A utopia, o caos e a política

A utopia, o caos e a política, qual a relação entre esses três? No presente artigo, eu trago uma análise sobre o vinculo existente entre nossas idealizações, o caos e o modo como nós vivemos em sociedade, onde se caracteriza o seu aspecto político. No artigo também são analisados os casos George Floyd, manifestação dos 300, da paulista e os últimos acontecimentos envolvendo Bolsonaro.

A utopia

Quando refletimos sobre as navegações, como já vimos em documentos referente às expedições portuguesas, vemos que existia uma espécie de busca pelo "paraíso". Ou seja, eles não viajam apenas em busca de recursos naturais, talvez por forte influência religiosa; eles nutriam um idealismo de um mundo perfeito, bem semelhante aos textos bíblicos quando se referem ao éden. Penso, portanto, que essas utopias fazem parte da natureza humana, ou ao menos são idealizadas de modo diferente conforme suas respectivas épocas. Mas, até aqui, falamos da busca pelo desconhecido: agrupar um grupo de homens e sair mar adentro em busca dessa utopia, o paraíso descrito nos textos sagrados.

Na realidade, é possível encontrar utopias mesmo em outras eras. Como dizer, por exemplo, que não eram utópicos alguns textos de Platão? A idealização do que seria um regime ideal? Como não mencionar o livro de Thomas more "a utopia", tão distante da realidade, que até recebeu o nome adequado. A cidade perfeita, com recursos em abundância, disponibilizados de forma gratuita, sem medo de pegar em demasia, pois era, simplesmente, inesgotável.

A utopia, ou quem sabe o medo de aceitar o nosso trágico destino inevitável, levou o povo do antigo Egito à prática de mumificação e o culto ao deus Osíris, por pensarem que, se assim o fizessem, todos seriam acolhidos pelo deus da morte. O que dizer de César, que achou ser uma boa ideia, logo após um período de guerra civil em Roma, declarar-se ditador vitalicio da república, mas acabou esfaqueado, publicamente, até a morte.

O iluminismo, tão referenciado como "século das luzes", que questionou o antigo regime e o clero, propondo que todos os homens eram iguais, baseando-se no poder da razão. A maior alavanca para a revolução Francesa, resultando no coroamento de Robespierre, que desencadeou o "Reino de Terror", culminando na morte de 40 mil indivíduos - muitos deles camponeses ou trabalhadores urbanos.

Napoleão Bonaparte - provavelmente um dos maiores utópicos de toda história - deixou-se iludir por sucessivas vitórias, preso à ideia de dominação da Europa, ruiu diante da Rússia, em 1812, levando consigo meio milhão de homens durante o rigoroso inverno. E quanto ao próprio Marx, crítico assíduo da burguesia, mas que não moveu um único dedo para labutar, senão somente para construir uma utopia que pariu Stalin, homem responsável pela morte de milhões de pessoas e um dos piores regimes da história.

Adolf Hitler - a encarnação do próprio mal - construiu diversos campos de concentração, provocando a morte de cerca de 6 milhões de pessoas, pelo menos em termos de registro, já que alguns números foram encobertos pelo governo. Assim como Mussolini, um verdadeiro estadista sanguinário, crente em uma raça "pura", promoveu um verdadeiro caos durante a segunda guerra mundial.

A bolsa de valores tão incentivada e idealizada por alguns - vitima da tão conhecida grande depressão - pois fim à maioria dos sonhos dos norte-americanos, e pior que isso, deixou boa parte deles sem um teto para morar, além de 14 milhões de desempregados. Além dos EUA, países como Grã-Bretanha, Alemanha, Bélgica também foram afetados - fora outros. Bom, eu poderia encontrar diversos eventos históricos que associam à utopia à decepção; viver parece um constante equilíbrio entre sonho e realidade.

