O Legado Vivo de Olavo de Carvalho
Vou poupar meus queridos leitores de repetir minhas críticas e preocupações que me despertavam o senhor, falecido hoje, sobre questões como educação, saúde, ciência, direitos humanos, revisionismo histórico, antiacademicismo e viralatismo cultural. A educação, o tema mais querido por mim, apesar de tão atacada, teve nosso patrono ainda mais divulgado e procurado por leitores, graças às críticas superficiais e injustas perpetradas contra Paulo Freire. Quero antes dizer sobre certas pessoas que o seguiam, que lamentaram por sua morte como verdadeiros discípulos e por que elas se sentem órfãs.
Não são pessoas comuns. Viajam para o exterior tal como o brasileiro comum viaja para roça em algum feriado prolongado. Conhecem bem não só nosso idioma, como dominam muito bem outras línguas – que aprendem muitas vezes por vaidade e pela facilidade herdada de excelentes escolas e contatos com outras culturas, privilégios que o dinheiro paterno e materno garantem desde os primeiros anos de vida. Em outras palavras, não são pessoas ignorantes ou com algum déficit em sua formação escolar ou acadêmica, são antes sim portadoras de um capital cultural e social que a maioria dos brasileiros sequer terão acesso – ainda que no nível mais básico.
Ao contrário que muitos militantes esquerdistas acreditam, estas pessoas que levavam Olavo de Carvalho a sério e o tomavam como uma referência cultural e intelectual não faziam isto por alguma dificuldade de raciocínio ou analfabetismo científico. Digo que até mesmo pessoas mais simples, porém vividas o bastante para discernir mentirosos e charlatões de educadores, sabiam de quem se tratava Olavo de Carvalho.
A questão é o que faz pessoas altamente capacitadas e instruídas a levarem a sério Olavo de Carvalho. A resposta é simples: ele representava uma tentativa de desconstrução de pautas sociais tais como as do movimento negro, LGBTQIA+, sem-terra e outras causas e pessoas que defendiam as minorias sociais. Ao tomar pautas como direitos humanos e desigualdades sociais como parte de um discurso de poder da esquerda, estes seus seguidores se poupavam de qualquer preocupação ou culpa por privilégios de classe, cor e gênero que usufruíam.
A defesa destas pautas ainda gera nos privilegiados um desconforto existencial ao relativizar seus sucessos e conquistas e os fazer perceberem que aquilo separa eles dos mais pobres e ignorantes não é um talento natural, ou algo especial que ilumina a existência deles os tornando especiais. Olavo trazia este alívio, um antídoto contra a empatia e altruísmo que poderiam leva-los a questionar a meritocracia cega que os faziam acreditar que eram portadores de uma luz especial que os faziam merecer o respeito, condições de vida e os prêmios que os demais não mereciam.
A gritante desigualdade de gênero e raça no Brasil, pauta obrigatória para qualquer um que se meta a tratar de política e a se dizer de esquerda, era negada, relativizada e vilipendiada como se fosse um invenção ou uma narrativa da esquerda. Professores estariam doutrinando, e não denunciando as bases econômicas, culturais e raciais que fundaram este país.
Tais alegações estapafúrdias, de quem não tem peito de afirmar sua predileção e conformidade com as injustiças sociais, eram engolidas com satisfação por muitas pessoas. Estas sim, capazes de compreender suas falácias e manipulações, com as quais se pretendia filosofo e professor, mas que ignoravam estes problemas por uma "boa causa": a relativização das preocupações e injustiças apontadas pela esquerda e a responsabilidade da elite na estruturação destas desigualdades.
Estas pessoas buscavam filosofia? Pessoas capazes de tirar um tempo para fazer uma especialização no exterior, capazes de estudar em faculdades renomadas e conceituadas aqui e no exterior, precisavam dos conselhos de um homem (que nunca se preocupou em se formar ou mesmo de frequentar uma faculdade onde poderia aprofundar suas teses, tais como Roger Scruton e outros)? Poderia ter estudado nos EUA mesmo, onde encontraria faculdades “não-marxistas” o bastante para não ofender seus brios.
Olavo se contentou com esta claque, com o fascínio e admiração que nunca foi por sua filosofia, pois não a tinha mais do que estas pessoas poderiam em outros lugares e com outros professores buscarem e com mais qualidade. Ele pegou este ódio de classe, antes grosseiro e autoritário com cores militares e pouco liberais, e deu a ele uma roupagem pseudo-filosófica e crítica. Uma roupagem que escondia a nudez e crueza dos preconceitos de classe, racial e de gênero que justificam as desigualdades e privilégios que estruturam até hoje nosso país.
Não pouco pobres, mulheres e negros embarcaram nessa, por negarem uma realidade de difícil admissão de que este país não é só injusto, mas produzido a cada decisão injusta de um juiz, a cada voto de um deputado lobista, a cada lei para ferrar trabalhadores e minorias, a cada vez que interesses de madeireiros, mineradores e latifundiários prevalecem sobre consumidores, indígenas e o meio ambiente, a cada momento em que a escola recua de seu papel democrático e inclusivo em nome de uma modelo tradicional que normaliza as desigualdades de aprendizagem.
Olavo de Carvalho é herói de toda esta gente: a classe média orgulhosa de seus "méritos" que não admite seus privilégios, o pobre que ainda acredita que sua pobreza é gerada pela falta de esforço ou inteligência, aquele que ainda acredita que no Brasil racismo se limita a casos isolados e aquele que vindo das minorias sociais renega sua origem e as dificuldades daqueles que ele deixou para trás.