Direita e Esquerda: Indo além da dicotomia
Você é de direita ou de esquerda? Se você pretende travar uma discussão política - sobretudo aqui no Brasil - devo lhe dizer que não fugirá desse questionamento. Em tempos de polarização política, as pessoas, para manterem um relacionamento e diálogo, parecem procurar apenas outras pessoas que partilham de seu ideário político; então é compreensível que essa pergunta seja feita logo de cara. No presente artigo, pretendo problematizar o uso desses termos em nosso cenário atual, bem como demonstrar que, na imagem refletida de nossa política, eles tornaram-se puramente pejorativos, minimizando travar qualquer discussão mais profunda sobre assuntos políticos. Pretendo, ainda, demonstrar que existe um embate a priori das ideias discutidas, portanto, esses termos limitam-se apenas à imagem prévia do que se acha conceber sobre o assunto.
Como esses termos surgiram
Apesar de ter mencionado que os termos vêm sendo utilizados de modo desdenhoso e pouco concreto, o seu simbologismo não é por acaso. Esses termos são referenciados na revolução francesa, em 1789, para caracterizarem os Girondinos, que sentaram-se à direita, e os Jacobinos, que sentaram-se à esquerda, durante a assembléia Nacional. Os Girondinos eram favoráveis à revolução, mas abordando um aspecto mais liberal, exigindo o fim dos privilégios da nobreza e do clero, enquanto os Jacobinos, embora igualmente favoráveis ao fim dos benefícios citados, lutavam por uma mudança mais brusca, de modo que o poder fosse mais centralizador. Alguns textos descrevem o temperamento dos Jacobinos como sendo mais radical e exaltado, diferenciando-se, por exemplo, do comportamentos dos Girondinos, que eram considerados mais conciliadores e moderados. Pelas pautas que defendiam, e creio que pelo modo como se portaram na assembléia, os Girondinos, que sentaram-se à direita, foram reconhecidos como sendo mais conservadores, enquanto os Jacobinos foram considerados radicais.
Quem está à direita?
Nas classificações que descreverei, colocarei os movimentos mais próximos dos mencionados na assembléia, portanto, os movimentos que expressam com mais semelhança os ideias Girondinos. Posicionados à direita estão os indivíduos de viés mais conservador - apesar de não gostar muito deste rotulo posicional -, herdeiros do pensamento Burkeano, e os liberais, herdeiros das ideias de Adam Smith e outros autores. Reafirmo que existem outros movimentos que são posicionados para essa direção, mas seria necessário um texto específico para apresentar-lhes apropriadamente, sem contar o fato de divergirem em questões como existência de algumas instituições, da própria democracia, entre outros exemplos. Além disso, como já mencionei, descrevi os que considero mais semelhantes às descrições à época. Entretanto, para compensar-lhe o espaço descritivo, cabe colocar o que defendem os movimentos posicionados à direita.
A direita costuma ter uma visão que atenda aos princípios individualistas, ou seja, um Estado menos atuante, ou mesmo ausente em alguns setores, como na economia dos liberais mais clássicos; ideias fundamentadas em relações espontâneas e direitos naturais, como inserem-se os conservadores mais clássicos e herdeiros da tradição britânica, e, como já mencionado, os liberais. Ainda nessa mesma classificação, há aspectos relacionados aos costumes, destacando-se os conservadores por serem mais cautelosos e zelosos pelas tradições e costumes, mas opondo-se aos liberais, que costumam ser menos reservados nesse aspecto. Alguns acrescentam outras nomenclaturas como centro-direita e extrema-direita, representando, respectivamente, um grupo com pautas levemente à direita, enquanto o outro representa o que há de mais extremo nos ideais defendidos. Também não vou me ater ao conteúdo dessas nomeações, por não expressarem nada muito objetivo e definido.
Existem diversos pensadores e influenciadores das tradições conservadoras e liberais, para além de origens na filosofia, destacam-se no conservadorismo: David Hume, Edmund Burke, Russell Kirk, Michael Oakeshott, Alexis de Tocqueville, além de autores modernos, como Roger Scruton, falecido este ano, João Pereira Coutinho, entre outros nomes. No liberalismo: John locke, William Petty, Jean-Baptiste Say, Adam Smith, Friedrich Hayek, entre outros nomes.
