O rabo da imprensa
Diante de dois ministros, Bolsonaro assim respondeu a pergunta sobre o valor gasto em leite condensado em 2020: ─ “É pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essa lata de leite condensado... Essas críticas não levam a lugar nenhum... Vai para puta que pariu ... Imprensa de merda”.
O episódio mostra a estupidez do presidente, de seus ministros que riram e aplaudiram os vitupérios, dos apoiadores que gritam “mito”. O Brasil não tem hoje um governo; tem um desgoverno chulo, depravado, miliciano, armamentista, corrupto, clientelista, fisiologista, entreguista, predador, despótico, nepotista, ditatorial, fascista, genocida, negacionista...
Essa lista de desqualificações não tem fim. Não é novidade. Em 2018, quando o nefasto mito foi eleito, já se sabia que era apoiador de milicianos, de notórios torturadores, que em três décadas de mandato parlamentar só fizera votar a favor de projetos que retrocediam conquistas democráticas, que no exército fora punido por indisciplina, que exaltava o armamentismo e declarava que bandido bom é bandido morto. Quem não sabia quem era o mito?
Graças à soma de vários fatores, Bolsonaro foi eleito: mentiras midiáticas baseadas em avançada tecnologia (Cambridge Analytica), suposto atentado a facada (até hoje não bem esclarecido), massiva abstenção no segundo turno da eleição e, talvez sobretudo, a demonização midiática do concorrente do mito. A grande mídia brasileira vem há décadas demonizando todos os partidos de esquerda e organizações populares. Cumpre um papel de agente do obscurantismo que deve envergonhar aqueles que ainda têm noção do que seja o jornalismo digno.
Então o “... É pra enfiar no rabo de vocês da imprensa essa lata de leite condensado” talvez não seja mais que a colheita obrigatória do plantio voluntário que a grande imprensa tem feito no Brasil. Não nos enganemos, a grande imprensa é posse da elite burguesa, trabalha para ela. Não quer que a inclusão social, a educação, o esclarecimento e emancipação política dos pobres e trabalhadores venham a ameaçar seus privilégios seculares, herdados da monarquia e da escravatura. A grande imprensa demoniza os esforços no sentido da justiça social, ao mesmo tempo que sonega informações que revelem as decisões governamentais que retrocedem em suadas conquistas democráticas. Tem sido assim inclusive agora, no governo do mito, quando o projeto ultraliberal está sendo aprofundado, com fragilização do Estado e do serviço público, precarização do emprego e trabalho, debilitação dos sindicatos, restrição à aposentadoria, proteção aos rentistas milionários, loteamento das estatais e recursos naturais do país, privatização da saúde, educação e outros setores estratégicos... Esta lista também não tem fim.
A grande imprensa amiúde ultrajada por Bolsonaro tem papel medular nesta situação. Tem rabo preso com interesses oligárquicos. Ajudou a eleger um ensandecido. Os ultrajes parecem um jogo de cena numa pantomima bem ensaiada. Não é no rabo da imprensa que o insulto do mito manda enfiar a lata de leite condensado. Na verdade é no rabo do povo.