Jessé Sousa: a corrupção dos tolos e a dos sabidos
Neste artigo pretendo analisar a visão de Jessé Souza sobre corrupção, tendo como base principalmente o conteúdo do livro "A Elite do Atraso". A intenção é contribuir para o debate neste tema polêmico e pleno de consequências que mobiliza o país.
O sociólogo, professor e ex presidente do IPEA no governo Dilma, Jessé Souza, é um arguto intelectual dedicado ao estudo do Brasil contemporâneo. Prestigiado pelos leitores, alguns de seus livros como "A Elite do Atraso - da Escravidão a Bolsonaro", entraram em listas dos mais vendidos. Além dos livros, Jessé está sempre na mídia, como youtuber ou dando palestras e entrevistas nos mais variados programas da TV e sites. Trata-se, com segurança, de um dos principais formadores de opinião do campo da esquerda, ao dar consistência, racionalidade e uma interpretação alternativa desta conjuntura complexa e sombria que assola o país.
Rastros da escravidão e desigualdade escabrosa, as duas chaves que abrem as portas para entendimento e mudança no Brasil, permanecem no radar do sociólogo. Está coberto de razão Jessé, ao afirmar que a crise brasileira é uma crise de ideias. Quinhentos anos de crise de ideias.
Para analisar a corrupção, o herege Jessé recorre a Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, mas ao contrário do mainstream acadêmico, não para enaltecer os clássicos da formação do Brasil, mas para culpá-los pelas "ideias velhas" e fora de lugar. A principal delas, o patrimonialismo, planta viçosa no Portugal antigo que, graças à semeadura dos intérpretes, gerou falsas raízes no Brasil.
É daí, segundo Jessé, que resulta a ideia de uma "elite maldita" e corrupta que vampiriza a sociedade, estar localizada apenas no Estado e na política. A esta corrupção Jessé chama de “corrupção dos tolos" que, segundo ele, não passa de mera cortina de fumaça para tornar invisível a "corrupção real" da "elite do atraso" que atua no mercado e faz o grande saque da sociedade.
Sonegação de impostos, juros altos, dívida pública são algumas formas de expropriação brutal desta elite, que torna irrisórios os valores amealhados na corrupção dos políticos. Para ilustrar a desproporção entre os dois “mal feitos”, Jessé recorre a uma metáfora do tráfico. Os aviãozinhos são os políticos, enquanto a boca de fumo é comandada pela "elite do atraso" que captura o Estado e atua no mercado. Nas palavras do autor:
Troca-se a corrupção real, que retira as chances de vida de centenas de milhões, para se culpar a “corrupção dos tolos”, a da propina dos políticos, que é obviamente nefasta, mas que equivale a dos aviõezinhos do tráfico de drogas.
Pois bem, esta é uma síntese do livro do sociólogo. De um lado a "corrupção real", sistêmica, promovida desde sempre pela "elite do atraso" a partir do mercado que captura o Estado e a política para seus fins. De outro a “corrupção dos tolos", dos políticos e burocratas do Estado, cuja narrativa bem articulada pela mídia manipula e mobiliza os brasileiros, "feito de imbecis", para a cruzada moralista.
É capitalismo, Jessé
Está coberto de razão o autor ao fazer a crítica da corrupção sistêmica da "elite do atraso", afinal trata-se do próprio capitalismo e o Estado não é o reino da universalidade e moralidade. Ao contrário, "o Governo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir os negócios de toda burguesia", nas palavras eternas de Marx e Engels no Manifesto de 1848. Sem entrar nas variações gramscianas que agregaram complexidade ao debate, para o tema em pauta, qual seja, a relação promíscua entre o público (Estado) e o privado (sociedade civil), não se pode esperar outra atitude a não ser as da "elite do atraso".
O argumento é reforçado pelo historiador liberal Fernand Braudel: "o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem qualquer compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e da expansão continua de seus mercados", e pelo marxista Slavoj Zizek, ao analisar o mega escândalo dos "Panamá Papers" envolvendo a "elite do atraso": "a corrupção não é um desvio do sistema capitalista global, ela é parte de seu funcionamento básico".
A questão é como combater a rapinagem entranhada nestas formas históricas. Revolução republicana? Fortalecimento das instituições e controle social? O fato é que banqueiros e capital financeiro nadaram de braçadas nos 14 anos de governo popular. E nenhum dos crimes da “elite do atraso” apontados por Jessé foram combatidos nestes governos petistas. O que comprova que o poder está em outro lugar (deep state). Mas Jessé, cujo paradigma é a Alemanha e demais países social democratas da Europa, não trata de prescrições, mas de desvelamento, pois, segundo ele, "sem uma crítica das ideias, não existe prática social verdadeiramente nova". Nada mais justo.
Plena concordância, portanto, com a "corrupção real". A outra, a dos "tolos", necessita mais hermenêutica, mais esforço de interpretação.
As três faces da tolice
Pelos escritos e falas de Jessé é possível identificar a tolice superposta em três situações.
1. Somos tolos por assimilar a ideias de corrupção como "vírus cultural" herdado de Portugal via o conceito de patrimonialismo, que nos torna vira-latas e corruptos desde criança;
2. Somos tolos por acreditar que a corrupção só existe na política e no Estado e por não perceber que a verdadeira, sistêmica, da "elite do atraso", está no mercado;
3. A corrupção falsamente combatida pela Lava jato. Neste caso somos tolos por acreditar e apoiar uma força tarefa seletiva e partidária, instrumento da guerra híbrida dos EUA contra o Brasil, com objetivo de desferir o golpe midiático/jurídico/parlamentar contra um governo popular, impedir a candidatura de Lula e liberar a Petrobrás e o pré-sal para o capital internacional.
O problema é que nesta tríplice tolice a criança é jogada fora com a água suja. Se é patrimonialismo ou não, se a corrupção é maior no mercado e se a Lava jato é mesmo partidária, o fato é que na política e no Estado ela é sistêmica, em todas as esferas da união. Não por acaso é percebida como um problema gravíssimo para 90% dos brasileiros, de acordo com pesquisa da Transparência Internacional em setembro de 2019. Acreditar que este quase consenso é resultado exclusivo da guerra híbrida e da manipulação simbólica da grande mídia, então, mais que num país de "tolos", vivemos numa nação de zumbis.
Tendo a concordar com o historiador Thiago Krause, que em artigo no Uol em out 2017, afirmou que corrupção e desigualdade são aspectos do mesmo fenômeno a se reforçar mutuamente na história, e com a antropóloga Lilia Schwarcz, ao elencar em seu livro “Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, o patrimonialismo e a corrupção entre as nove raízes do autoritarismo pátrio.
O real é tecido com vários fios e precisamos no mínimo identificar os mais importantes. Um deles é o fio da história a revelar indignação antiga dos brasileiros com o par corrupção/impunidade. Numa rápida mirada para trás, constatamos que, em 1964, os militares tomaram o poder para “livrar” o país de duas ameaças: o comunismo e a corrupção.
O primeiro presidente pós ditadura, Fernando Collor, foi eleito desfraldando a bandeira da moralidade com ênfase na "caça aos marajás". Alguns anos depois, acusado ele próprio de corrupção, sofreu impeachment. FHC governou de 1995 a 2003 com o PT na oposição rugindo como tigre, exigindo ética, denunciando escândalos, como as privatizações na "bacia das almas", todos eles abafados pelo Engavetador Geral da República.
Em 2003 os brasileiros elegerem Lula acreditando no jargão do partido "política de novo tipo", para enterrar a velha, dos "300 picaretas". E neste novo tipo, destaque para a "honestidade de um governante petista, a maneira como ele trata a coisa pública, com honestidade política, pública e administrativa", palavras de Marilena Chauí num programa Roda Viva em 1999, se referindo ao governo municipal de Luiza Erundina, mas generalizando a maneira petista de governar.
Aliás, os militantes petistas construíram o partido ouvindo as lições da filósofa sobre a ética da política, possível, segundo ela e Espinosa, com o fortalecimento das instituições. Nos escândalos do Mensalão e Lava jato, eclodiu o antipetismo, resultado do conluio - tema bem colocado por Jessé - entre grande mídia e Lava jato. E aí o PT ganhou a patente de inventor da corrupção no Brasil. A psicóloga Maria Rita Kehl foi certeira ao definir que o fenômeno do antipetismo ganhou asas devido a decepção redobrada daqueles que, em nome da esperança e da transformação elegeram um governo que acabou sendo sugado para o buraco negro da “governabilidade”.
Aliás, decepção também nas palavras de Petra Costa no documentário Democracia em Vertigem: “eu votei no Lula com a esperança de que ele reformulasse eticamente o sistema político”.
Lava jato entre a cruz e a caldeirinha
Com relação à Lava jato “bando criminoso” Jessé não faz nenhuma concessão. Indignou-se até com a prisão de plutocratas poderosos e corruptos confessos, que chamou de “populismo barato”.
De fato, nuvens soturnas pairam sobre a operação. Não existe mais dúvidas sobre o vale tudo da geopolítica americana, incluindo aí, a estratégia de segurança nacional de Trump, bem clara em alguns pontos, como este: “O combate à corrupção deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que sejam competidores ou inimigos dos EUA”, conforme trecho de documento publicado por José Luís Fiori e William Nozaki, em artigo no GGN. Mas não existem provas documentais do envolvimento direto de juízes ou procuradores nos ataques híbridos dos EUA, nem da trama secreta para destruir a Petrobrás, não se conhece a real influência de algoritmos. Do tribunal da história, no entanto, ninguém escapará.
Lula, ao contrário de Jessé, mesmo da cadeia afirmou que "a Lava jato teve coisa boa e não deve ser totalmente anulada". E depois de solto, em discurso no Congresso do PT em novembro de 2019, iria criticar a operação por corromper-se a si própria e ao processo eleitoral, mas também por ter sido branda demais, “deixando impunes dezenas de criminosos confessos que Sergio Moro perdoou e que continuam muito ricos”; por ter solto 130 dos 159 réus que ele mesmo havia condenado. “Temos muito que falar sobre ética, sobre combate a corrupção e impunidade acima de tudo temos que falar a verdade” concluiu, não fugindo do tema.
No quesito impunidade poderia ter lembrado Aécio e Serra, para início de conversa. Percebe-se aí, que ao contrário de Jessé, Lula tem plena consciência dos males da “corrupção dos tolos”, e pede mais rigor com os “ladrões”.
Uma visão correta, ao mesmo tempo crítica, como deve ser da Lava jato, mas mantendo a coerência de quem deu um passo significativo ao combate do crime do colarinho branco, fortalecendo e dando independência para as instituições - Policia Federal e Procuradoria Geral da República – cumprirem seu papel.
Bandeira em outras mãos
Em que lugar da história teve início a virada axiológica de petistas e de muitos formadores de opinião da esquerda ao migrar da ética da política, para uma zona entre o quase desdém para a corrupção, até o extremo da defesa de que os fins justificam os meios?
Por curtos espaços de tempo um fenômeno aconteceu: houve quase consenso - a exceção poderia ser Jessé – em torno do combate a corrupção. O final de 2014, época do idílico início da Lava jato, foi um destes momentos. Luís Nassif captou muito bem o espírito da época no artigo “A Lava jato e o fim de uma era política”, publicado no site GGN em dezembro daquele ano. https://jornalggn.com.br/coluna-economia/a-lava-jato-e-o-fim-de-uma-era-politica/. A primeira frase do artigo já estampa a esperança nacional: “A operação Lava jato caminha para ser um divisor de águas na história política do país, o desmonte definitivo de um modelo político, jurídico e econômico que vigorou nas últimas 4 décadas”.
A impunidade, com dias contados, anunciava os primeiros clarões de uma inédita República no Brasil. Com breve diagnóstico Nassif enumerou todas nossas mazelas, desde a “corrupção real”, com os crimes financeiros, bancos de investimentos, doleiros, contas offshore até a “corrupção dos tolos”, ou seja, a corrupção dos políticos e a pública, através de licitações e compras públicas.
Claro que a percepção do jornalista mudou com os fatos novos, tendo a Intercept - que não entregou todo o pacote - como ápice. E realiza um trabalho de jornalismo investigativo crucial, denunciando a indústria do compliance e outros abusos da corveia que ronda a operação. Mas seu erro e de muitos outros jornalistas da esquerda foi abandonar uma frente de luta cara aos brasileiros cansados com a degradação da política, desejando mudanças, e concentrar a crítica apenas na corrupção da própria Lava jato. Deveriam contemplar ambas as frentes. Não esquecendo que a Lava jato é uma instância pública, financiada com recursos públicos e deve cumprir objetivos públicos, obedecendo todas as normas constitucionais.
Para muitos formadores de opinião o velho crime de colarinho branco, ganhou termos pejorativos como “moralismo”, “udenismo”, “lacerdismo”, platitudes de mentalidades tolas, de direita, manipulados e cooptados para a cruzada moral. Uma clara autodefesa do PT após Mensalão/Petrolão.
E o inevitável aconteceu: a bandeira da ética na política mudou de mãos. Desde a década de 80 com a esquerda, agora é desfraldada pela direita e extrema direita. Uma tragédia a mais neste país que teima em andar de costas, como o anjo do pintor Paul Klee, com vista nada agradável da sucessão de fatos .
Mas houve outros entendimentos. Nos idos de 2005 o PT, Tarso Genro à frente, fez um mea culpa em nota à população pelo envolvimento de líderes do partido nos esquemas de Marcos Valério. A mesma nota convocava a militância para sair às ruas contra a corrupção e a impunidade. Genro queria refundar o partido e foi voto vencido. Permanece coerente com tal visão em 2020 ao propor “renovação dos paradigmas da esquerda”.
Em 2016, Olívio Dutra verteu lágrimas em entrevista com Roberto d’Ávila, inconformado com a arrogância de dirigentes “que pisaram o patrimônio ético do partido”. Pedia aos colegas, em pleno escândalo do Petrolão, autocrítica e humildade. Foi ignorado.
A terceira corrupção
Ao tematizar dois tipos de corrupção, a “real” da “elite de atraso” e a dos “tolos”, Jessé ignorou uma terceira: a dos privilégios.
Sim, os privilégios são uma espécie de corrupção legalizada, mas tão perversa quanto as demais. Se os temas desigualdade e herança da escravidão são tão caros ao sociólogo, como ignorar tal absurdo a olhos vistos? Como ignorar a Casa Grande que perdura nos umbrais do Estado?
Os números dos privilégios nos três poderes são anunciados quase diariamente na mídia, e apesar de sentirmos uma fisgada de indignação a cada nova revelação, tudo permanece igual. É bom sempre destacar a diferença entre direitos e privilégios. Os primeiros são fruto da luta popular e democrática e são universalizáveis, os segundos são apropriações nefandas de indivíduos ou grupo organizado deles.
Se existe alguma tolice, e com certeza há, não é por acreditarmos na existência da corrupção na política e no Estado (Jessé) e fiquemos indignados com isto, mas por aceitar e sustentar uma corte de apaniguados no país mais desigual do mundo.
Não existem atores socias para incluir o tema na agenda política e encaminhar um debate que resulte em ações concretas. A esquerda no Brasil é corporativa. Os maiores sindicatos são de funcionários públicos, com grande influência na CUT e o tema privilégio vira “direito” a ser defendido. As redes sociais manifestam uma indignação mas que não sai do mundo dos bits.
Com quase uma década e meia no poder o PT foi incapaz de encaminhar uma reforma administrativa para cessar os privilégios e diminuir a quota de desigualdade social promovida pelo Estado. Uma aposentadoria média no Legislativo, por exemplo, é 30 vezes maior que o salário mínimo da maioria dos brasileiros. Questões como esta deveriam nos fazer pensar em para que servem os partidos de esquerda, quando estes aderem ao liberalismo, a conciliação, à realpolitik e transferem seu maior legado, a luta antissistema, a “invenção do novo”, a “nova política”, para a extrema direita.
