ESTAMOS VOLTANDO A 74?
São Paulo, agosto de 1974: quando os alunos, tanto da rede pública quanto da rede particular, voltaram das férias de julho, foram surpreendidos com uma ordem para que retornassem para suas casas porque o início do segundo semestre do ano letivo tinha sido adiado. Não lhes foi dada nenhuma informação adicional, nada que explicasse o motivo. Alguns, porém, imaginavam qual era a razão. Há algum tempo, corriam notícias de um surto de meningite em alguns bairros da cidade, vitimando principalmente crianças e adolescentes. O que não se sabia era que, desde 1971 havia uma epidemia e não um surto e que, naquele inverno, tinha se alastrado da periferia para a região central da cidade e para alguns bairros de classe média/alta. Para entender o motivo pelo qual as informações eram sonegadas, é necessário voltar 46 anos no tempo. Em 1974, o Brasil era governado, desde março, pelo general Ernesto Geisel. Assim como seu antecessor, general Emílio Médici, Geisel governava com o AI-5 embaixo do braço. Preocupados com a imagem do governo e usando o argumento de que a população poderia entrar em pânico se os fatos fossem divulgados, tanto Médici quanto Geisel trataram a epidemia como questão de “segurança nacional”. Os órgãos de imprensa, amordaçados pelo AI-5, foram proibidos de abordar qualquer assunto relacionado à doença, incluindo informações sobre métodos de prevenção e entrevistas com médicos e sanitaristas. Era como se nada existisse, sendo que a epidemia já tinha se alastrado por vários estados brasileiros. O que teria acontecido se tivesse havido transparência? Se o povo soubesse que dor de cabeça, febre e rigidez do pescoço eram sintomas de um mal que poderia matar em até 24 horas? Se fossem emitidos alertas à população e medidas de prevenção tivessem sido adotadas? Quantas vidas teriam sido poupadas? Impossível saber. A ditadura também nos deve essa. Com este histórico, não é de se estranhar a atual confusão no Ministério da Saúde, em plena pandemia do novo coronavírus. Num governo “capitaneado” por um presidente que admira e elogia Médici e Geisel, a vontade de mascarar o número de vítimas da Covid-19 é visível. Começou pela demissão de dois ministros, ambos médicos, e a efetivação de um general. Em seguida, especialistas foram substituídos por militares e, como se não bastasse, um empresário do ramo alimentício foi nomeado (e depois desistiu) como conselheiro do Ministério. Tentaram eliminar do site o número acumulado de mortos, chegaram a divulgar dois boletins no último domingo (com dados diferentes), alteraram o horário de divulgação para 22h (após o fechamento das edições dos principais jornais e do encerramento do Jornal Nacional) e, por fim, adotaram como metodologia, divulgar o número de vítimas por data de ocorrência e não mais por data de notificação (processo utilizado pela maioria dos países), o que fará “diminuir” o número de mortos por dia. Para tentar obter dados confiáveis, a solução adotada por alguns dos principais veículos de comunicação foi coletar os números diretamente das secretarias estaduais de saúde. Isto só foi possível porque vivemos num país (ainda) democrático. Que continue sendo assim. E que Médici e Geisel descansem em paz. Se for possível...