dessa justa ênfase que é dada à ordem no contexto da política conservadora, mostra-se pertinente a inusitada reflexão de Eric Voegelin, para quem o estabelecimento (e a consequente manutenção) de um governo pode ser comparado, numa analogia cósmica, a um “ensaio da criação do mundo”, já que é preciso, para tanto, estabelecer um pequeno mundo de ordem – ou cosmion, na terminologia voegeliana – a partir “da vastidão disforme de desejos humanos conflitantes” (VOEGELIN, 2012, p.291).
É de suma importância perceber que os conservadores, conquanto valorizem a liberdade, não a tomam como um valor absoluto, totalmente divorciado de outros conceitos e referenciais. Para pensadores como Russell Kirk (2014), aliás, a liberdade total – compreendida abstratamente e desvinculada de uma base perene de princípios éticos e valores morais – constitui-se no caminho perfeito para a perdição do homem e a aniquilação da própria civilização (e, por conseguinte, para o desmantelamento de qualquer sociedade que se pretenda estável, harmônica e sadia). Essa subordinação da liberdade aos conceitos preeminentes de ordem e justiça, própria do conservadorismo, pode ser usada, inclusive, como forma de se distinguirem conservadores de liberais – distinção que se mostra muito útil quando se tem em mente que ambos os grupos tendem a ser apontados como ramificações do que se convencionou chamar de Direita em nosso moderno espectro político.
No que se refere ao segundo elemento da tríade conservadora, isto é, à justiça, diga-se resumidamente que Aristóteles, em seu livro A Política – obra seminal do pensamento filosófico ocidental –, já a considerava o pilar de todas as sociedades civilizadas. Na mesma obra, vale ressaltar, o grande filósofo apresenta uma frase que se coaduna perfeitamente com o entendimento conservador das questões que envolvem a pólis: a Política, diz Aristóteles, não faz os homens, e sim os emprega tais como a natureza os fez.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nada poderia encerrar melhor este opúsculo político do que a supracitada sentença aristotélica. De fato, ela sintetiza a essência do pensamento conservador aplicado ao âmbito da política. O objetivo do conservadorismo, na corroboração de Roger Scruton (2015), não é corrigir a natureza humana, e sim lidar com a realidade tal como ela é.
Como visto, o conservadorismo apega-se ao que já foi testado e aprovado pela experiência humana ao longo dos tempos, mostrando-se avesso a todo tipo de artificialismo ou radicalismo de fundo ideológico. O conservador, apesar de buscar sempre o melhoramento da sociedade em que vive, entende que não é aconselhável fazer isso de modo incauto e imprudente. Da mesma maneira, sabe que é impossível criar “paraísos terrenos” por meio de ações políticas, sejam elas assumidamente revolucionárias ou não.
O conservador, por fim, diferencia-se do ideólogo – e de quaisquer outros revolucionários e extremistas – por assentar suas proposições em análises circunspectas e cautelosas da realidade histórica da qual é fruto e na qual se vê inserido. Politicamente falando, o conservadorismo é, em suma, a negação da ideologia e, concomitantemente, a afirmação de uma forma particularmente prudencial e conscienciosa de sabedoria prática, voltada, evidentemente, ao bem-comum e à boa condução da vida em sociedade. Ou, nas palavras de Scruton (2015, p.181), “o conservadorismo tenta compreender como as sociedades funcionam e criar o espaço necessário para que sejam bem-sucedidas ao funcionar”.
REFERÊNCIAS
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AZAMBUJA, Darcy. Introdução à Ciência Política. 2ª.ed. São Paulo: Globo, 2008.
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. 1ª.ed. São Paulo: Edipro, 2014.
CARR, Edward H. The Twenty Years’ Crisis: 1919-1939. New York: Perennial/HarperCollins, 2019.
CHESTERTON, Gilbert K. Ortodoxia. 1ª.ed. Campinas: Ecclesiae, 2013.
ELIOT, T. S. A Ideia de Uma Sociedade Cristã. 1ª.ed. São Paulo: É Realizações, 2016.
_____. Notas para uma Definição de Cultura. 1ª.ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
KIRK, Russell. A Política da Prudência. 1ª. ed. São Paulo: É Realizações, 2014.
PLATÃO. A República. 2ª. ed. São Paulo: Martin Claret, 2000.
OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo. 2ª. ed. Belo Horizonte: Editora yiné, 2018.
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. 5ª. ed. São Paulo: Vide Editorial, 2016.
SCRUTON, Roger. O que é Conservadorismo. 1ª.ed. São Paulo: É Realizações, 2015a.
_____. Como ser um Conservador. 1ª.ed. Rio de Janeiro: Record, 2015b.
VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas – Volume I: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. São Paulo: É Realizações, 2012.