Surgido nas cinzas da democracia, um Capetão inferniza o Brasil
Surgido nas cinzas da democracia, um Capetão inferniza o Brasil
Alexandre santos *
Com a posse de Lula, em janeiro de 2003, aquilo que parecia o início de uma Era de Ouro para o Brasil e para os brasileiros, representou, de fato, um rude golpe no orgulho das elites, que, embora se digam defensoras da democracia, tendo governado o País pelos primeiros 500 anos, locupletando-se e garantindo o interesse de seus mentores internacionais, nunca aceitaram a possibilidade da alternância efetiva de poder. De fato, pouco se lixando para os avanços sociais e econômicos advindos do novo governo (ou, justamente, por isso), as elites brasileiras jamais digeriram a ascensão de um metalúrgico ao poder, em sentimento que virou urticária quando, fruto da democratização de oportunidades, as primeiras levas de estudantes pobres, especialmente os negros, chegaram à universidade, abrindo caminho para uma verdadeira revolução na estrutura econômica e social no país. A presença de pobres entre os clientes regulares de shoppings centers e de aeroportos foi demais para fidalgos e dondocas, dando origem à 'revolução das elites' - um movimento ainda em curso, que, sem qualquer respeito à Democracia, vem arrasando todos os avanços sociais no Brasil, impondo a mais rigorosa concentração de renda e submissão do País ao exterior, especialmente aos Estados Unidos.
Inicialmente, ainda no primeiro mandato, as elites tentaram destituir Lula (e, com ele, tudo aquilo que ele representa) numa operação levada adiante no Congresso Nacional e nos Tribunais Superiores, a qual, embora tenha chamuscado o governo, provocando desfalques importantes, não conseguiu seu intento, pois, graças à sua invulgar capacidade de articulação, o presidente Lula suportou os ataques e preservou o mandato. Aliás, desmoralizando o discurso catastrófico e sectário das elites, fazendo questão de não perseguir qualquer seguimento social ou econômico, Lula fez o melhor governo de todos os tempos, melhorando os indicadores sociais e econômicos do País, o quê lhe valeu a aprovação por 87% dos brasileiros e a eleição da sua sucessora, Dilma Rousseff.
Sem Lula pela frente, rearticulando o aparato midiático, parlamentar e jurídico em permanente atentado à democracia, as elites começaram nova investida e, desta vez modulando a opinião pública, em processo cuja expressão máxima talvez tenha sido a chamada 'Primavera Brasileira' em junho de 2013, tentaram voltar ao poder pelo voto nas eleições de 2014 e, provavelmente, teriam conseguido se não fosse a presença de Lula na campanha. A reeleição de Dilma Rousseff foi a gota d'água que faltava para esgotar a paciência das elites, que, pela voz do candidato derrotado Aécio Neves, afirmou que não haveria um novo mandato do Partido dos Trabalhadores. Com efeito, com a cumplicidade da mídia, do presidente da Câmara dos Deputados e articulando a maior operação de Lawfare já ocorrida no Brasil ('com Supremo, com tudo...', como explicou o senador golpista Romero Jucá), mesmo sem cometer crime de responsabilidade, a presidente Dilma Rousseff foi destituída pelo Congresso Nacional, possibilitando o retorno das elites conservadoras brasileiras ao poder, depois de apenas 13 anos fora dele.
O retorno se deu inicialmente por meio do vice-presidente Michel Temer, o qual, para manter o apoio das forças golpistas, adotou o plano de governo derrotado na última eleição, repaginado sob o nome de 'Ponte para o Futuro' e que, no fundo, consistia apenas em desnacionalizar a economia, conter investimentos estratégicos e desmontar o incipiente Estado de Bem Estar, anulando avanços sociais e destruindo as Leis de proteção dos trabalhadores.
