O RISCO DA LONGA DERROTA E O TIPO DE RESISTÊNCIA QUE A UNIVERSIDADE PEDE
 

Ivonaldo Leite
(Professor da Universidade Federal da Paraíba)

Carlos Machado
 (Universidade Federal do Rio Grande/RS)
 
 

Até fins do ano passado, o Presidente Jair Bolsonaro e os seus aliados já tinham feito intervenções em metade das universidades federais que realizaram eleições para as suas reitorias. Informações razoavelmente consistentes dão conta que professores e gestores têm sido espionados, tanto em seus afazeres institucionais como mesmo em suas vidas pessoais, como no caso das redes sociais[1]. Nos estados, grupos de apoiadores do Presidente - com muitas pessoas, inclusive, alheias ao meio universitário - passaram a ser estafetas de denúncias (anônimas) e ataques à universidade, nutrindo um esquema de notícias falsas no mundo virtual que é um autêntico rolo-compressor. Órgãos do Ministério da Educação estão sob o norte de uma pauta cega, movida pelo combustível da extrema direita que, como propósito último, deseja aniquilar tudo o que não seja  igual ao que ela pensa, assim como transformar em escombros o mouds operandi do conhecimento científico.
Nesse contexto, soa, digamos, “surpreendente” que surja dentro da categoria de professores universitários um agrupamento associativo que carrega como emblema básico a defesa do Presidente da República, apresentando-se como “docentes defensores da liberdade”. (informações aqui: https://dpl.org.br/). Se, por um lado, é “surpreendente”, por outro, para as chamadas "forças progressistas",  é um fato que deve inspirar reflexão e uma (auto)avaliação séria, aí incluindo o sindicalismo docente. Ora, como foi possível que se chegasse a esse ponto? Como foi possível que a estética da mudança e da rebeldia tenha sido apropriada por forças de extrema direita fascistas, usando o discurso da ética e da "coisa certa" ("endireitada")? Como foi possível uma tal "revolução semântica"? Como é possível, depois do caso Queiroz, a pauta da corrupção continuar sendo enfatizada a favor do governo, com a pregação contra irregularidades? Como é possível, em meio ao quadro trágico da pandemia, com dezenas de milhares de mortos e um Ministério da Saúde sem ministro efetivo,  o governo manter o apoio de 30% da população?
Convenhamos, não é suficiente, por exemplo, apenas evocar o discurso do golpe e a parcialidade da Operação Lava Jato. Isso tem valor analítico-explicativo, mas limitado. Não temos a pretensão aqui de desenvolver um enfoque de maior monta, mas não pode deixar de ser dito que, ao que parece, poucos, no "campo progressista", compreenderam o revés que este sofreu no Brasil e o que representou a ascensão do bolsonarismo. Idelbar Avelar já apontou que a ascensão bolsonarista significou, em considerável parte, uma ‘rebelião do eles, com léxico, morfologia e sintaxe fascista’[2]. É preciso descer da arrogância militante, do pseudoconhecimento,   e entender o que isso representa, para então se ter noção das razões, por exemplo, de pessoas do meio popular simpatizarem com uma estética do ódio e do extermínio ou então professores universitários aplaudirem a destruição da universidade e dos órgãos de desenvolvimento científico. Para tal tarefa, determinadas análises de discurso e estudos da linguagem são capengas.
Mas entender tal fato não é tudo. O dito "campo progressista", na crise que está e nos desafios que tem diante de si, precisará equacionar uma compreensão adequada sobre o significado da dimensão técnica e da gestão. Desvalorizar isso, com meros discursos ideológicos, como sendo burocracia, é meio caminho andando para se continuar sem rumo e sofrendo derrotas sucessivas. Capacidade técnica é condição para a credibilidade política. Ademais, uma nova sociabilidade no "campo progressista" requer o fim da “cultura da queimação”, do jogo miúdo, da ação montada na calúnia para atingir o divergente, e, assim, supostamente "triunfar", como no mais das vezes tem sido prática (até mesmo cometendo-se crime de difamação). Nessas circunstâncias, o melhor que o atingido faz é renunciar. Mesmo entregando  poder. Abrir mão da interlocução, retirar-se... Desde o século XV, com o florentino, sabemos bem que, de uma linguagem contaminada e viciada, envolta em manobras e más intenções, bons frutos não podem nascer. Por isso, urge uma ética agregativa renovada e emancipadora no "campo progressista".
Com estas breves notas, dando, mais uma vez, a nossa cara a tapa,  queremos deixar anotado que há um risco real de o "campo progressista" viver uma longa derrota, com a universidade sendo conflagrada e os seus quadros sendo  submetidos aos mais diversos tipos de constrangimento. Daniel Arão Reis Filho, cientista social de primeira linha, já chamou a atenção para esse fato, prevendo, de resto, que o Presidente Bolsonaro ficará até ao fim do seu mandato, e se, em 2022, perder a eleição, haverá relutância em entregar o poder[3]. Ademais, por estimativas de hoje (com base em análises que não confundem desejo com realidade), ele chegará em 2022 com fortes possibilidades de se reeleger. Perante um tal cenário, o tipo de resistência que a universidade pede requer muito mais do que palavras de ordem.
 
NOTAS 

[1] A propósito, ver a nossa pesquisa intitulada Espionagem nas Universidades e a Atuação dos Serviços Secretos no Brasil de Hoje: Compilação de Textos Jornalísticos. Disponível em: < http://afipeasindical.org.br/content/uploads/2020/06/Espionagem-nas-universidades.pdf>
[2] Cf. Idelber Avelar, A rebelião do eles: léxico, morfologia e sintaxe do fascismo bolsonarista, in O Estado de São Paulo, 03/07/2020.
[3] Cf. Daniel Arão Reis Filho, As milícias bolsonaristas não vão aceitar  a derrota e as esquerdas precisam se precaver, in Marco Zero, disponível em: <https://marcozero.org/entrevista-daniel-aarao-reis/>
Ivonaldo Leite e Carlos Machado
Enviado por Ivonaldo Leite em 25/07/2020
Reeditado em 27/07/2020
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