Quem está à esquerda?
Aqui encontramos os representantes modernos dos jacobinos. Normalmente, a esquerda é representada pelo progressismo, socialismo e comunismo, apesar deste último cair em desuso por grande parte da esquerda e, na opinião de alguns autores, nunca ter existido. Os indivíduos que identificam-se com esses modelos teóricos, tendem a defender um Estado mais atuante, seja no aspecto econômico, seja no aspecto social. Identificamos pautas e polos opostos entre as linhas de pensamento da esquerda e direita (Individualidade e Igualdade, Autoritarismo e Liberdade, Público e privado), entre outros exemplos. Para alguns teóricos dessas ideologias de esquerda, o estado é o responsável por conduzir à sociedade para o bem-comum, alcançar a justiça, promover igualdade, entre outros exemplos.
No que diz respeito aos costumes, podemos dizer que grande parte dos representantes dessas linhas teóricas são mais liberais, sendo favoráveis à medidas que rompem com costumes tradicionalistas. Além disso, normalmente os integrantes da esquerda apegam-se à causas sociais, como já datado em alguns contextos históricos, como movimentos operários, sindicatos, associações como o movimento LGBT, vínculos ao movimento feminista, dentre outros exemplos.
Destacam-se como pensadores destes modelos teóricos: Friedrich Engels, Karl Marx, Lenin, Leon Trótski, Antonio Gramsci, Max Weber, Rosa Luxemburgo, Gueorgui Plekhanov, entre outros autores.
O socialismo utópico também poderia ser enquadrado nessa posição, mas, parecido com o que fiz no bloco anterior, preferi não descrevê-lo aqui por estar dissociado do contexto histórico e dos eventos pós-revolução, já que Thomas More, considerado o pai do socialismo utópico e autor de sua obra mais expressiva "Utopia", faleceu em 1535. Além disso, hoje em dia, ainda mais intensamente que o comunismo, esse tipo de ideologia encontra-se basicamente extinta.
A dicotomia
Como notamos nos trechos anteriores, os termos direita e esquerda são utilizados desde os acontecimentos da revolução francesa. Obviamente, a definição se deu por algo meramente posicional, ou seja, se os locais estivessem invertidos, hoje, os nomes também estariam em polos opostos. Fora essa constatação posicional, devemos compreender o papel por trás das dicotomias. Erich Fromm, um importante autor em psicologia, tinha como pressuposto básico de sua teoria essa relação dicotômica, classificada como inerente à natureza humana. Ocorre que, ao nos afastarmos dos seres mais primitivos - algo que Fromm analisava como nosso desmembramento da natureza - adquirimos nossas faculdades mentais, portanto, a capacidade pensar. Neste caso, o fato de sermos considerados como seres pensantes, possui uma via de mão dupla, isto é, pode ser considerado uma benção e uma maldição. De um lado, podemos usar essas faculdades em prol da nossa sobrevivência, por outro, essas faculdades nos obrigam a pensar em uma solução para determinados dilemas, e como bem sabemos, nem sempre isso é possível. Na teoria de Fromm lidamos com dicotomias existenciais, tais como vida e morte, solidão versus união, entre outros exemplos. Percebemos, portanto, que os dilemas fazem parte das questões mais básicas da vida, exprimindo nossa complexidade. Se tratando da revolução francesa, podemos pensar que os lugares preenchidos foram probabilísticos; mas que existe algo precedente àquela organização: uma dicotomia.
Podemos dizer que essa relação não condiz apenas com a atualidade. Em Aristóteles, por exemplo, nos observamos essa percepção dúbia. Aristóteles afirma que somos animais políticos, e diferente dos outros animais, o único que possui o "logos" (Linguagem). Dessa forma, a linguagem tem como objetivo a manifestação do vantajoso e do desvantajoso, do justo e do injusto, do bem e do mal, entre outros exemplos. Parece que estamos inclinados a pensar essas dicotomias e tentar escolher entre elas. Nisso encontra-se o próprio conceito de virtude como algo habitual, entre outras palavras, o bem não parece ser algo que só pode ser praticado por indivíduos que nascem necessariamente assim, mas, sim, uma questão de escolha e prática.