Os políticos, estes fazem parte do botim de Brasília e são os responsáveis, via leis espúrias, pela criação de privilégios nos três poderes, e também pelo Congresso Nacional mais caro do mundo, depois dos EUA. Com certeza não leram Do Espírito das Leis, de Montesquieu. Deveriam ler pelo menos o capítulo III do Livro V – O que é o amor pela democracia – e lá aprender que “O amor pela democracia é o amor pela igualdade. O amor pela democracia é também o amor pela frugalidade”. E o capítulo II do Livro VII – Das leis suntuárias na democracia – “À medida que o luxo se estabelece numa república, o espírito volta-se para o interesse particular... uma alma corrompida pelo luxo possui muitos outros desejos: cedo se torna inimiga das leis que a constrangem”.
No livro “Um país sem excelências e mordomias”, a jornalista Cláudia Wallin mostrou como vivem os políticos e magistrados na Suécia: como o povo!! Exemplos de virtu republicana: Pepe Mogica...Presente! Olívio Dutra...Presente! Policarpo Quaresma...Presente! Darci Ribeiro...Presente! Papa...Papa Francisco? sua Santidade também por aqui? sim, também...Presente! De fato, na Encíclica Laudato Si, Fransisco exorta o "desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção. Da mesma forma no importante documento Carta da Terra, o item "e" é bem explícito: "eliminar a corrupção em todaas as instituições públicas e privadas".
O poder judiciário, o mais corrupto de todos, segundo Jessé, é uma trincheira de defesa da sua corte. Artigo recente de Aldo Fornazieri, um dos poucos articulistas no campo da esquerda a colocar o dedo nesta ferida que faz sangrar o Brasil, mostra parte disto.
https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/02/aldo-fornazieri-fux-huck-fhc-e-os-homens-sem-honra/.
O governo Bolsonaro encaminhou ao Congresso uma lei de Reforma Administrativa. Como aconteceu com a Reforma da Previdência, o objetivo não será reduzir desigualdades tendo em vista a República, mas atender ao capital financeiro da “elite do atraso”.
Astúcia da razão
Jessé não nega a existência de corrupção na política, mas minimiza suas consequências ao comparar com a da “elite do atraso”. Considera sim, grave, as falcatruas de Sérgio Cabral contra a população do Rio de Janeiro, mas relativiza ao comparar o roubo de R$260 milhões do ex-governador, com os danos causados ao Estado pela crise imposta à Petrobrás pela Lava jato. Da mesma forma compara a sonegação de 500 bilhões de dólares com os míseros 1 bilhão recuperados pela Lava jato. Ora, não existe nada de desprezível em nenhum destes valores que aparecem na ponta do iceberg, e nos R$290 milhões de Pedro Barusco, ou nos R$51 milhões nas malas de Geddel etc...
Aí não se trata de aviãozinhos, no mínimo Boeings e Tupolevs. E o caso Banestado, fartamente denunciado pelo Senador Requião - envolvendo agentes da “corrupção dos tolos” e da “elite do atraso”, com envio para o exterior de meio trilhão de reais! via contas CC5 – mas estranhamente abafado nos arcana imperii? E isto sem contar as caixas pretas dos estados e municípios que permanecem intactas.
Fazer comparações para subestimar, ou relativizar a corrupção na política e no Estado, e considerá-la como mero bode expiatório, não ajuda. Jessé contribui ao debate ao retirar os véus da intransparência que escondem os crimes financeiros, mas poderia fazê-lo de forma mais específica, menos genérica. Concordo com o sociólogo que nos últimos anos o Brasil tem dado exagerada ênfase ao tema. De fato, temos vivido sob a égide da pequena política – a corrupção – enquanto deveríamos nos ocupar da grande política com temas como tecnologia, meio ambiente, desigualdade, desemprego e crise estrutural do capitalismo.
Como então compreender a grande catarse nacional que ainda sacode o país, esta “sociabilidade insociável” cujo significado profundo escapa a nós, contemporâneos? Talvez estejamos sob auspícios da “astúcia da razão” ou de um “plano secreto da natureza”, figuras criadas por Hegel e Kant para explicar os artifícios da Razão em seu curso.
Nós seríamos as particularidades sacrificadas, as paixões em conflito inconscientes do Plano. Seja como for, pagamos um preço muito alto nesta dialética negativa: Bolsonaro et caterva.
De acordo com Jessé seria o caso de seguirmos o exemplo de outros países como a “Alemanha ou os EUA que combatem a corrupção de modo cotidiano, sóbrio, um crime como outro qualquer”. Mas este é o problema, o Brasil combateu a corrupção durante 500 anos com sobriedade, em silêncio, sem ninguém perceber, nem mesmo os corruptos.
É o retrato da impunidade, a conivência da Justiça. Jamais vingaram, nestas terras continentais, as instituições republicanas. As elites brasileiras, da esquerda e da direita, a “elite do atraso” (nosso “deep state”) pararam na Casa Grande e Senzala e, por outros meios, seguimos reproduzindo aquela sociedade desigual, escravocrata, racista, como bem descreve Jessé Souza. Se apurássemos bem os ouvidos talvez pudéssemos escutar, entre os rumores roucos e difusos das ruas, uma sussurrante voz além dos moralismos e limpezas éticas, uma voz cansada com as modulações políticas que mudam para nada mudar.
Cansada, aí sim, com a aliança entre a “elite do atraso” e a política venal, desejando mudanças profundas, institucionais, estruturais, antissistemicas e, por que não, revolução republicana? Para muitos, entretanto, entre eles Jessé e Marilena Chauí, é predominante a voz do fascismo. A história continuará em aberto, e nesta lacuna entre o passado e o futuro deveremos estar aptos a pensar e agir.