George Floyd

Nos EUA, George Floyd, um homem negro foi covardemente asfixiado por um policial branco em uma cena extremamente simbólica, contando com gritos de socorro e sinalizações de que não conseguia respirar. No caso em questão, ele teve o pescoço pressionado pelo joelho do policial. Ocorre que, até então, o policial não havia sido preso, apenas teve sua expulsão da corporação. Após o ocorrido, alguns protestos pacíficos foram realizados, contando com cartazes, discursos, fotos, entre outros exemplos. No entanto, o impulso da agressividade - tão denunciado por Freud em sua psicanálise - veio à tona. Alguns grupos - que não podem ser confundidos com os pacíficos - atearam fogo em alguns prédios e veículos da polícia, depredaram comércios, agrediram pessoas, entre outros comportamentos de agressividade. Eles montaram um grupo intitulado "antifa". O objetivo desse grupo, na opinião dos criadores, é combater o fascismo. Entre protestos pacíficos e atos de vandalismo, recentemente, o presidente dos EUA, Donald Trump, considerou o grupo Antifa como uma organização terrorista.

Joker: o agente do caos

Os acontecimentos nos EUA remetem ao filme Joker, lançado no ano passado. O filme Joker causou uma série de polêmicas mesmo antes de sua estréia, sendo acusado, por exemplo, de incitar a violência. O filme narrou a história de Arthur Fleck, um comediante fracassado e um indivíduo com problemas mentais que enfrenta diversos problemas em seu cotidiano, sendo desprezado pela sociedade, enfrentando problemas com políticas publicas, além do drama familiar e pessoal que envolve ele, uma garota do seu prédio, sua mãe e um poderoso candidato à política da cidade. Em cena mais emblemática, Arthur, que havia sido convidado para um talk show - que outrora havia lhe ridicularizado por uma apresentação de stand up -, acaba executando o apresentador, que havia entrado em uma discussão com ele após confessar alguns crimes. No término do filme, a cidade de gotham city é envolvida por um verdadeiro caos, e o simbolo dessa revolução é Arthur Fleck, o coringa. A revolta com relação à política, aos governantes e aos ricos, modifica completamente a cidade: ruas são envolvidas por chamas, prédios depredados e, por fim, Thomas Wayne, o político odiado pela cidade, acaba sendo assassinado em um beco junto de sua esposa, uma clara referência ao surgimento posterior do maior inimigo do palhaço do crime, Batman.

Um grupo de manifestantes em ato pró-Bolsonaro, foi ao STF para protestar contra os ministros e manifestar seu apoio ao presidente da republica. Fantasiados e com tochas em suas mãos, o grupo foi comparado à organização conhecida como ku klux klan, grupo de terroristas que surgiu no Estados Unidos, no século XIX, e ficou marcado por atos de violência contra negros, judeus, católicos etc. Já não é o primeiro caso notório de comparação com organizações do tipo, vide o caso do ex-ministro da cultura, que durante um vídeo fez um discurso semelhante aos praticados no nazismo, além de uma música de fundo também à época. Além disso, outra manifestação, também no último domingo, mostrou o embate entre um grupo de manifestantes bolsonaristas e torcidas organizadas, havendo intervenção por parte da polícia para conter os manifestantes. O caso foi comentado por Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da republica e deputado federal, que comparou o grupo de torcedores à antifa dos EUA, chegando a dizer que "o Brasil deveria fazer o mesmo", referência às ações de Trump nos EUA, quando nomeou o grupo Antifa como terrorista.

Psicologia dos revolucionários: "é preciso que destruam alguma coisa"

Edmund Burke, pai do conservadorismo e um dos maiores críticos da revolução francesa, chegou à conclusão de que existe no espírito revolucionário um objetivo: destruir alguma coisa. Além disso, ele associa essa ideia à própria motivação de vida dos indivíduos, nas palavras dele:

"Precisam destruir algo, sem o que não parecem viver para propósito algum"

Em outras palavras, para Burke, os revolucionários apenas camuflam o seu desejo de lutar por algo, mas o seu compromisso é com a destruição. Quando ele aponta algo como o perigo de se manter no espírito as ideias revolucionárias, Burke denuncia justamente esse tipo de conduta. Um revolucionário, portanto, fantasia uma realidade melhor, mas o seu desejo pela destruição, pela desordem e pelo caos, está intimamente ligado à sua conduta: eles não desejam reformar, eles desejam destruir.

Minha análise

Eu procurei demonstrar, no primeiro bloco deste artigo, que a utopia está presente desde os primórdios. O fato é que existem diferentes tipos de utopias, algumas estão presentes em alguns indivíduos, mas nunca ultrapassam esse campo singular, como os nossos sonhos e metas individuais, por exemplo, outras já são mais amplas, podendo atingir uma cultura e, por fim, existem aquelas que residem no campo individual, mas, por insistência do indivíduo e domínio da vida pública, tornam-se extremamente perigosas, estas estão ligadas à política. O que ocorreu nos EUA, por exemplo, começou como um ato de protesto, mas não teve um sentido destrutivo até o aparecimento das ideias revolucionárias no espírito dos revoltosos. Ocorre que os revolucionários, por ignorarem os resultados do empirismo - no sentido de que a polícia, o Estado, são entidades que sobreviveram aos testes do tempo - desejam apenas promover o caos. O movimento nomeado como "Antifa" passa por uma contradição enorme, pois sob o pretexto de lutar pelos direitos naturais - no caso em questão o direito à vida - acabam destruindo outros direitos naturais, que pertencem aos seus semelhantes. Além disso, como ocorre também no Brasil, essa criação de movimentos que dizem lutar contra o fascismo, mas que não importam-se com o modo que farão isso, nomeando como "apoiadores do fascismo" pessoas que não apoiam esses movimentos devido à prática de violência, só promove uma espécie de fascismo ao avesso. Ora, a luta contra o fascismo é extremamente necessária, mas estes grupos partem do pressuposto de que a polícia, enquanto corporação, é inteiramente fascista, bem como o Estado, e que por isso é necessário lutar contra essas entidades, destruí-las, promovendo sua utopia. Esses grupos claramente padecem do que chamamos em análise do comportamento de generalização operante. Eu não posso acusar, pelos crimes de um indivíduo, todo grupo. Além disso, esses movimentos realmente não parecem compreender muito bem o que é o fascismo - historicamente falando. Fora essas indagações, que garantia teremos dos revoltosos de que sua utopia dará certo? De que o fim do Estado trará paz, ordem? De que todos os preconceitos existentes no mundo vão, como um toque de mágica, simplesmente desaparecer? Não estou dizendo que o preconceito deve existir e que não devemos fazer nada, estou dizendo que ele existe e, como já vimos durante o decorrer da história, sempre existirá. O caos não imporá ordem, preconceitos são combatidos pela sociedade, mas esta deve ser guiada pelas leis e pelo Estado. Ora, não podemos retroceder ao espírito primitivo, achar que nossa luta é superior aos direitos e conquistas herdados pelos antepassados, e que isso me dará o direito de impor minha justiça. Que fim imponho ao racismo queimando prédios? Agredindo pessoas? Queimando veículos?

Já no Brasil, o caso possui uma outra nuance. Desde de sua posse, não recordo-me sequer de um único final de semana, sem polêmica por parte do governo Bolsonaro. Mas estou inclinado a pensar que não é por acaso. Parece proposital e uma ferramente de distração essas tentativas esdrúxulas de associar-se ao fascismo e ao nazismo, como uma maneira de distrair o povo ao que realmente interessa, e a mídia e boa parte dos opositores parece abraçar esse cavalo de troia. No que diz respeito às manifestações, é inconcebível comparar os Estados Unidos com o Brasil, como vimos na declaração do deputado Eduardo Bolsonaro. Parece-me um tanto forçada essa associação, como se esses grupos estivessem prestes a declarar guerra um contra o outro. O movimento, na verdade, é feito por duas vias: uma que acusa os demais poderes de sufocar o executivo - não que em alguns momentos isso não ocorra, mas não tanto como tentam bordar - e o outro por parte dos manifestantes e da mídia. Tudo parece apontar o desejo dos apoiadores do governo por uma intervenção militar, principalmente depois da nota oficial do general Augusto Heleno no caso STF, que abriu margem para várias interpretações ao mencionar possível retaliação, dizendo "ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional".

