A Vontade de Poder e a Vontade Matar – Ensaio sobre a Filosofia do Bicho.
Mais de uma vez, em consulta com a minha terapeuta, eu disse que me imaginava caminhando pelas ruas de Genebra, Davos ou Berna. Na minha fantasia eu caminho numa tarde de inverno pelas ruas tomadas pela neve. São quatro horas da tarde – noite escura.
Eu paro em frente a uma relojoaria, destas muito antigas. Nas paredes, dezenas e dezenas de todos os tipos de relógios. Relógios suíços e estrangeiros. Caminhando junto a parede, fazendo força para levar uma escada enorme, está um velhinho de cabelos muito brancos, óculos de aros finos, boné na cabeça, camisa branca de mangas largas, cachimbo na boca…
O velhinho sobe na escada, acerta a hora de todos os relógios que consegue, desce, muda a escada de lugar e vai acertando os que faltaram ...Quando termina de acertar todos, pára por alguns instantes, faz cara de quem se deu conta de algo ...e começa tudo outra vez…iniciar a corrigir a hora de cada um dos relógios “atrasados” - só ele, velhinho, sabe a “hora certa”.
O nome do velhinho que eu imagino fazendo esse tipo de trabalho é Hegel ! George Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831). Ah, Hegel, Hegel...O velho Hegel, o idealista alemão que possibilitou o surgimento de Marx...que ironia: um idealista dando origem a um materialista fanático, a um homem que inspirou a “Economia de Guerra de Lênin” e o “Grande Salto Adiante”, de Mao.
A filosofia de Hegel pode ser resumida na ideia exposta por ele mesmo, em “A Filosofia do Espírito”, de transformar toda Filosofia em Ciência.
Hegel acreditava que a vida, a realidade e, acima de tudo, a História, tem leis que podem ser descobertas cientificamente.
Estas “leis”, pensava ele, uma vez descobertas, podem permitir que o “Espírito”, o “Espírito que está em nós”, que está em tudo, se ajuste à “grande marcha” de “sintonização” com o “Espírito Absoluto”...é, meus amigos, Hegel leu Espinoza…
A filosofia de Hegel encantou a Alemanha. Era a “filosofia do controle”, a filosofia dos trens chegando na hora absolutamente correta, a filosofia do Kaiser, a filosofia da jornada da Alemanha em direção ao ajuste dialético com o “Espírito Absoluto”.
Ironicamente, este “relojoeiro da História”, como eu gosto de chamá-lo, este homem que fez da sua vida a missão de descobrir as “leis dialéticas que regem a história”, morreu, cem anos exatamente antes do meu nascimento (14 de novembro de 1870) sem controlar nem mesmo os seus intestinos – foi vítima de uma Epidemia de Cólera que se espalhava pela Alemanha como hoje a COVID-19 se espalha pelo Brasil. Toda Berlim, sem máscara alguma, parou para acompanhar seu funeral.
Muito daquilo que se pode chamar de “Filosofia Política” de Hegel tem base num outro sujeito que o antecedeu. Este se chamava Thomas Hobbes (1578-1669).
Hobbes, num livro cujo título original é “Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil”, mas que ficou conhecido com “Leviatã”, disse que o “homem é o lobo do homem” e, que para controlar a vida do homem em sociedade, é necessária a existência de um monstro, de uma criatura marinha gigantesca mencionada no Antigo Testamento, cuja função seria exatamente estabelecer a Ordem Absoluta entre os seres humanos que vivem em sociedade.
O Leviatã de Hobbes é o Estado. O Estado que chega à perfeição na Alemanha de Hegel porque o Estado, assim pensava Hegel, “deve ser a manifestação suprema do Espírito” neste nosso Mundo.
A resposta para as ideias de Hobbes e Hegel, a refutação absoluta desta vontade que não é só de Poder, mas de controle do poder, está finamente expressa em Nietzsche.
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Nietzsche, o Nietzsche que dizia que “não acreditava num Deus que não soubesse dançar”, que “Cristo é Platão levado aos Pobres”..que “a salvação só é possível através da Arte”, afirmou durante toda sua vida que a “razão, a razão ocidental estava doente”..e que a causa desta doença era a MORAL.
Quando escreveu seu primeiro livro, “O Nascimento da Tragédia entre os Gregos”, Nietzsche deveria mais bem chamá-lo de “A Tragédia do Nascimento da Tragédia entre os Gregos”.
Nietzsche via na tragédia grega o elemento Apolíneo, o elemento da simetria das formas, da beleza lógica, …e o Dionisíaco, a apologia do erotismo, do impulso, da intoxicação amorosa e da sensibilidade pura ...mas Nietzsche viu mais do que isso.
O que ele parece ter visto, ou diz ter visto, foi a morte de tudo que era Dionisíaco, de todo erotismo, de toda força vital da qual poderia nascer uma Vontade de Poder que não fosse a vontade dos fracos, a vontade dos ressentidos…
Em 1889 Nietzsche morava em Turim (Itália). Numa certa manhã dirigindo-se ao centro da cidade, de repente, deparou-se com uma cena que mudou sua vida para sempre. Ele viu um cocheiro que batia com força no seu cavalo porque o animal não queria andar.
O cavalo estava completamente exausto. Não tinha mais forças. Mesmo assim, o dono batia com o chicote no animal para que continuasse andando, apesar do cansaço.
Nietzsche ficou perplexo com o que via. Depois de censurar o comportamento do cocheiro, ele se aproximou do cavalo que tinha desabado e o abraçou. Em seguida, começou a chorar.
A interpretação do choro de Nietzsche, os motivos reais ou inconscientes para o colapso mental do filósofo são vários. Digo que ele o fez numa catarse, num entendimento súbito daquilo que a vida lógica, a vida apolínea e a apologia das formas perfeitas idealizadas por qualquer sociedade em qualquer tempo fizeram com todos os seres vivos (inclusive ele mesmo) representados, naquele momento, pelo sofrimento do cavalo.
Oswald Spengler (1880-1930), não se abraçou em nenhum cavalo e não enlouqueceu, mas, herdeiro de Nietzsche, denunciou a morte de toda vontade vital, de toda Cultura que merecesse este nome, num livro chamado “A Decadência do Ocidente”.
A causa da “decadência”, da “morte” de toda Cultura? A Civilização! A Civilização lógica, irreal, simétrica, sem vontade de poder, de erotismo ...A Civilização de um caráter que, no fim, é apolíneo-materialista e utilitário em qualquer forma de organização política ou econômica da época de Spengler.
Que Sigmund Freud (1856-1939) resgata, através da Teoria Psicanalítica e do seu conceito de “Eros”, uma força dionisíaca, um pulsão criadora cujo esquecimento levou Nietzsche ao desespero, todos sabemos.
Que ele tenha proposto o advento, a existência de uma outra força chamada “Tânatos” - o impulso para morte – é algo que muita gente esqueceu ou nunca soube.
Seria muito interessante saber o que todos estes filósofos, escritores, pensadores e intelectuais que eu citei pensariam do Mundo de 2020, do mundo do Sars-Cov2, do “bicho”, como eu repetidamente o chamo e gosto de chamar.
O bicho, ninguém ignora, não tem “filosofia” alguma, não há princípio vital, consciência ou pulsão alguma nele.
Discute-se, até hoje, entre vários cientistas, se vírus são ou não são formas de vida.
Eu nunca li nada que definitivamente responda a esta pergunta.
Nós já sabemos o que é o impulso vital, a pulsão erótica geradora da “vida ativa” na expressão de Hannah Arendt, da vida que não é só trabalho nem obra, da vida criativa que pode se manifestar na forma apolínea, na forma da beleza pura, pensada, na estátua grega de formas proporcionais…da vida que “faz História”.
Nós já conhecemos a dança frenética de Dionísio, o Dionísio que é considerado também o deus grego da natureza, da fecundidade, da alegria e do teatro, o Deus que inspira a fertilidade, que é chamado de deus da libido e que na mitologia romana tem o nome de Baco.
Agora, em 2020, nosso planeta encara uma ameaça formidável. Uma ameça do ponto de vista da Saúde Pública, da Economia, da Medicina…da Filosofia, da Religião, da Política...
Que o “bicho” não comunga com qualquer ponto de vista, com qualquer doutrina filosófica a respeito da natureza do Estado, da Justiça e do sentido da vida, é óbvio. O bicho não tem Vontade de Poder; tem Vontade de Matar!
Menos óbvio, assim me parece, é que o bicho venha despertando em pessoas importantes, em gente que ocupa cargos em que são tomadas grandes decisões, o impulso de MORTE.
Menos real, menos evidente, é que a Vontade de Matar do bicho tenha se transformado na Vontade de Morrer de algumas pessoas, de algumas pessoas com poder para decidir se vamos, todos nós brasileiros, viver ou morrer.
Tânatos vem ganhando espaço no Brasil. Ao afirmar que “todo mundo, um dia, tem que morrer”, é Tânatos, é o impulso de morte, que fala através do nosso Presidente, do nosso “Mito” cuja crença em Deus se expressa numa fé escatológica, na religião do Segundo Advento, numa Segunda Vinda de Jesus Cristo…
Essa segunda vinda, assim acredita aquele na frente de quem nosso Presidente se ajoelha, há de trazer para toda Humanidade o final dos tempos. Ela é inevitável.
O fim dos tempos é o reino da miséria e dor. É o ponto mais negro da história da Terra, onde o mal, tristeza e injustiça (quem sabe da doença?) corre desenfreadamente. Escuridão governa a terra completamente.
Jesus, então, voltará à Terra com os exércitos do céu para salvá-lo das garras da besta e do anticristo!
Depois de tanta escuridão a luz irá finalmente brilhar! Depois de estar sob a influência de Satanás desde os dias de Adão e Eva é este o ponto de viragem importante que tira a Terra do alcance do pecado para colocá-la nas mãos de Jesus.
A vinda da besta não pode ser evitada, muitos irão morrer. O Segundo Advento não pode ser adiado: depois da infecção, da entubação e da ventilação mecânica, Cristo virá julgar e decidir quem merece entrar em seu Reino…é a nossa jornada histórica e dialética de comunhão perfeita com o "Espírito Absoluto"de Hegel.
Enquanto Cristo não vem, sabendo que “todo mundo um dia tem que morrer”, é possível se refugiar num bunker...Um bunker a céu aberto, sem proteção alguma..que não exige sequer que o Presidente esteja nele...pelo contrário: um bunker que está dentro do próprio Presidente, que permite que ele caminhe entre as pessoas, que as cumprimente, que o torna imune à infecção pelo vírus porque “na sua hora todo mundo tem que morrer”, e a “hora dele ainda não chegou”…
Enquanto isso o “povo tem que trabalhar”, porque quem “não trabalha pela comida não merece viver”... Assim como não merecia viver todo alemão que não lutasse nas ruas em 1945…enquanto Hitler discursava sobre a morte ...num bunker de Berlim..
Porto Alegre, 30 de março de 2020.
NOTA DO AUTOR - O nome correto do livro de Hegel era "Fenomenologia do Espírito" e não "Filosofia" do Espírito. Embora sejam dois conceitos completamente diferentes, a loucura, o delírio de Hegel, era uma só. Hegel foi, como bem disse Schopenhauer, "o maior monumento à Estupidez da Alemanha".