Norberto Bobbio
Norberto Bobbio descreveu com erudição própria a díade entre direita e esquerda, curiosamente, em alguns trechos, chamando até mesmo de dicotomia. Como ele bem diz, essas dicotomias estão presentes em todos os campos do conhecimento. No que se refere à direita e esquerda, enquanto termos antitéticos, ele os denomina com termos reciprocamente excludentes e exaustivos. Nas palavras dele:
"São excludentes no sentido de que nenhuma doutrina ou nenhum movimento pode ser simultaneamente de direita e esquerda. E são exaustivos no sentido de que, ao menos na acepção mais forte da dupla, como veremos melhor a seguir, uma doutrina ou um movimento podem ser apenas ou de direita ou de esquerda".
Percebemos, portanto, o primeiro elemento falho de qualquer relação que limite termos classificatórios, que tenham outros subgrupos em seus ramos, em apenas dois campos. Ou seja, nessa relação dicotômica, parece não existir algo mais profundo com relação à classificação, isto é, será que todo indivíduo que concorde com um elemento da direita é, necessariamente, de direita?
Bobbio ainda prossegue destacando uma crítica feita por Sartre, que chegou a dizer que direita e esquerda eram apenas caixas vazias. Ele prossegue, dizendo:
"Delas se fala frequentemente com um certo enfado, como de uma das tantas armadilhas linguísticas em que se deixa aprisionar o debate político".
Contudo, é preciso ressaltar que Bobbio, apesar do modelo crítico aos termos, compreendia que eles não simbolizavam apenas suas respectivas ideologias, e que reduzi-las a pura expressão do pensamento ideológico seria uma indevida simplificação:
"Esquerda e "direita" indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e de valorações".
Bobbio entende que essa dicotomia serve para dar uma direção a ser seguida pela sociedade, constatando que elas existem em toda sociedade, dessa forma, seria impossível o seu desaparecimento. Entretanto, Bobbio não exclui uma fator extremamente importante nessa relação: a mutabilidade, ou seja, somente o fato de existirem esses termos não significa, necessariamente, que eles são realmente fiéis ao seu conceito de origem, isto é, que não refletem por completo à imagem histórica dos eventos que cunharam sua definição. Dessa forma, é correto compreender que o contraste existe, modifica-se com o tempo - sobretudo com algumas teorias que indicam uma crise nas ideologias - e que por isso se afastam, inevitavelmente, de sua origem.
Minha análise: é possível pensar além?
Creio que com os elementos trazidos nesse artigo, conseguimos compreender que direita e esquerda são apenas nomeações para uma separação mais superficial de ideias. Essas separações, no entanto, não conseguem exprimir completamente o que pensam os subgrupos existentes, tais como o que é conservadorismo, comunismo, liberalismo, socialismo, entre outros exemplos. No Brasil, eu diria que essa relação se da de forma ainda mais limitada, minimizando discussões que poderiam ser mais profundas. Ocorre que o mero fato de uma dessas correntes do pensamento estarem inseridas na esquerda ou direita, não costumam ser relevantes aos juízos dos indivíduos, então, geralmente quando um indivíduo apenas apresenta-se como sendo de direita, não parece existir um movimento para saber se ele é liberal ou conservador, ou no caso da esquerda, se é socialista ou comunista; tudo é simplesmente reduzido ao primeiro elemento de classificação: Direita x esquerda.
Parece-me que uma apresentação mais precisa representa melhor o ideal defendido por um indivíduo, até porque essas classificações não permitem, como já apontado por Bobbio, descobrir se existem semelhanças nas linhas teóricas opostas, explico: um liberal, em termos de costume, tem mais semelhança com um socialista do que teria com um conservador, que é muito mais cauteloso com relação aos costumes e às tradições. A referência "direita e esquerda" não me permitem, no entanto, saber disso.
Outra forma de avaliar os limites ligados aos termos direita e esquerda, reside no fato de que linhas como o conservadorismo que, na opinião da maioria dos autores, não são consideradas como uma ideologia, são entendidas como uma disposição natural, estando mais próximo de uma linha filosófica do que política. Poderíamos dizer que, se não houvesse um comportamento revolucionário ou reacionário com relação às tradições, só existiria, nesse caso, o conservadorismo, no sentido de que todos, inevitavelmente, estariam preservando essas instituições. O fato de vincular o conservadorismo à direita, exclui um pouco o seu desempenho como disposição natural, passando uma ideia de que ele existe apenas no cenário político, por isso boa parte dos autores não gostam da classificação como ideologia política. Não estou dizendo que alguém de esquerda representará as mesmas ideias que o conservadorismo - seria um equivoco enorme -, estou dizendo que, analisando politicamente ou não, o conservadorismo existe, já não se pode dizer o mesmo dos termos direita e esquerda.
Uma outra problemática envolvendo os termos direita e esquerda, que também foi destacada por Bobbio, discorre sobre a necessidade dessas vias dependerem uma da outra para existirem:
"Em um universo no qual as duas partes contrapostas são interdependes, no sentido de que uma existe se também existe a outra, o único modo de desvalorizar o adversário é o de desvalorizar a si mesmo".
Essa relação de dependência, ainda, causa um efeito interessante. Já notamos um movimento de reação em todos os partidos que, quando praticam algum erro ou se mostram radicalmente contrários aos adversários, insistem em dizer que foram criados ou originados pelos seus antecessores, isto é, simbolizamos o pior disso, mas somos uma reação aos nossos inimigos, igualmente radicais. O escolhido político originará o adversário durante sua gestão, isso parece ser uma constante em política. De certa forma, um alimenta o outro; a existência de um significa o triunfo de outro; enquanto o medo de cair nas garras de alguém que é julgado incompetente residir no espírito dos eleitores, sua tendência será alimentar o oposto de sua imagem; dificultando, assim, qualquer ascensão de seu adversário político.
O centro parece tentar reunir, desesperadamente, todos os aliados possíveis, angariando o maior apoio político de que se pode imaginar. O centro, ao meu ver, não exprime, como pensou Bobbio, uma terceira via, algo que não se apresentasse como um compromisso entre dois extremos, mas como uma superação simultânea de um e de outro; isso não me parece ter acontecido. Para o autor, uma política que representasse essa terceira via idealizada, conseguiria ir além da díade, além da dicotomia, além da direita e esquerda. Penso que alguém com essas características talvez tivesse sucesso em duas crises políticas recentes, causadas pelos dois lados. Os extremos, na minha perspectiva, não encaixam-se em ambos os lados, tendo em vista que o conservadorismo analisa o perfil revolucionário e reacionário; por isso não importa saber se são de esquerda ou direita, penso que isso não tem tanta relevância como as pessoas tentam atribuir.
Conclusão
Demonstrei ao longo do artigo que os termos direita e esquerda, ao longo do tempo, afastaram-se de suas nomenclaturas originais por representarem apenas algo relacionado à revolução francesa e, além disso, pelas "crises políticas" enfrentadas ao longo da história: comunismo, fascismo, entre outros. Aos poucos esses termos foram distanciando-se cada vez mais de suas referencias, mas o seu uso prossegue apenas por uma questão habitual. Apesar disso, por trás destes termos encontram-se o que chamamos de dicotomias, ou como foi chamado por Bobbio, díades. Estas, por sua vez, parecem ser peculiares à natureza humana, existindo em diversos campos do saber, como vimos em Aristóteles, Bobbio, Fromm, entre outros inumerosos exemplos que caberiam. Podemos concluir, portanto, que o mero uso da expressão direita e esquerda, serve apenas para expressar um valor de referência muito superficial, se comparado aos subgrupos existentes dentro dessas classificações. É provável que isso tenha inspirado nomenclaturas como conservador-liberal, que podem referir-se às pessoas que consideram-se conservadoras nos costumes, mas liberais na economia, já que, se nos prendêssemos às referências anteriores, tomaríamos por liberais apenas os que são liberais em todos os requisitos. Podemos dizer que o uso dos termos conservador, liberal, socialista, comunista, são muito mais precisos do que apenas os valores de referência, que dizem muito e nada ao mesmo tempo. É provável que o uso dos termos mais precisos exija um pouco mais de conhecimento dos próprios combatentes, uma vez que uma crítica feita à esquerda pode afetar um comunista, mas não, necessariamente, um socialista, assim como uma crítica à direita pode afetar um conservador, mas não um liberal. Em outras palavras, conhecer apenas os valores de referência nos leva à superficialidade, limitando conhecimentos subjacentes ao âmbito político, que poderiam ser colhidos em uma análise mais profunda.