Stefan Zweig, do túmulo, ainda aguarda uma resposta para seu livro. Que não será uma ponte...
O sociólogo, professor e ex presidente do IPEA no governo Dilma, Jessé Souza, é um arguto intelectual dedicado ao estudo do Brasil contemporâneo. Prestigiado pelos leitores, alguns de seus livros como "A Elite do Atraso - da Escravidão a Bolsonaro", entraram em listas dos mais vendidos. Além dos livros, Jessé está sempre na mídia, como youtuber ou dando palestras e entrevistas nos mais variados programas da TV e sites. Trata-se, com segurança, de um dos principais formadores de opinião do campo da esquerda, ao dar consistência, racionalidade e uma interpretação alternativa desta conjuntura complexa e sombria que assola o país.
Rastros da escravidão e desigualdade escabrosa, as duas chaves que abrem as portas para entendimento e mudança no Brasil, permanecem no radar do sociólogo. Está coberto de razão Jessé, ao afirmar que a crise brasileira é uma crise de ideias. Quinhentos anos de crise de ideias.
Para analisar a corrupção, o herege Jessé recorre a Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, mas ao contrário do mainstream acadêmico, não para enaltecer os clássicos da formação do Brasil, mas para culpá-los pelas "ideias velhas" e fora de lugar. A principal delas, o patrimonialismo, planta viçosa no Portugal antigo que, graças à semeadura dos intérpretes, gerou falsas raízes no Brasil.
É daí, segundo Jessé, que resulta a ideia de uma "elite maldita" e corrupta que vampiriza a sociedade, estar localizada apenas no Estado e na política. A esta corrupção Jessé chama de “corrupção dos tolos" que, segundo ele, não passa de mera cortina de fumaça para tornar invisível a "corrupção real" da "elite do atraso" que atua no mercado e faz o grande saque da sociedade.
Sonegação de impostos, juros altos, dívida pública são algumas formas de expropriação brutal desta elite, que torna irrisórios os valores amealhados na corrupção dos políticos. Para ilustrar a desproporção entre os dois “mal feitos”, Jessé recorre a uma metáfora do tráfico. Os aviãozinhos são os políticos, enquanto a boca de fumo é comandada pela "elite do atraso" que captura o Estado e atua no mercado. Nas palavras do autor:
Troca-se a corrupção real, que retira as chances de vida de centenas de milhões, para se culpar a “corrupção dos tolos”, a da propina dos políticos, que é obviamente nefasta, mas que equivale a dos aviõezinhos do tráfico de drogas.
Pois bem, esta é uma síntese do livro do sociólogo. De um lado a "corrupção real", sistêmica, promovida desde sempre pela "elite do atraso" a partir do mercado que captura o Estado e a política para seus fins. De outro a “corrupção dos tolos", dos políticos e burocratas do Estado, cuja narrativa bem articulada pela mídia manipula e mobiliza os brasileiros, "feito de imbecis", para a cruzada moralista.
É capitalismo, Jessé
Está coberto de razão o autor ao fazer a crítica da corrupção sistêmica da "elite do atraso", afinal trata-se do próprio capitalismo e o Estado não é o reino da universalidade e moralidade. Ao contrário, "o Governo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir os negócios de toda burguesia", nas palavras eternas de Marx e Engels no Manifesto de 1848. Sem entrar nas variações gramscianas que agregaram complexidade ao debate, para o tema em pauta, qual seja, a relação promíscua entre o público (Estado) e o privado (sociedade civil), não se pode esperar outra atitude a não ser as da "elite do atraso".
O argumento é reforçado pelo historiador liberal Fernand Braudel: "o capitalismo não é uma organização ética nem religiosa, e não tem qualquer compromisso com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da multiplicação dos lucros e da expansão continua de seus mercados", e pelo marxista Slavoj Zizek, ao analisar o mega escândalo dos "Panamá Papers" envolvendo a "elite do atraso": "a corrupção não é um desvio do sistema capitalista global, ela é parte de seu funcionamento básico".
A questão é como combater a rapinagem entranhada nestas formas históricas. Revolução republicana? Fortalecimento das instituições e controle social? O fato é que banqueiros e capital financeiro nadaram de braçadas nos 14 anos de governo popular. E nenhum dos crimes da “elite do atraso” apontados por Jessé foram combatidos nestes governos petistas. O que comprova que o poder está em outro lugar (deep state). Mas Jessé, cujo paradigma é a Alemanha e demais países social democratas da Europa, não trata de prescrições, mas de desvelamento, pois, segundo ele, "sem uma crítica das ideias, não existe prática social verdadeiramente nova". Nada mais justo.
Plena concordância, portanto, com a "corrupção real". A outra, a dos "tolos", necessita mais hermenêutica, mais esforço de interpretação.
As três faces da tolice
Pelos escritos e falas de Jessé é possível identificar a tolice superposta em três situações.
1. Somos tolos por assimilar a ideias de corrupção como "vírus cultural" herdado de Portugal via o conceito de patrimonialismo, que nos torna vira-latas e corruptos desde criança;
2. Somos tolos por acreditar que a corrupção só existe na política e no Estado e por não perceber que a verdadeira, sistêmica, da "elite do atraso", está no mercado;
3. A corrupção falsamente combatida pela Lava jato. Neste caso somos tolos por acreditar e apoiar uma força tarefa seletiva e partidária, instrumento da guerra híbrida dos EUA contra o Brasil, com objetivo de desferir o golpe midiático/jurídico/parlamentar contra um governo popular, impedir a candidatura de Lula e liberar a Petrobrás e o pré-sal para o capital internacional.
