"Gado demais": de Marius napoleônico aos esquerdopatas e bolsominions da atualidade

No clássico romance "Les misérables", o escritor francês Victor Hugo (1802-1885) aponta para a tensão existente à época em que toda a França encontrava-se dividida entre saudosistas do Antigo Regime e entusiastas da Revolução, o que culminava em ânimos exaltados, conflitos acirrados e, até mesmo, em rompimentos familiares. De um lado, a monarquia em todo o seu esplendor e caráter absoluto, o que convergia para uma suposta blindagem contra quaisquer manifestações desordeiras e, de outro, a brutalidade do 1789, mais tarde personificada em Robespierre e seus discípulos jacobinos.

Ainda, seguindo-se aos anos de terror e à queda dos primeiros entusiastas que guilhotinaram a realeza e a fé no ideal monárquico a um só tempo, o despontar do forte e sagaz Napoleão, desde a implantação do Consulado até Waterloo, foram aspectos suficientes para que se estabelecesse uma forte tensão política naquele país, constantemente abençoado pelo sangue cujo derramamento batizava um e outro lado desse forte e ameaçador cabo de guerra. Por meio do personagem Marius, Victor Hugo, então, abre espaço para considerações importantes acerca do cenário político brasileiro que se estabelece sob uma forma cada vez mais polarizada e irrequieta.

Ao descrever o jovem Marius, o qual acabava por deixar cair por terra todas os ideais políticos de que era imbuído desde a infância, o eminente escritor declara que "O fanatismo pela espada o dominava, confundindo-lhe no espírito entusiasmo com ideal. Ele não percebia que, junto com o gênio, admirava a força, isto é, estabelecia nas duas formas de idolatria, de um lado o que é divino, do outro, o que é brutal". Em seguida, declara: "De algum modo, continuou a se enganar como antes". Ao narrar os conflitos que se seguiram na vida desse jovem personagem, Victor Hugo situa o leitor dentro de toda a afobação política que encobria a França desse tempo, apontando para um quadro que desembocava, não raro, no mais puro e terrível fanatismo. Assim, questiona-se: Marius, esse infante personagem de "Os miseráveis", poderia ser o que se convencionou chamar atualmente de "gado demais"?

Aporta-se, dessa forma, em terra brasilis. Por aqui, das jornadas de junho de 2013, passando pelo conturbado ano de 2016, pelas bombardeadas eleições de 2018 e chegando, finalmente, ao tenebroso e "pandêmico" ano de 2020, alguns percalços fazem-nos postados diante não só de ânimos cada vez mais inflados, mas de reviravoltas até inimagináveis, donde palavras como "fascismo", "fanatismo" e "autoritarismo" conjugam-se, todas, numa emblemática, engraçada e atual expressão: "gado demais".

Gado, ou aquele que é apenas mais uma espécie da manada, representa, talvez, a doença mais gravosa que assola o país em muito tempo, dado que não resume-se apenas ao ato de "passar pano" (e aí vale mais uma expressão da moda) ao político da vez e do topo do pódio pessoal, mas ao engalfinhamento de uma conjuntura capaz de mesclar saudosismo ditatorial, agressões à imprensa, conspirações e fake news, comprometimento da verdade e da democracia, burla de investigações político-criminais, assassinato de parlamentar, insegurança jurídica, desmoralização de instituições democráticas e descaso com milhares de pessoas vitimadas por uma pandemia que assola o país desde fevereiro do corrente ano. Com pedido de impeachment protocolado em casa legislativa, Jair Bolsonaro tem apresentado um comportamento, no mínimo, inquietante. Mais preocupado em receber flashs, aplausos e gritos ensurdecidos de "Mito! Mito!", o presidente, que não raro aparenta ter a mesma idade mental do Marius de Victor Hugo (ou até menos que ele) conta com um público fiel e composto, é claro, em sua integralidade, por gados. Muitos gados. Gados demais. É preocupante.

Mas, para além disso, o cenário que se descortina frente ao outro espectro não é nada animador. Com o nome de Luiz Inácio Lula da Silva ocupando o primeiríssimo lugar na boca de inúmeros setores de esquerda, ao passo em que é rejeitado por outro sem-número de eleitores, tem-se uma esquerda dividida e que não se revela amadurecida o bastante no tocante a esse panorama político inflado que se descortina aos olhos de todos os que veem. Teríamos, pois, pequenos Marius de esquerda? Julgo que sim. E, pior: Marius divididos, perdidos, não raro cegos em seu próprio mar de ideologia barata. Gados demais.

Definitivamente, este parece ser o problema: Gados demais. Mal que há de se cortar, que há de ser extirpado para que se vislumbre, ao menos, um lugar-comum mais animador que este. Bolsonaro, por sua vez, em manifestações infindas (que nem se acabam, nem ficam poucas) segue com um combustível que, por mais que se diminua diante de trocas ministeriais, tentativa de infiltração de investigações envolvendo setores de sua família e descaso com a saúde e a vida do mesmo povo que o elegeu, ainda existe em número significativo, pois... Isso mesmo, são gados demais.

Gado: expressão rotineira, que se presume engraçada, enraivecida e perigosa a um só tempo, de uma vez por todas a erva daninha que consome e envenena toda uma nação. Gados, vultuosos, inúmeros, ensandecidos, pequenos Marius alastrados na busca por um ideal napoleônico que, longe de ser, como este, grandioso e sagaz, é burro, incoerente, mentiroso e desonesto.

Presume-se, pois, que o problema são os gados e Victor Hugo o sabia na França dos idos de 1880, ao denunciar um fanatismo que nada constrói, nada vê, em nada educa. Pelo contrário, resultado de uma má educação que passa ao largo dos bons livros e da própria história, o gadismo da atualidade em nada se parece com o ideal que este escritor concebeu à sua época.

Seguem, portanto, elementos infláveis, ateando fogo a uma fogueira intensa de dor e exasperação, consistentes em todo esse panorama de crises na saúde e na economia, as quais se une, não menos importante, essa crise do gadismo, que se dá quando eles são muitos, quando eles são gados demais.

Assim, dado que o Waterloo bolsonariano parece despontar no horizonte como uma possibilidade, é possível reunir alguma esperança em torno dos Marius de esquerda, ou será que o pêndulo do impeachment será para sempre uma ponte que atravessará de um lado para outro gados sucessivos que vicejarão sobre o solo do mesmo país, num ciclo infindo, ignominioso e gadístico demais?

Mara Raysa
Enviado por Mara Raysa em 26/05/2020
Reeditado em 26/05/2020
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