Cumprido o Impeachment de Dilma Rousseff e assegurada a posse de um usurpador dócil, os golpistas cuidaram de criar as condições que lhes garantissem a permanência no poder pelo voto e, com o objetivo de tornar Lula inelegível e, quem sabe, extinguir o Partido dos Trabalhadores, redirecionaram o massacre midiático e a ação de Lawfare. Aliás, se de um lado, a inelegibilidade de Lula foi conseguida através da chamada Operação LavaJato - principal instrumento do aparato Lawfare usado pelos golpistas, que condenou Lula em processos jurídicos marcados pela superficialidade e ausência de provas -, embora tentada, a extinção do Partido dos Trabalhadores não logrou êxito e, depois de sobreviver aos ataques jurídicos e ao cataclismo eleitoral nas eleições municipais de 2016, a agremiação reequilibrou-se e voltou a crescer.
Acontece que, em fenômeno não previsto pelas elites, ao desqualificar as principais referências populares, a brutal campanha usada para justificar o golpe de 2016 e tornar Lula inelegível, terminou por conspurcar toda a política, despertando um sentimento de animosidade a ela [à política] - não só contra o Partido dos Trabalhadores (estimulando a campanha 'voto em qualquer coisa, menos no PT'), mas, também e principalmente, contra os políticos tradicionais (a maioria dos líderes golpistas não conseguiu se reeleger) - e fortalecendo a apatia social e o pensamento ultraconservador.
Este foi o contexto no qual, em outubro de 2018, em pleito marcado pela ausência do candidato favorito (vítima do Lawfare, Lula fora encarcerado nas masmorras da Polícia Federal em Curitiba), pela ausência de debates (alvo de uma estranha e conveniente facada, Bolsonaro fugiu do confronto de ideias com os adversários) e pelo uso das redes sociais para distribuir fakenews em operações ilegais financiadas por recursos de origem escusa (o Jornal Folha de S. Paulo publicou extensa matéria descrevendo detalhadamente o processo), sem conhecer ou discutir seu plano de governo, o Brasil elegeu Jair Messias Bolsonaro, um ex-deputado obscuro, que, tendo passado nebuloso no Exército Brasileiro - aos 33 anos, depois de expulso por insubordinação, o então tenente Bolsonaro foi reformado por desequilíbrio mental, passando, nos termos da legislação da época, automaticamente ao posto de capitão - e cultivando a imagem de racista, misógino, homofóbico, defensor da tortura e do armamentismo, contrário à preservação do meio ambiente e aos direitos das minorias, fizera carreira política como representante parlamentar dos militares e da extrema direita. Mas, não é apenas isto. Bolsonaro lidera uma família, que, além de paixão pelos Estados Unidos, pelas armas e pelas teorias nazifascistas, tem envolvimento umbilical com o submundo do crime - relações que vão desde o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco ocorrido em 2018 até depósitos de dinheiro na conta bancária da primeira dama Michelle Bolsonaro feitos pelo miliciano Fabrício Queiroz (desaparecido desde que o caso veio a público), passando pelo enriquecimento meteórico e inexplicável e, ainda, presença de mafiosos nos gabinetes parlamentares de seus filhos. Este é o atual presidente da República Federativa do Brasil.
Compartilhando o governo com os filhos - o senador Flávio, o deputado federal Eduardo e o vereador carioca Carlos -, com o banqueiro Paulo Guedes, a quem entregou o comando da economia, e com o ex-juiz Sérgio Moro, chefe do aparato Lawfare responsável pela destituição de Dilma Rousseff, pela destruição das principais empresas da engenharia pesada brasileira e pela inelegibilidade de Lula, a quem entregou o ministério da Justiça e a promessa da próxima vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), e, ainda, preocupado em abrigar os militares liderados pelo vice-presidente Hamilton Mourão, os bispos evangélicos representados pela bispa Damares Alves, e o time indicado pelo guru Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro nomeou aquilo que alguns brasileiros perceberam tratar-se de um anti-ministério, pois, como se quisesse colocar raposas para cuidar de galinheiros, escolheu pessoas com preocupações antípodas ao objeto das pastas para as quais foram indicados. E, assim, concentrado em desfazer 'as coisas feitas pelo PT' e sem quaisquer compromissos sociais assumidos em campanha, agindo como se fosse um touro bravo numa loja de porcelana, quebrando deliberadamente tudo o que vê pela frente, o governo Bolsonaro vem acumulando desastres em todas as áreas, impondo grande prejuízo e vexame ao País.
De tão absurda, a extensa lista da desconstrução de coisas boas e construção de coisas ruins pelo governo Bolsonaro parece mentira, mas, infelizmente, não é. No campo internacional, depois de jurar amor eterno aos Estados Unidos (que, segundo disse Bolsonaro em recente viagem àquele país, ao lado do Brasil, deve estar 'acima de tudo'), mostrando um lado entreguista, fez romper a parceria com Cuba que dava substância ao programa ‘Mais Médicos’, privando milhares de cidades de assistência; ameaçou declarar guerra à Venezuela e reconheceu um governo que se diz paralelo ao de Nicolas Maduro; anunciou querer mudar a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, despertando a ira da comunidade árabe. Inicialmente, apontando armas contra o mundo do trabalho, ainda na primeira semana de governo, Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho e, na sequência, minimizando preocupações com a segurança do trabalho, eliminou dispositivo que garantia o aumento real do salário mínimo. Sem qualquer apreço pelo meio ambiente, autorizou o uso de agrotóxicos mundialmente proibidos; alterou o Código Florestal para facilitar o desmatamento; anunciou a liberação da prospecção de petróleo em zonas de preservação rigorosa; desmontou os aparatos de fiscalização ambiental. Além de anunciar a suspensão da demarcação de áreas indígenas, facilitou o funcionamento de mineradoras e madereiras em suas terras. Confirmando a inversão de valores que parece nortear seu governo, depois de autorizar a compra de armas de fogo, inclusive fuzis, pelas pessoas, Bolsonaro propôs projeto de lei em defesa dos infratores de trânsito. Ao tempo que extinguia o Ministério da Cultura, fragilizava os mecanismos de incentivo cultural e atacava a arte e os artistas, cortou o orçamento das universidades públicas federais e as verbas destinadas a pesquisa científica e tecnológica. Decidido a desmontar o Patrimônio Nacional, depois de autorizar a venda da Embraer para a Boeing, conseguiu autorização para vender as principais empresas públicas, incluindo a Petrobras, a Eletrobrás e os Correios. Da lista do desmonte não escapa sequer o Banco do Brasil, que, pela vontade do ministro Paulo Guedes, será incorporado pelo Bank of America. Para Bolsonaro todo o mal ainda é pouco.
Infelizmente, o mal intrínseco ao modelo econômico abraçado pelo usurpador Michel Temer e, agora, aprofundado pelo Capetão Bolsonaro atinge não apenas o presente, mas também, o passado e o futuro das pessoas. Com feito, às mazelas do hoje - percebidas através do desemprego, do achatamento dos salários, do aumento da violência, da criminalidade e da iniquidade social em geral -, somam-se o saque ao passado - caracterizado pela dilapidação da poupança e do patrimônio público, especialmente através da entrega de empresas estatais por preço de banana - e o assalto ao futuro. Aliás, fazendo da Emenda Constitucional 95 aprovada por Temer (que congelou investimentos por vinte anos) uma brincadeira de crianças, o governo Bolsonaro está empenhado em destruir o sistema público de previdência social através da substituição do atual sistema de repartição solidária pelo sistema de capitalização entregue à banca privada.
Embora extensa, esta lista é apenas uma pequena amostra daquilo que vem ocorrendo no Brasil nestes tempos bafejados pelo Capetão Bolsonaro. Naturalmente, em paralelo com o desconforto silencioso já sentido pelas elites e com a progressiva consciência mundial do drama brasileiro, as massas populares começam a tomar as ruas em protestos contra o abandono da Educação, contra a tentativa de privatizar a previdência social e contra a injustiça feita a Lula, que, aos olhos da maioria, significa a chance de o Brasil voltar a sonhar com dias melhores para todos.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural