Bolsonaro está matando bolsonaristas

(As mortes de hoje pela Covid-19 e as futuras, entre os que não vão se vacinar, podem, agora, com mais certeza, ser atribuídas a Jair Bolsonaro)

Antes que o leitor tire conclusões precipitadas sobre o título, julgando ser este mais um artigo para defenestrar o presidente Jair Bolsonaro, e antes que adentre o argumento para explicitá-lo, preciso deixar claras algumas coisas, e isso em favor do presidente.

Embora pareça contraintuitivo, este artigo é dirigido especialmente para os bolsonaristas. Ele foi escrito para ser lido por todos, pelo presidente, por seus apoiadores, seus detratores e isentos, mas acho que ele será particularmente útil para os dois primeiros (caso o presidente e seus apoiadores tenham um mínimo de capacidade de autocrítica, o que líderes que se consideram autossuficientes e seus seguidores fanáticos parecem não possuir). É um desejo meu que não acredito que aconteça, dado este espaço modesto em que está sendo escrito, e a forma rasteira e de imediata repulsa com que parecem ler qualquer coisa que os aborreçam.

Numa reflexão isenta e ponderada, sem vieses subjetivos, temos que concordar que o presidente Jair Bolsonaro não é o responsável por todas as 180000 mortes por Covid-19 até agora contabilizadas no Brasil, nem pode, por isso, ser tido como genocida, como até a imprensa séria o vem adjetivando ultimamente. Genocídio é uma palavra muito forte e caracteriza o extermínio de uma grande quantidade de pessoas por decisão deliberada de um dirigente, como foi o caso de Hitler, por exemplo, que promoveu o Holocausto (mortes em massa em câmaras de gás) por puro ódio racista contra os judeus, compartilhado com seus seguidores.

Não é o caso de Jair Bolsonaro, que não me parece ser pessoa a desejar a morte de alguém. Ele não criou a Covid-19, nem foi responsável pelas primeiras mortes ocorridas no berço da pandemia, a cidade de Wuhan, na China, em janeiro de 2020. A doença tornou-se uma pandemia porque se alastrou, além de pela China, também pelos principais países da Europa, pelos EUA, Brasil e Índia, e por entre outros menos afetados.

No auge da primeira onda da pandemia, as mortes eram na maioria de pessoas na faixa etária acima de 60 anos e de pessoas com comorbidades, isto é, com outras doenças suscetíveis à ação do coronavírus (muitas vezes portadoras de ambas as condições). Assim, a Covid-19 era fatal mais para as pessoas mais enfraquecidas, seja pela idade avançada ou por já portarem outras doenças preexistentes. Essas foram as causas naturais iniciais das mortes, que nada tinham a ver com atribuições humanas. Portanto, essas mortes iniciais, no Brasil, não foram causadas por Bolsonaro.

Contudo, a partir das reações diferentes das autoridades daqueles países à pandemia, as mortes começaram a aumentar ou diminuir, de acordo com essas reações. Os dirigentes negacionistas, que negaram e ainda negam a gravidade da pandemia, como Trump e Bolsonaro, podem ser, sim, responsabilizados, por suas atitudes, pelo crescimento das pessoas contaminadas pela doença e, consequentemente, pelo aumento das mortes em seus respectivos países. Não é por outra razão que os dois países figuram, desde o início da pandemia, entre os primeiros colocados tanto no número de contaminados como no de mortes.

Lembremos que o Brasil, no início da pandemia em seu território, contava com um excelente ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que, médico, com sua postura firme e empática, granjeou o respeito dos governadores, da imprensa e da população. Conversando com os governadores, principalmente com João Doria, adversário político mais ostensivo de Bolsonaro na próxima eleição presidencial de 2022, Mandetta articulava planos de isolamento social para conter o avanço da pandemia. Admirado por todos, Mandetta, porém, não percebeu, ou não quis perceber, que desagradava seu próprio chefe Bolsonaro, contrário às medidas de contenção promovidas pelos governadores, principalmente por João Doria, e, pior, enciumado pela projeção nacional adquirida pelo subordinado. Ao invés de incentivar Mandetta, Bolsonaro passou a sabotar seus planos. Alegando uma defesa da economia, que, segundo ele, não podia parar com “lockdowns”, incentivava aglomerações, não usava máscara em público e chamava a Covid-19 de “gripezinha”.

Mandetta, na época em que a doença começava a se espalhar pelo país, alertava o presidente sobre a possibilidade de que o número de mortes alcançasse a soma de 180000 até o final de 2020 (previsão notavelmente precisa, corroborada há poucos dias, no início de dezembro). Com muito tato, tentava demover o presidente de suas atitudes negacionistas. Mandetta reclamou, no momento em que se despediu do cargo (o que aconteceu depois que as relações entre os dois haviam-se deteriorado de vez), que combinava uma coisa com o presidente num dia, para ser, no dia seguinte, contrariado com novas atitudes negacionistas, contrárias ao que haviam combinado no dia anterior.

É possível que, se Bolsonaro tivesse dado ouvidos a Mandetta, e o tivesse apoiado, o número de mortes pela Covid-19 hoje seria bem menor, o que permite concluir que as mortes a mais que podiam ter sido evitadas podem ser atribuídas, sim, a Bolsonaro.

Após ser despedido, Mandetta foi substituído por Nelson Teich, também médico, que Bolsonaro supôs ser mais maleável às suas ideias e submisso ao seu comando. Enganou-se, porém, porque Teich, não querendo manchar sua biografia, pediu demissão após um mês. Não conseguindo nenhum outro médico respeitável que aceitasse cargo tão espinhoso, Bolsonaro optou por efetivar no cargo Eduardo Pazuello, um general da ativa, especialista em logística militar, mas sem nenhum conhecimento de saúde pública, que fora chamado ao ministério para auxiliar Teich, mas, na verdade, para manter o novo ministro sob seu cabresto curto (ressabiado que Bolsonaro ficara com a experiência nada agradável com Mandetta).

Bolsonaro, porém, tanto fez, que acabou por contrair a doença (sobre isso escrevi um artigo recente aqui no Recanto intitulado “Força Corona”, comentando um artigo polêmico de Hélio Schwartsman, um excelente filósofo e articulista da Folha de São Paulo).

Entretanto, longe de ter aprendido com a lição, Bolsonaro, após curar-se, continuou com suas atitudes negacionistas e a colaborar para o aumento das doenças, contrariamente ao que aconteceu com outro negacionista, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que, arrependido após pegar a Covid-19, passou a defender o isolamento social e a usar máscara em público.

Atualmente, na sua persistente refrega com João Doria, Bolsonaro tem tido atitudes inacreditáveis para um dirigente que prezava pela defesa da economia. Boicota persistentemente uma vacina que parece ser a mais promissora para ser aplicada no Brasil, a Coronavac, só porque foi viabilizada em São Paulo, no Instituto Butantan, por Doria. Por uma picuinha política, está buscando atrasar o inicio da vacinação, o que vai provocar mais mortes pela Covid-19.

No caso da querela da vacina com Doria, Bolsonaro reage aos dissabores provocados pela sua própria conduta em relação à vacina de forma quase infantil, com frases que parecem saídas de uma criança a que estão querendo arrancar um doce (no seu caso, a presidência da República, um presente que lhe caiu no colo). Acontece que, enquanto Doria tratava com os chineses a compra da Coronavac, vacina desenvolvida pela Sinovac Biotech, da China, incluído a transferência de tecnologia para o Instituto Butantan para fabricação aqui, o governo federal contratava a vacina britânica da Universidade de Oxford, fabricada pela AstraZeneca. Numa reunião de Pazuello com os governadores, Doria ofereceu a vacina Coronavac para o governo federal. Pazuello, orientado por Bolsonaro, comprometeu-se, na reunião, a adquirir 48 milhões de doses. No dia seguinte, porém, Bolsonaro, diante de cobranças de seu público das redes sociais, mostrou-se indignado e traído, como se ele não tivesse dado sua autorização para a compra a Pazuello, e, peremptoriamente, negou que compraria a vacina chinesa. No dia seguinte, Pazuello foi internado com Covid-19. Visitando seu ministro no hospital, os dois sem máscaras, naturalmente, ocorreu então, entre ambos, um diálogo que ficará, na história deste governo, como o mais abjeto exemplo de subserviência de um ministro a seu presidente. Sem mágoa, animado pela visita solidária de seu superior, disse Pazuello para a câmera que os filmava: “Um manda, o outro obedece".

Como a vacina da Oxford atrasou seu cronograma de testes devido a um erro de dosagem na fase 3, que provocou diferentes resultados nos grupos analisados, não se sabe quando ela ficará disponível para o Brasil. Quando um dos voluntários da fase 3 da Coronavac faleceu, Bolsonaro, alegre com o possível atraso da vacina de Doria, comemorou com seus seguidores das redes sociais, dizendo: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Colocando-se na terceira pessoa do singular, como todos que têm dúvidas sobre a própria capacidade de liderança, segundo a psicologia comportamental. A Anvisa, pressionada por Bolsonaro, sem mesmo buscar investigar, imediatamente bloqueou todos os testes com a Coronavac. Mas, no mesmo dia em que Bolsonaro comemorou a morte do voluntário, descobriu-se que esta ocorrera por suicídio com ingestão de um coquetel de substâncias químicas, sem nenhuma relação com a vacina. Dois dias depois, pressionada pela opinião pública e pelo STF, e incomodada com o vexame, a Anvisa voltou atrás e liberou a continuação dos testes. Em seguida, certo do sucesso da Coronavac, Doria encurralou Bolsonaro, ao anunciar o início da vacinação em São Paulo, marcando-o para 25 de janeiro de 2021.

Imediatamente os outros governadores, sentindo que ficariam para trás diante da iniciativa bombástica de Doria, pressionaram o governo federal, marcando uma reunião com Pazuello. Batendo boca com Doria, que questionou a negativa do governo federal em incluir a Coronavac no plano de imunização nacional, Pazuello informou-o de que a vacina chinesa seria comprada, desde que houvesse preço e demanda. Mas deu na reunião uma informação desastrada, a de que a aprovação pela Anvisa de qualquer vacina demoraria cerca de dois meses, o que levaria o início da vacinação para março de 2021. Na verdade, esse prazo esticado era para dar tempo para que a vacina da Oxford, única até então contratada pelo governo federal e atrasada em relação às outras vacinas, fosse viabilizada no Brasil. A ameaça de Doria de judicializar a briga com o governo federal, levando o problema para o STF, caso politicamente a Anvisa atrasasse a aprovação da Coronavac, e a reação da opinião pública e da imprensa ao prazo excessivo de dois meses para a aprovação de qualquer vacina, forçaram novamente o governo a mudar de plano. Contratando às pressas a vacina da Pfizer, a primeira no mundo a iniciar com sucesso uma vacinação, no Reino Unido, passou a prometer que a vacinação começaria no Brasil ainda neste ano, até o final de dezembro. Pressionado pelo STF, que passou a arbitrar todo o imbróglio, mediante questionamentos de governadores, o governo enviou ao STF um plano de imunização nacional, sem data de início e sem mencionar a Coronavac como uma das vacinas que utilizaria no plano. O ministro do STF responsável pelo caso, Ricardo Lewandowski, deu 48 horas para que o governo federal determinasse a data de início da vacinação. Sem determinar nenhuma data, o governo federal respondeu que iniciará a vacina cinco dias depois que a Anvisa aprovar alguma vacina. João Doria, por outro lado, prevendo uma inevitável judicialização do problema, prometeu que, em 23/12/20, tendo dados mais completos sobre os resultados da Coronavac, e aval da agência chinesa, encaminhará o pedido de autorização para a Anvisa. E assim estamos hoje, 16/12/20, aguardando os próximos lances dessa “guerra da vacina”, que não sabemos como terminará.

Mas esse comportamento errático do governo federal, em modo “barata-voa”, que diz uma coisa num dia, para desmentir no dia seguinte, com um ministro da Saúde excessivamente subserviente a seu chefe, na verdade reflete o comportamento do próprio chefe da nação, Jair Bolsonaro, que, em sua obsessão negacionista diante da pandemia, apoiada, de resto, por seus fanáticos seguidores das redes sociais, parece se dar conta de que cada vez mais se isola do mundo racional, humanitário e de bom senso que enfrenta seriamente uma pandemia mortal.

Em mais uma frase desastrada, Bolsonaro, num evento público, sempre sem usar máscara, quando esse recrudescimento do número de mortes volta a preocupar a todos, minimizou a doença de novo, dizendo que “a pandemia está no finalzinho”, o que gerou imediata reação de repulsa da imprensa.

É inacreditável a capacidade de Bolsonaro, a cada dia, jogar mais lenha na fogueira da sua irresponsabilidade sanitária, e abastecer este artigo, enquanto está sendo escrito, de novas frases suas de escárnio à saúde dos brasileiros. Ontem, 15/12/20, disse, com todas as letras: “Eu não vou tomar vacina e ponto final, problema meu”.