O problema é que nesta tríplice tolice a criança é jogada fora com a água suja. Se é patrimonialismo ou não, se a corrupção é maior no mercado e se a Lava jato é mesmo partidária, o fato é que na política e no Estado ela é sistêmica, em todas as esferas da união. Não por acaso é percebida como um problema gravíssimo para 90% dos brasileiros, de acordo com pesquisa da Transparência Internacional em setembro de 2019. Acreditar que este quase consenso é resultado exclusivo da guerra híbrida e da manipulação simbólica da grande mídia, então, mais que num país de "tolos", vivemos numa nação de zumbis.
Tendo a concordar com o historiador Thiago Krause, que em artigo no Uol em out 2017, afirmou que corrupção e desigualdade são aspectos do mesmo fenômeno a se reforçar mutuamente na história, e com a antropóloga Lilia Schwarcz, ao elencar em seu livro “Sobre o Autoritarismo Brasileiro”, o patrimonialismo e a corrupção entre as nove raízes do autoritarismo pátrio.
O real é tecido com vários fios e precisamos no mínimo identificar os mais importantes. Um deles é o fio da história a revelar indignação antiga dos brasileiros com o par corrupção/impunidade. Numa rápida mirada para trás, constatamos que, em 1964, os militares tomaram o poder para “livrar” o país de duas ameaças: o comunismo e a corrupção.
O primeiro presidente pós ditadura, Fernando Collor, foi eleito desfraldando a bandeira da moralidade com ênfase na "caça aos marajás". Alguns anos depois, acusado ele próprio de corrupção, sofreu impeachment. FHC governou de 1995 a 2003 com o PT na oposição rugindo como tigre, exigindo ética, denunciando escândalos, como as privatizações na "bacia das almas", todos eles abafados pelo Engavetador Geral da República.
Em 2003 os brasileiros elegerem Lula acreditando no jargão do partido "política de novo tipo", para enterrar a velha, dos "300 picaretas". E neste novo tipo, destaque para a "honestidade de um governante petista, a maneira como ele trata a coisa pública, com honestidade política, pública e administrativa", palavras de Marilena Chauí num programa Roda Viva em 1999, se referindo ao governo municipal de Luiza Erundina, mas generalizando a maneira petista de governar.
Aliás, os militantes petistas construíram o partido ouvindo as lições da filósofa sobre a ética da política, possível, segundo ela e Espinosa, com o fortalecimento das instituições. Nos escândalos do Mensalão e Lava jato, eclodiu o antipetismo, resultado do conluio - tema bem colocado por Jessé - entre grande mídia e Lava jato. E aí o PT ganhou a patente de inventor da corrupção no Brasil. A psicóloga Maria Rita Kehl foi certeira ao definir que o fenômeno do antipetismo ganhou asas devido a decepção redobrada daqueles que, em nome da esperança e da transformação elegeram um governo que acabou sendo sugado para o buraco negro da “governabilidade”.
Aliás, decepção também nas palavras de Petra Costa no documentário Democracia em Vertigem: “eu votei no Lula com a esperança de que ele reformulasse eticamente o sistema político”.
Lava jato entre a cruz e a caldeirinha
Com relação à Lava jato “bando criminoso” Jessé não faz nenhuma concessão. Indignou-se até com a prisão de plutocratas poderosos e corruptos confessos, que chamou de “populismo barato”.
De fato, nuvens soturnas pairam sobre a operação. Não existe mais dúvidas sobre o vale tudo da geopolítica americana, incluindo aí, a estratégia de segurança nacional de Trump, bem clara em alguns pontos, como este: “O combate à corrupção deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que sejam competidores ou inimigos dos EUA”, conforme trecho de documento publicado por José Luís Fiori e William Nozaki, em artigo no GGN. Mas não existem provas documentais do envolvimento direto de juízes ou procuradores nos ataques híbridos dos EUA, nem da trama secreta para destruir a Petrobrás, não se conhece a real influência de algoritmos. Do tribunal da história, no entanto, ninguém escapará.
Lula, ao contrário de Jessé, mesmo da cadeia afirmou que "a Lava jato teve coisa boa e não deve ser totalmente anulada". E depois de solto, em discurso no Congresso do PT em novembro de 2019, iria criticar a operação por corromper-se a si própria e ao processo eleitoral, mas também por ter sido branda demais, “deixando impunes dezenas de criminosos confessos que Sergio Moro perdoou e que continuam muito ricos”; por ter solto 130 dos 159 réus que ele mesmo havia condenado. “Temos muito que falar sobre ética, sobre combate a corrupção e impunidade acima de tudo temos que falar a verdade” concluiu, não fugindo do tema.
No quesito impunidade poderia ter lembrado Aécio e Serra, para início de conversa. Percebe-se aí, que ao contrário de Jessé, Lula tem plena consciência dos males da “corrupção dos tolos”, e pede mais rigor com os “ladrões”.
Uma visão correta, ao mesmo tempo crítica, como deve ser da Lava jato, mas mantendo a coerência de quem deu um passo significativo ao combate do crime do colarinho branco, fortalecendo e dando independência para as instituições - Policia Federal e Procuradoria Geral da República – cumprirem seu papel.
Bandeira em outras mãos
Em que lugar da história teve início a virada axiológica de petistas e de muitos formadores de opinião da esquerda ao migrar da ética da política, para uma zona entre o quase desdém para a corrupção, até o extremo da defesa de que os fins justificam os meios?
Por curtos espaços de tempo um fenômeno aconteceu: houve quase consenso - a exceção poderia ser Jessé – em torno do combate a corrupção. O final de 2014, época do idílico início da Lava jato, foi um destes momentos. Luís Nassif captou muito bem o espírito da época no artigo “A Lava jato e o fim de uma era política”, publicado no site GGN em dezembro daquele ano. https://jornalggn.com.br/coluna-economia/a-lava-jato-e-o-fim-de-uma-era-politica/. A primeira frase do artigo já estampa a esperança nacional: “A operação Lava jato caminha para ser um divisor de águas na história política do país, o desmonte definitivo de um modelo político, jurídico e econômico que vigorou nas últimas 4 décadas”.
A impunidade, com dias contados, anunciava os primeiros clarões de uma inédita República no Brasil. Com breve diagnóstico Nassif enumerou todas nossas mazelas, desde a “corrupção real”, com os crimes financeiros, bancos de investimentos, doleiros, contas offshore até a “corrupção dos tolos”, ou seja, a corrupção dos políticos e a pública, através de licitações e compras públicas.
Claro que a percepção do jornalista mudou com os fatos novos, tendo a Intercept - que não entregou todo o pacote - como ápice. E realiza um trabalho de jornalismo investigativo crucial, denunciando a indústria do compliance e outros abusos da corveia que ronda a operação. Mas seu erro e de muitos outros jornalistas da esquerda foi abandonar uma frente de luta cara aos brasileiros cansados com a degradação da política, desejando mudanças, e concentrar a crítica apenas na corrupção da própria Lava jato. Deveriam contemplar ambas as frentes. Não esquecendo que a Lava jato é uma instância pública, financiada com recursos públicos e deve cumprir objetivos públicos, obedecendo todas as normas constitucionais.
Para muitos formadores de opinião o velho crime de colarinho branco, ganhou termos pejorativos como “moralismo”, “udenismo”, “lacerdismo”, platitudes de mentalidades tolas, de direita, manipulados e cooptados para a cruzada moral. Uma clara autodefesa do PT após Mensalão/Petrolão.
E o inevitável aconteceu: a bandeira da ética na política mudou de mãos. Desde a década de 80 com a esquerda, agora é desfraldada pela direita e extrema direita. Uma tragédia a mais neste país que teima em andar de costas, como o anjo do pintor Paul Klee, com vista nada agradável da sucessão de fatos .
Mas houve outros entendimentos. Nos idos de 2005 o PT, Tarso Genro à frente, fez um mea culpa em nota à população pelo envolvimento de líderes do partido nos esquemas de Marcos Valério. A mesma nota convocava a militância para sair às ruas contra a corrupção e a impunidade. Genro queria refundar o partido e foi voto vencido. Permanece coerente com tal visão em 2020 ao propor “renovação dos paradigmas da esquerda”.
Em 2016, Olívio Dutra verteu lágrimas em entrevista com Roberto d’Ávila, inconformado com a arrogância de dirigentes “que pisaram o patrimônio ético do partido”. Pedia aos colegas, em pleno escândalo do Petrolão, autocrítica e humildade. Foi ignorado.
A terceira corrupção
Ao tematizar dois tipos de corrupção, a “real” da “elite de atraso” e a dos “tolos”, Jessé ignorou uma terceira: a dos privilégios.
Sim, os privilégios são uma espécie de corrupção legalizada, mas tão perversa quanto as demais. Se os temas desigualdade e herança da escravidão são tão caros ao sociólogo, como ignorar tal absurdo a olhos vistos? Como ignorar a Casa Grande que perdura nos umbrais do Estado?
Os números dos privilégios nos três poderes são anunciados quase diariamente na mídia, e apesar de sentirmos uma fisgada de indignação a cada nova revelação, tudo permanece igual. É bom sempre destacar a diferença entre direitos e privilégios. Os primeiros são fruto da luta popular e democrática e são universalizáveis, os segundos são apropriações nefandas de indivíduos ou grupo organizado deles.
Se existe alguma tolice, e com certeza há, não é por acreditarmos na existência da corrupção na política e no Estado (Jessé) e fiquemos indignados com isto, mas por aceitar e sustentar uma corte de apaniguados no país mais desigual do mundo.
Não existem atores socias para incluir o tema na agenda política e encaminhar um debate que resulte em ações concretas. A esquerda no Brasil é corporativa. Os maiores sindicatos são de funcionários públicos, com grande influência na CUT e o tema privilégio vira “direito” a ser defendido. As redes sociais manifestam uma indignação mas que não sai do mundo dos bits.
Com quase uma década e meia no poder o PT foi incapaz de encaminhar uma reforma administrativa para cessar os privilégios e diminuir a quota de desigualdade social promovida pelo Estado. Uma aposentadoria média no Legislativo, por exemplo, é 30 vezes maior que o salário mínimo da maioria dos brasileiros. Questões como esta deveriam nos fazer pensar em para que servem os partidos de esquerda, quando estes aderem ao liberalismo, a conciliação, à realpolitik e transferem seu maior legado, a luta antissistema, a “invenção do novo”, a “nova política”, para a extrema direita.
