Os engenheiros do caos e o fim da política
“que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não estão terminadas – mas que elas vão sempre mudando”
Guimarães Rosa
A epígrafe acima é uma regra universal. Tudo está sempre mudando. Heráclito, logo ali atrás, 450 a.C. já intuiu: a única coisa permanente é a mudança. Marx e Engels apenas confirmaram o filósofo de Éfeso com a frase monumental: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Pois bem, estamos no centro do furacão de uma mudança substancial, falo da mudança na política no Brasil e no mundo, mais especificamente da emergência do nacional-populismo.
Se decidirmos, como sujeitos políticos que somos, atuar de forma um pouco mais efetiva e não apenas reagir emocionalmente como de fato ocorre, o trabalho prévio é o conhecimento coletivo. Sem uma base de referência comum, sem fatos verdadeiros para balizar opiniões e construir o debate, não sairemos jamais deste caos de desencontros e manifestações de afetos negativos. Não daremos nenhum sentido ao nosso discurso e a nossas ações. Este artigo é uma iniciativa modestíssima nesta direção, uma gota pingada neste vasto deserto do real.
Há alguns anos o establishment mundial e brasileiro vem sendo sacudido por uma onda de extrema-direita. Trump dos EUA, Giuseppe Conte e Matteo Salvini da Itália, Boris Johnson da Inglaterra, Viktor Orban da Hungria e Bolsonaro são alguns dos políticos que chegaram ao poder surfando tal onda, que cresce em todos os países da Europa, com Le Pen na França e o partido Vox, na Espanha, por exemplo. A este movimento global deu-se o nome de nacional-populismo.
Meus conhecimentos sobre o tema, parcos e desconexos, melhoraram com a leitura do livro “Os Engenheiros do Caos” de Giuliano Da Empoli. Comprei o livro por impulso na livraria, ao ler a chamada na capa: “Como os Fake News, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”. Confirmei a compra ao verificar a data do lançamento: 2019. Nestes tempos desenfreados o ontem é passado remoto. Recomendo a leitura. Fiquei impressionado com as histórias contadas da trajetória de cada um dos chamados “engenheiros do caos”.
Tudo começou no ano 2000 na Itália, com o especialista em marketing digital Gianroberto Casaleggio - já falecido - ao contratar o comediante Beppe Grillo “para o papel de primeiro avatar de carne e osso de um partido algoritmo”. Fundaram o Movimento 5 Estrelas (M5E), hoje principal partido da Itália. A ultraconservadora Liga, de Matteo Salvini chegou ao poder em aliança com M5E. Dominic Cummings, da Inglaterra é outro “engenheiro do caos”, principal conselheiro de Boris Johnson e diretor da campanha vitoriosa do Brexit, ao enviar mensagens sob medida para cada súdito de Sua Majestade. O Brexit Party é cópia fiel do M5E. O conhecido Steve Bannon, dos EUA, “homem orquestra do populismo americano” de Trump, tem destaque especial no livro. Ele participou do lançamento da Cambridge Analytica, empresa de Big Data associada à política. É o principal “ideólogo” e articulador da Internacional Nacionalista. Os outros dois “engenheiros” tratados no livro são Milo Yiannopoulos, gay judeu que odeia os gays, blogueiro ultra conservador e líder de um batalhão de gamers à serviço de Bannon e Arthur Finkelstein, americano, conselheiro de Viktor Orban da Hungria e porta-estandarte da Europa reacionária.
O importante é saber o motivo de tanto sucesso destes operadores e políticos da extrema-direita. Por que os defeitos deles se transformam em qualidades para os eleitores? Da Empoli, no livro, dá a pista: “Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua incompetência é vista como garantia de autenticidade.... e as fakes news que balizam sua propaganda são a marca de sua liberdade de espírito. No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e Jair Bolsonaro cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo”. Nada mais familiar para nós, brasileiros. Mas, explica o autor, nada fora de lugar, todos seguem as cartilhas dos spins doctors, dos ideólogos e cientistas em Big Data, sem os quais os nacionais populistas não teriam chegado ao poder.
Ao contrário da esquerda e direita conservadora, ricos em bibliografias, não existe um referencial teórico, um manancial de ideias coerentes, livros ou autores que inspirem este lado extremo e ágrafo do espectro político. Aliás, Steve Bannon, em suas entrevistas, gosta de citar um livro: “O Campo dos Santos”, do francês racista Jean Respail. Este livro, de 1973, editado no Brasil pela editora Ediouro, conta a história distópica da invasão e destruição da Europa Ocidental pelos pardos e negros. Uma das armadas, de 800 mil indianos é liderada por um malvado guru de péssimo hábito alimentar, chamado comedor-de-bosta que arrasa a França, matando, estuprando, destruindo e controlando as cidades.
Mas o que defendem então, os nacional-populistas? Bannon dá a linha. São contra a globalização e defendem os estados nacionais e as populações nativas; se declaram antissistema, atacam o establishment, as “elites” e defendem o “povo”; defendem os ricos, atacam a “incompetência” dos pobres e, é claro, abominam as imigrações principalmente nos EUA e Europa.
Para entender a sua ascensão, é preciso antes contextualizar a crise do establishment liberal. Nos EUA e Europa com o empobrecimento da classe média, o desemprego industrial, a imigração, falência do Welfare State. Em países como Itália e Brasil a corrupção e os privilégios “reais” desmoralizou de vez a classe política criando um fosso entre Estado e sociedade, e uma oportunidade de ouro para os nacional-populistas.
Com todo este clima de insatisfação, indignação, medo e ódio, impotência popular, a bola ficou quicando no Brasil e no mundo, para os engenheiros do caos e seus aliados da extrema-direita marcarem o gol. Eles perceberam, melhor que ninguém, a fragilidade da situação e passaram a atuar nas redes socias. Com fake news, tecnologia e discursos apropriados abriram todas as válvulas, liberando e canalizando a seu favor, a frustração e a raiva acumulados durante anos.
No capítulo final “A era da política quântica”, o autor analisa um “novo paradigma” da política em formação no meio digital, justamente com a junção entre algoritmos e afetos. De minha parte fico desconfiado quando evocam o mundo quântico para explicar ou justificar algo. Somos bombardeados diariamente pela Apple, o Google e o Facebook com informações que nos “interessam”, viramos bolhas cognitivas. Cada bolha capta determinados fatos e vê uma realidade diferente, inviabilizando a existência de um mundo comum. Ora, Para Hanna Arendt, o fundamento da política é a veracidade e apropriação coletiva dos fatos, o que se tornou impossível com as fake news e informações seletivas. Opiniões podem e devem divergir, os fatos não. Sendo assim não se trata de um novo paradigma, mas da morte da política. E o Big Data, que irá conquistar a integralidade da vida, está apenas começando...
O nacional-populismo é insustentável, fruto do oportunismo de homens ocos, logo desaparecerá. Importa saber o que virá a seguir. Para Giuliano Da Empoli, é improvável que "os eleitores acostumados às drogas fortes do nacional-populismo, peçam de novo a camomila dos partidos tradicionais". E nos partidos tradicionais estão incluídos os de esquerda, outro tom de cinza na mediocridade geral.