Essa frase denota, mais uma vez, o quanto Bolsonaro está longe de entender o que ele é como chefe da nação. Ao dizer que é problema dele não tomar a vacina, ignora o estímulo que está dando aos seus seguidores, que, como ele, irão esnobar a vacina e irão morrer aos milhares, e que se tornarão, na verdade, aí sim, o “problema que ele disse não ser dele”. Cabe lembrar aqui o conceito de “virtú”, de Maquiavel. “Virtú” não quer dizer virtude, mas, sim, a capacidade de alguém com poderes se ajustar às circunstâncias de seu entorno, como, por exemplo, a capacidade do dirigente de uma nação de tomar as atitudes necessárias para proteger seu povo, mesmo que elas contrariem seus princípios pessoais (por exemplo, se ele segue o princípio pessoal de “não matar”, terá que contrariá-lo ao ter o país invadido por outro país, e ordenar que seus soldados defendam o país matando os invasores). É disso que trata a famosa frase “os fins justificam os meios”, atribuída a Maquiavel. Mas Bolsonaro faz exatamente o contrário de “virtú”. Ao aferrar-se a um princípio pessoal, promove a morte de milhares de indivíduos de seu próprio povo.

Bolsonaro age assim porque, como todo líder que arregimenta grande número de seguidores, como foi, no outro extremo do espectro político, o caso de Lula, ele passa, em autoengano, a acreditar que possui os poderes lhe atribuídos pela massa, que é, de fato, um mito invencível, já que sobreviveu a uma facada e à Covid-19.

Mas, a despeito disso tudo, as curvas estatísticas das contaminações e mortes nos últimos meses pareciam estar cedendo lentamente no Brasil. As mortes, de uma média diária de 1200 mortes por dia, no pico da pandemia, chegaram a ceder para cerca de 400 por dia no final de outubro. Entretanto, em novembro, os números, de contaminações e mortes, voltaram a subir, e hoje, 16/12/20, a média de mortes está em 650 por dia, que aumentará por conta das festas de fim de ano.

Bolsonaro, na verdade, se pensar sensatamente e prezar por seu futuro, deveria atentar para um dado presente nesse novo repique da doença, preocupante especialmente para ele, que deve estar presente também na segunda onda na Europa e nos EUA: a maioria das mortes que estão ocorrendo agora não é mais da faixa etária acima de 60 anos, como foi no auge da pandemia, mas da faixa etária de jovens entre 30 e 50 anos. Isso porque a segunda onda na Europa e nos EUA e o recrudescimento no Brasil estão ocorrendo porque os governos, diante das quedas das curvas da primeira onda e a necessidade de reativar as economias combalidas pela pandemia, começaram a relaxar as medidas de contenção. Com isso, as pessoas, cansadas do isolamento social a que foram submetidas durante tanto tempo, voltaram com tudo a fazer aglomerações em praias, bares, restaurantes, festas e comércio. Abandona-se o isolamento social e o uso de máscaras. A segunda onda na Europa e nos EUA e o recrudescimento no Brasil devem-se, agora, não a um fator de ordem biológica (velhice e doenças preexistentes) que impulsionou a primeira onda, mas a um fator de ordem social (comportamento de abandono das medidas de contenção).

É por isso que Bolsonaro deve se preocupar. Quantos dos que se aglomeram em festas, bares e praias, não o fazem porque viram seu presidente minimizar a pandemia, chamando-a de “gripezinha” e, pior, chamando de “maricas” a todos que cumprem protocolos e o isolamento social, usam máscaras e álcool em gel? E a pergunta final que Bolsonaro devia se fazer: já que estes jovens, entre 30 e 50 anos, que estão hoje morrendo de Covid-19, estão absorvendo o que ele prega, serão eles, em sua maioria, os bolsonaristas?

Outro dado que corrobora essa impressão macabra. O recrudescimento de contaminações e mortes no Brasil está ocorrendo em regiões onde Bolsonaro obteve ampla votação na eleição que o elegeu para presidente em 2018, o que leva a crer que quem está locupletando hospitais hoje são os bolsonaristas, que, emulando seu líder, desprezam o comportamento preventivo contra a pandemia, aglomerando-se em festas, bares e praias.

Conclusão dramática da costura desses fatos: quem está morrendo de Covid-19, hoje, no Brasil, são os fanáticos que seguem seu líder Bolsonaro.

Isso não é uma torcida de quem seja anti-Bolsonaro. É apenas um argumento lógico baseado em fatos.

E, nesse caso, todos os que lutam contra a pandemia e sofreram com ela, que se horrorizam com o comportamento negacionista do presidente, estariam secretamente, num “schadenfreude” (palavra alemã que significa “prazer com a desgraça alheia”) vingativo, olhando com menos angústia para as mortes de agora?

Por isso, acho que Bolsonaro faria bem em ler este artigo.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 16/12/2020
Reeditado em 16/01/2022
Código do texto: T7137231
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