Os políticos, estes fazem parte do botim de Brasília e são os responsáveis, via leis espúrias, pela criação de privilégios nos três poderes, e também pelo Congresso Nacional mais caro do mundo, depois dos EUA. Com certeza não leram Do Espírito das Leis, de Montesquieu. Deveriam ler pelo menos o capítulo III do Livro V – O que é o amor pela democracia – e lá aprender que “O amor pela democracia é o amor pela igualdade. O amor pela democracia é também o amor pela frugalidade”. E o capítulo II do Livro VII – Das leis suntuárias na democracia – “À medida que o luxo se estabelece numa república, o espírito volta-se para o interesse particular... uma alma corrompida pelo luxo possui muitos outros desejos: cedo se torna inimiga das leis que a constrangem”.
No livro “Um país sem excelências e mordomias”, a jornalista Cláudia Wallin mostrou como vivem os políticos e magistrados na Suécia: como o povo!! Exemplos de virtu republicana: Pepe Mogica...Presente! Olívio Dutra...Presente! Policarpo Quaresma...Presente! Darci Ribeiro...Presente! Papa...Papa Francisco? sua Santidade também por aqui? sim, também...Presente! De fato, na Encíclica Laudato Si, Fransisco exorta o "desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção. Da mesma forma no importante documento Carta da Terra, o item "e" é bem explícito: "eliminar a corrupção em todaas as instituições públicas e privadas".
O poder judiciário, o mais corrupto de todos, segundo Jessé, é uma trincheira de defesa da sua corte. Artigo recente de Aldo Fornazieri, um dos poucos articulistas no campo da esquerda a colocar o dedo nesta ferida que faz sangrar o Brasil, mostra parte disto.
https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/02/aldo-fornazieri-fux-huck-fhc-e-os-homens-sem-honra/.
O governo Bolsonaro encaminhou ao Congresso uma lei de Reforma Administrativa. Como aconteceu com a Reforma da Previdência, o objetivo não será reduzir desigualdades tendo em vista a República, mas atender ao capital financeiro da “elite do atraso”.
Astúcia da razão
Jessé não nega a existência de corrupção na política, mas minimiza suas consequências ao comparar com a da “elite do atraso”. Considera sim, grave, as falcatruas de Sérgio Cabral contra a população do Rio de Janeiro, mas relativiza ao comparar o roubo de R$260 milhões do ex-governador, com os danos causados ao Estado pela crise imposta à Petrobrás pela Lava jato. Da mesma forma compara a sonegação de 500 bilhões de dólares com os míseros 1 bilhão recuperados pela Lava jato. Ora, não existe nada de desprezível em nenhum destes valores que aparecem na ponta do iceberg, e nos R$290 milhões de Pedro Barusco, ou nos R$51 milhões nas malas de Geddel etc...
Aí não se trata de aviãozinhos, no mínimo Boeings e Tupolevs. E o caso Banestado, fartamente denunciado pelo Senador Requião - envolvendo agentes da “corrupção dos tolos” e da “elite do atraso”, com envio para o exterior de meio trilhão de reais! via contas CC5 – mas estranhamente abafado nos arcana imperii? E isto sem contar as caixas pretas dos estados e municípios que permanecem intactas.
Fazer comparações para subestimar, ou relativizar a corrupção na política e no Estado, e considerá-la como mero bode expiatório, não ajuda. Jessé contribui ao debate ao retirar os véus da intransparência que escondem os crimes financeiros, mas poderia fazê-lo de forma mais específica, menos genérica. Concordo com o sociólogo que nos últimos anos o Brasil tem dado exagerada ênfase ao tema. De fato, temos vivido sob a égide da pequena política – a corrupção – enquanto deveríamos nos ocupar da grande política com temas como tecnologia, meio ambiente, desigualdade, desemprego e crise estrutural do capitalismo.
Como então compreender a grande catarse nacional que ainda sacode o país, esta “sociabilidade insociável” cujo significado profundo escapa a nós, contemporâneos? Talvez estejamos sob auspícios da “astúcia da razão” ou de um “plano secreto da natureza”, figuras criadas por Hegel e Kant para explicar os artifícios da Razão em seu curso.
Nós seríamos as particularidades sacrificadas, as paixões em conflito inconscientes do Plano. Seja como for, pagamos um preço muito alto nesta dialética negativa: Bolsonaro et caterva.
De acordo com Jessé seria o caso de seguirmos o exemplo de outros países como a “Alemanha ou os EUA que combatem a corrupção de modo cotidiano, sóbrio, um crime como outro qualquer”. Mas este é o problema, o Brasil combateu a corrupção durante 500 anos com sobriedade, em silêncio, sem ninguém perceber, nem mesmo os corruptos.
É o retrato da impunidade, a conivência da Justiça. Jamais vingaram, nestas terras continentais, as instituições republicanas. As elites brasileiras, da esquerda e da direita, a “elite do atraso” (nosso “deep state”) pararam na Casa Grande e Senzala e, por outros meios, seguimos reproduzindo aquela sociedade desigual, escravocrata, racista, como bem descreve Jessé Souza. Se apurássemos bem os ouvidos talvez pudéssemos escutar, entre os rumores roucos e difusos das ruas, uma sussurrante voz além dos moralismos e limpezas éticas, uma voz cansada com as modulações políticas que mudam para nada mudar.
Cansada, aí sim, com a aliança entre a “elite do atraso” e a política venal, desejando mudanças profundas, institucionais, estruturais, antissistemicas e, por que não, revolução republicana? Para muitos, entretanto, entre eles Jessé e Marilena Chauí, é predominante a voz do fascismo. A história continuará em aberto, e nesta lacuna entre o passado e o futuro deveremos estar aptos a pensar e agir.
Stefan Zweig, do túmulo, ainda aguarda uma resposta para seu livro. Que não será uma ponte...