Aspectos mórbidos da beleza natural

Aspectos mórbidos da beleza natural

Alexandre Santos*

Existem palavras mágicas, como Amor, Liberdade, Justiça e Felicidade, que condensam ideais de realização e de perfeição alimentados pelas pessoas. De tão doces, estas palavras parecem imunes até mesmo aos venenos capazes de desfigura-las e, no embalo das pós-verdades associadas aos conceitos originais, costumam evocar sentimentos puros e, infelizmente, desconectados da realidade circundante, provocando eventualmente distúrbios e decepções.

Veja o que ocorre, por exemplo, com a palavra Liberdade, definida pelos dicionários como plena independência e capacidade de se fazer as coisas desejadas sem restrição de qualquer espécie. Pois bem. Apesar dos condicionantes (disponibilidade de dinheiro e tempo, existência de interesses conflitantes, etc.), com o imaginário firmemente estruturado sobre o conceito original, as pessoas não consideram embaraços capazes de atrapalhar a realização dos sonhos e, nas asas da Liberdade, se imaginam numa espécie de Paraíso, onde tudo é possível. Assim, mesmo não comportando objetivamente aquilo que promete, a palavra Liberdade encerra sonhos capazes de animar projetos de vida e mobilizar pensamentos. Como não poderia deixar de ser, de tão poderosa, esta (im)possibilidade deu suporte a quereres e a modos de pensar, como o Liberalismo - doutrina política e econômica que consagra a liberdade como valor central e, tendo no Estado, a representação do repressor maior (o Leviatã que a todos sufoca), advoga a sua redução à menor expressão [do Estado]. No entender dos liberais, o império das liberdades individuais e funcionamento do Estado mínimo abririam caminho para um regime de bem estar.

Acontece que, aplicado às coletividades, o Liberalismo enfrenta contradições intransponíveis, pois a consagração da liberdade individual plena como valor fundamental esbarra e contraria a máxima segundo a qual 'a liberdade de uma pessoa termina quando começa a liberdade da outra'. Assim, as liberdades de uns limitam as liberdades dos outros e, nesta perspectiva, todos perdem quinhões de liberdade, indicando a impossibilidade prática da plenitude da liberdade individual. Se, por outro lado, todos pudessem fazer uso ilimitado da própria liberdade, o convívio se converteria numa disputa de forças e, por razões óbvias, os mais fortes levariam vantagem e poderiam impor a sua liberdade/vontade sobre os mais fracos (que, então, ficariam impossibilitados de desfrutar as próprias liberdades e, desta forma, exatamente pela falta de regras, o regime da plenitude das liberdades individuais também ficaria inviabilizado).

É neste ponto que, em tentativa de minimizar o eventual desequilíbrio entre as diversas liberdades/conveniências/interesses em jogo, o Estado atua para conter o poder dos mais fortes (ou ampliar artificialmente o poder dos mais fracos). Ao fazer isto, confirmando a acusação dos liberais, fazendo aquilo que muitos chamam de Justiça, o Estado modela o conceito de Liberdade, limitando-o e, portanto, eliminando a possibilidade da plenitude das liberdades individuais. Nesta perspectiva, a busca da Justiça contraria o ideal de Liberdade individual e, na prática, passa a ser uma 'inimiga' da pureza conceitual do Liberalismo.

Se, em nome da liberdade, todos fossem livres para aplicar as suas capacidades sem qualquer tipo de regra, a vida social seria palco de embates em níveis variados de violência e, sistematicamente, os mais fortes imporiam as suas vontades aos mais fracos, que, assim, tenderiam a ficar progressivamente mais fracos, num processo de agudização da concentração de poder e de aumento dos desníveis. Aliás, no vale-tudo estabelecido pela ausência de regras, emerge a Lei dos mais fortes (ou Lei das Selvas) como se verifica no mundo natural - circunstância na qual o mais forte abate o mais fraco e o maior devora o menor, estabelecendo um regime de seleção baseado na força, completamente dissociado de valores como Justiça, Solidariedade e Humanidade.

A prevalência da Lei das Selvas é a razão de animais fracos não 'perturbarem a exuberância' da vida selvagem (lembra daquela frase 'quem não tem competência não se estabelece?'). Com efeito, no mundo natural, animais doentes, fracos, aleijados e velhos servem de pasto para os mais fortes (os quais, por sua vez, um dia também adoecerão, envelhecerão ou enfraquecerão e, nos termos da regra ou da falta de regra vigente, passarão da condição de predador para a condição de presa).

No fundo, ao defender o primado das liberdades individuais e, portanto, o egoísmo como forma básica de relacionamento, querendo, talvez, soltar a fera que acreditam habitar em cada um, os liberais estimulam a competição entre as pessoas e, indiretamente, [estimulam] a animalização do gênero humano, como se a solidariedade que marca a humanidade fosse desnecessária para a continuidade da vida em sociedade.

O efeito estético da Lei das Selvas na paisagem natural tem um estranho caráter mórbido. De fato, o belíssimo mundo selvagem é fruto do império da competição mortal, pois a seleção se dá através de uma acirrada luta que elimina os mais fracos e deixa sobreviver apenas os mais fortes. Emoldurada por uma paisagem espetacular, se desenrola uma contínua disputa de maestrias e, garantida a liberdade individual, tendo como prêmio a própria vida, todos exercitam a plenitude das suas capacidades, fazendo valer todos os seus talentos. Predadores correm para alcançar as presas e presas correm para deles se livrar. Ambos sabem que aquela é a corrida das suas vidas, pois sobrevive apenas o vencedor. De qualquer forma, enfrentando a morte a cada instante, os seres do mundo selvagem compõem algumas das mais belas paisagens do Planeta. Eles não sabem, mas a insegurança como vivem e a brevidade das suas vidas fazem parte do processo de embelezamento do lugar onde habitam.

Vale o registro que, quando expostos ao mundo selvagem, diante da real possibilidade de virar alimento, homens civilizados habituados ao regime de cooperação, divisão do trabalho e solidariedade se assustam e costumam temer até as próprias sombras, pois, sabem eles, num mundo de competição sem regras, qualquer deslize pode transformá-los em refeição para um animal qualquer e esterco para os campos.

Que me perdoem os liberais, mas, a viver uma falsa sensação de liberdade e correr o risco de ser devorado a cada instante, eu prefiro apostar na humanidade e contar com a solidariedade social, que amplia a sobrevida dos mais fracos.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural