Por que a opção pelos mais pobres incomoda tanto
Não existe perspectiva privilegiada ou neutra quando tratamos do que é arte, do que deve ser a sociedade e de como devo me comportar.
Existem aspectos funcionais, os comportamentos desempenham alguma função em relação ao grupo do qual se faz parte.
Existem aspectos estruturais, as formas de se fazer, agir e produzir se limitam por condições naturais e pelos limites da inteligência e cultura atuais.
Existem aspectos convencionais, nada impede de mudarmos nosso idioma para o inglês a não ser a indisposição , o costume e o apreço por nossa língua.
Apesar de todos estes aspectos condicionantes, existe uma margem de escolha que nos é obrigatória. Nem todos eles dirão de forma terminativa como e o que devemos fazer e pesquisar.
A escolha de priorizar na sua arte e pesquisa os valores tradicionais, de uma dada elite, classe ou campo acadêmico é puramente valorativa e não científica. Nem existe um fundamento natural ou metafísico que nos obrigue em nome da verdade a utilizar um ou outro fundamento.
Eu escolhi os mais pobres. Escolhi interrogar as desigualdades e as injustiças sociais. Para isto tive entender os fundamentos valorativos que as representam como naturais.
Optei por não esquecer minha origem e por não me envaidecer com alguma melhoria de vida que adquire em relação aos meus pais e mais próximos.
Ninguém é obrigado a adotar tal perspectiva. Nem é obrigado a ser coerente, mas não pode escapar das consequências de suas escolhas. Seja na contribuição inconsciente ou não para a manutenção da miséria e do sofrimento dos outros, seja na sensibilização das pessoas contra valores e formas de agir que causam discriminação e marginalização de milhões de pessoas.
Ninguém é obrigado a ser bom, amar o próximo, se importar com a miséria dos outros ou se angustiar com uma sociedade injusta e maléfica contra minorias. Nem ao menos é obrigado a ser inteligente e manter a coerência e honestidade intelectual.
O que não é possível é negar, sem descartar a coerência e a razão, fatos e consequências lógicas do que se defende em nome da diversidade de perspectivas que se possa adotar.
A escolha de uma perspectiva tem muito mais a ver com os valores que uma pessoa carrega dentro de si do que uma necessidade lógica ou natural.
A pergunta do título acabou por não ser respondida adequadamente.
Seria uma tentativa de negar a própria origem? Mascarar a difícil realidade de ser alvo de discriminações? De negar que deu muito mais do deveria receber? De fingir que não foi sacaneado por sua origem, cor e gênero? De negar que a sorte lhe poupou do destino de muitos de seus semelhantes?
Talvez os que se incomodam com isto possam responder melhor. Posso errar conceitualmente, posso inferir de forma precipitada, posso até faltar com mais leituras em certas áreas, mas minhas escolhas valorativas são tão possíveis e cabiveis como qualquer outra. Só nao escolhemos as consequências delas.