Não sou nenhum conspiracionista, longe disso, mas declarações como essas junto ao apoio do governo, que cai a cada dia que passa, às tentativas de negociação com o centrão, julgadas por alguns como meio de impedir um possível processo de impeachment, à criação da MP 996, batizada de modo satírico como "MP da impunidade", pois blinda os agentes públicos de processos civis e administrativos, o conflito contra os demais poderes, especialmente o STF, às acusações de interferência na PF, à troca do diretor-geral da PF e da superintendência do Rio e tantos outros fatos, apenas reforçam narrativas de que o presidente está preocupado apenas com sua permanência no poder. Portanto, esses manifestantes que foram às ruas no último domingo, apenas reforçam os desejos dos reacionários, no que concerne ao retorno do regime militar no país. Alias, como já percebido por Burke, esse acontecimento pode não estar tão longe da realidade, como previa Burke:

"O preço da erradicação ou da erosão de todas as autoridades naturais de uma sociedade é o crescente domínio militar do governo".

Muitos já estão envolvidos nesse discurso, eu diria. Eles partem do pressuposto de que somente os militares podem restaurar a ordem, a paz, destruída pela esquerda sob a figura de Lula e do PT, seus eternos rivais. Robert Nisbet nos deu outra boa pista sobre esse mesmo fenômeno, citando um comentário de Burckhardt:

"Pensava que a glorificação da natureza humana, a crença na bondade intrínseca dos indivíduos, era em si mesma uma força capaz de destruir todo o tecido social, deixando assim os seres humanos sujeitos a uma nova raça de comandos com botas".

Conservadores devem rejeitar qualquer ideal que perpasse pelo caminho da certeza perfeita, ou seja, a ideia de que um respectivo indivíduo, militar ou governante, pode, de certo modo, nos conduzir à perfeição. Esse tipo de argumento de via populista é igualmente denunciado por Hayek no livro "o caminho da servidão", levando ao entendimento de que é uma prática antiga, realizada de modo copioso, mas imperceptível às massas.

Conclusão

A utopia, o caos e a política, qual a relação entre esses três? Notamos que a utopia dos indivíduos se manifesta de muitas vias. O seu fomento exacerbado pode levar à cegueira, ao passo que resulta no fracasso de seu objetivo. O caos, por sua vez, é utilizado pelos revoltosos como pretexto para regulamentação da ordem, apontando um mal generalizado nas instituições que norteiam o tecido social. No entanto, essas ações ignoram a resiliência prevalente nessas mesmas agências, que sobreviveram aos testes do tempo, em última análise, por serem uteis e benéficas. Evidentemente, como tudo produzido por mãos humanas, elas não são e nunca serão, sob nenhum pretexto, infalíveis. O caos também pode ser explorado de modo político nos casos em que os governantes procuram prolongar o seu poder - utilizando um elemento externo para favorecer seu discurso (o inimigo oculto) - apresentando-se como guias da perfeição, da ordem, da justiça e de todas as virtudes que acharem convincentes, imbuindo nas massas o sentimento de que somente eles podem solucionar esses problemas. O conservadorismo vai na contramão desse tipo de postura, pois entende-se que a imperfeição humana é um traço norteador e necessário à humanidade, impedindo que os homens considerem seus semelhantes como anjos, salvadores ou mitos. A política deve estar designada do equilíbrio entre a utopia e o caos, assim como o bom governante deve garantir às instituições e ao povo seguridade, liberdade, bem como à preservação da família, dos valores e de todas às instituições que sobreviveram aos testes do tempo. A política não é fácil - e qualquer um que julgue fácil não está em seu juízo perfeito; ela não proverá o fim dos problemas da humanidade, e qualquer um que prometa esse tipo de coisa está terrivelmente iludido. Infelizmente, os problemas e injustiças continuarão aparecendo, pois não há como garantir boas intenções de todos os homens. Sempre que isso ocorrer, o povo não só pode como deve manifestar-se, desde que isso não resulte no caos e na perturbação da ordem pública, na destruição das garantias e direitos de seus semelhantes, afinal viver em sociedade é recusar o indivíduo abstrato e pensar nas teias coletivas, nas relações e benefícios que podemos obter por sua ordem natural.