A importância política das obras de ficção
A importância política das obras de ficção
Alexandre Santos*
Às vezes, a impossibilidade ou inconveniência da comunicação direta, leva algumas pessoas, especialmente os artistas, a recorrem a certos tipos de 'mentira', como a ironia e a ficção, para dizer coisas importantes. Neste ponto, vale lembrar o grande José Américo de Almeida, para quem “há muitas formas de se dizer a verdade [e] talvez a mais persuasiva seja a que tem forma de mentira”. Esta observação insinua o viés político da literatura artística, pois, especialmente, através de textos abertos com a mensagem "esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência", os escritores dizem verdades que dificilmente poderiam ser ditas de outra maneira. Muitas vezes, inclusive, para além do entretenimento, obras de ficção objetivam a denúncia de situações, a apresentação ou a defesa de modelos e a propaganda de ideias, fincando posição no universo movediço da política. Que o digam os regimes e governantes afetados em diversos graus de severidade por obras como '1986' ou 'Animal farm', de George Orwell, 'A Queda de Paris', de Ilya Ehrenburg, ou mesmo 'O moinho', de minha autoria.
Na realidade, nem sempre uma verdade conta verdades e, na visada inversa, nem sempre uma mentira conta mentiras. Esta observação fica mais clara ao ouvirmos as versões sinceras de pessoas sinceras que se enfrentam - em acidentes de trânsito ou em querelas entre vizinhos, por exemplo -, quando contam verdades que formam versões diferentes.
Além de questões conceituais - que, em alguns casos, chegam a misturar posições aparentemente antípodas -, há uma infinidade de posições intermediárias, que envolvem meias-verdades e meias-mentiras em diversos graus, intercambiando e combinando pedaços de verdade com pedaços de mentira para manipular dados, dosar informações e compor opiniões segundo conveniências e interesses. Na realidade, autores de diversas Escolas e em diversas épocas levantam dúvidas sobre o significado dos conceitos, levando muitos a duvidarem se existe verdades e mentiras, como se o conjunto fizesse parte de um grande jogo no qual, tomando por base um caleidoscópio que muda ao longo do tempo conforme o lugar, nós, pobres mortais, figuramos apenas para proporcionar satisfação a outros, cuja natureza e dimensão varia em função de crenças e dogmas.
Como costuma ser de leitura mais fácil do que outros textos - e, além de atingir públicos maiores, não obedecer rigores acadêmicos, não portar compromissos evidentes, não precisar justificar teses ou enfrentar adversários ideológicos [pelo menos nos primeiros momentos] -, a ficção literária parece elemento de propaganda ou contrapropaganda bem mais eficaz do que os ensaios específicos.
Naturalmente, para exercer influência, como qualquer outro texto, a ficção literária precisa ser lida. Acontece que, inserida no vasto campo da palavra escrita - embora normalmente menos visada por assumir-se abertamente como 'literatura mentirosa' -, os textos ficcionais também enfrentam a barreira imposta à leitura pelo status quo, que tem na ignorância das massas estufa, plataforma, trampolim e elemento de conquista e preservação do poder. De qualquer forma, uma vez lida, cedo ou tarde, mesmo quando escrita nas entrelinhas, a eventual mensagem embutida na ficção vem à tona e produz efeitos políticos. Esta é a razão de muitos livros de ficção sofrerem censura.
Ninguém duvida que, sob o manto da fantasia, os textos trazidos pelos livros de ficção podem embutir verdades e, nessa condição, tornarem-se elementos de importância política. Por isso, quem tiver medo da verdade deve começar a ter medo dos livros que contam mentiras.
*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural