Vírus e bandidos
Ontem, terça-feira 17/3/2020, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, na condição de presidente do Conselho Nacional de Justiça, assinou a Recomendação n. 62/CNJ, tendo supostamente por finalidade “a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus”.
Dentre as medidas recomendadas, destacam-se:
- a reavaliação das prisões provisórias, principalmente de mulheres gestantes, lactantes, mães de crianças de até 12 anos, idosos e indígenas, dentre outros; a recomendação sequer menciona a natureza do delito, de maneira que se está recomendando aqui a soltura (dentre outras situações) de uma assaltante ou de uma traficante, ou de uma assassina, ou de um molestador de crianças idoso, que tenham sido presos EM FLAGRANTE (a prisão em flagrante é uma das três modalidades de prisão provisória) - artigo 4º, inciso I, letra “a”;
- a mesma recomendação acima (“reavaliar” a prisão) é feita (letra “b”) para pessoas presas em estabelecimentos penais com ocupação superior à capacidade - no Brasil que há décadas praticamente não constrói novas unidades prisionais, isso significa “quase todos os estabelecimentos penais”. Novamente, é irrelevante para o CNJ se o preso matou, estuprou crianças ou assaltou com arma - o que importa é o conforto do criminoso, em detrimento da população em geral.
- no artigo 5º da infeliz recomendação, a coisa é ainda mais assustadora, pois o dispositivo se refere a presos JÁ CONDENADOS DEFINITIVAMENTE: com base nos mesmos critérios (gestantes, mães de crianças, idosos etc., além de presos em unidades acima da lotação), é recomendada a SAÍDA ANTECIPADA (inclusive de quem estiver no regime fechado), bem como “prisão domiciliar” (no Brasil, eufemismo para “soltura”) para quem estiver cumprindo pena em regime semiaberto e aberto;
- ainda no artigo 5º, chama a atenção o inciso IV, que recomenda a “prisão domiciliar” do detento que tiver “diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19”, na “ausência de espaço adequado no estabelecimento penal”; novamente, não importa se é um “serial killer”, um estuprador reincidente, um chefe de facção do tráfico...
- regras semelhantes são recomendadas para “menores infratores” (eufemismo para criminosos com menos de 18 anos) internados.
Num momento em que se implora a toda a sociedade que fique reclusa, a autoridade maior do poder Judiciário, ao invés de fortalecer a segregação dos detentos recomendando a suspensão temporária das “saidinhas” e da visitação (até em benefício dos próprios detentos), toma medidas em sentido OPOSTO, recomendando a soltura de milhares (sim, milhares) de indivíduos.
É desnecessário mencionar o risco que isso representa para a segurança pública (centenas fugiram há dois dias no interior de São Paulo, deixando a população apavorada); mas a questão aqui não é só essa.
O potencial de dano que isso pode representar nesse momento de pandemia é gigantesco. Basta raciocinar um pouco: criminosos que não respeitam “regrinhas” básicas da vida em sociedade (“é proibido matar”, “é proibido assaltar”, “é proibido vender cocaína e portar fuzil”) vão respeitar a regra “é proibido sair de casa”?
Será que o Excelentíssimo Ministro Toffoli e seus pares no CNJ realmente acreditam nisso?
No último domingo, o presidente Bolsonaro cumprimentou pessoalmente manifestantes em Brasília, chegando a apertar a mão de alguns. A atitude sofreu críticas - a meu ver corretas.
Acontece que essas críticas tomaram quase que edições inteiras de jornais e noticiários televisivos desde domingo - e se estendem até hoje (veja abaixo, apenas a título de exemplo, a primeira página, a página 4 e a página 6 de O Globo de segunda-feira).
A recomendação assinada por Toffoli (que, assim como Bolsonaro, chefia um dos poderes da República) tem, repito, um potencial de dano gigantesco - infinitamente maior do que o aperto de mão (equivocado, sem dúvida) de Bolsonaro. Estamos falando do risco de soltura de milhares de presos, sem absolutamente nenhuma possibilidade de real controle de suposto recolhimento domiciliar.
E que repercussão teve na maior parte da grande imprensa esse ato temerário assinado na terça-feira por Toffoli?
Bem: na terça-feira à noite, no Jornal Nacional, a repercussão foi ZERO.
Na edição de O Globo de hoje (quarta-feira), uma modesta notinha na primeira página (veja abaixo).
O contraste com a gritaria da mídia diante do aperto de mão de Bolsonaro (gritaria que continua até hoje) causa uma impressão muito ruim.
Ambos (aperto de mão de Bolsonaro e “libera geral” de Toffoli) são gestos merecedores de críticas; mas a falta de senso de proporções que se observa em boa parte da mídia contribui para que, cada vez mais, a população desconfie que setores importantes do jornalismo brasileiro foram contaminados pelo vírus da parcialidade. (Marcelo Rocha Monteiro)