DEMOCRACIA EM VERTIGEM OU A TRAGÉDIA BRASILEIRA



Fiquei sabendo que o documentário "Democracia em Vertigem" da cineasta Petra Costa estava indicado ao Oscar através de frases esperançosas de Dilma Rousseff "A verdade não está enterrada" e de Lula "A verdade vencerá", em pequenas manchetes nos jornais on line. Percebi, um pouco angustiado, que estava totalmente por fora do assunto, apesar de pertencer a tribo dos viciados em informações. Entrei logo no Netflix para ver o vídeo e me tornar up to date. Constatei, via google, que um longo debate já estava rolando, refletindo com fidelidade a geografia política de amigos/inimigos, mocinhos/bandidos ou qualquer outra forma de nomear o maniqueísmo instalado. Aliás, ao suscitar polêmicas sobre estes anos que não cessam de abalar o Brasil, o documentário já cumpriu seu papel e vai cumprir ainda mais ao revelar ao mundo lances importantes de nossa tragédia. Precisaremos mesmo muita energia encefálica para compreender a complexidade deste drama coletivo. Drama sim, tragédia. Nunca a política no Brasil gerou tanto ódio, sofrimento e tristeza. Mas não podemos nos iludir, para nós, contemporâneos, ainda é difícil uma mirada histórica, pois estamos dentro de um presente alargado. Os fatos ainda pululam em nossas memórias, em nossos nervos. Parece que foi tudo ontem. A ave Minerva precisará de muitos anos para alçar voo e obter o conhecimento retroativo, aquela verdade postulada por Dilma e Lula, decantada na sabedoria do tempo, distante dos fatos e das paixões.

Impossível traduzir décadas em menos de duas horas. Todo documentário é um recorte da inapreensível realidade. Podemos minimamente nos reconciliar com esta desde que combinada a veracidade dos fatos com uma boa narrativa. Gostei do Democracia em Vertigem porque ele atendeu estas duas condições. Mostrou sem grandes pretensões, mas com a simplicidade da arte, as imagens, muitas delas icônicas, que estarão para sempre no nosso imaginário como drama vivido, e para as gerações futuras, como história: a condução coercitiva do Lula e a prisão dele; o Bessias de Dilma; o power ponty de Dallanhol; as cenas em que a tragédia vira tragicomédia como o discurso rancoroso de Janaína (o que foi aquilo?) se contorcendo como uma serpente em vertigem, girando uma bandeira nacional e vociferando algo como "vamos cortar as asas da cobra", "o Brasil não é a república da cobra", Santo Deus!; os votos dos parlamentares no impeachment de Dilma, como o de Bolsonaro homenageando o torturador e Cunha pedindo a Deus misericórdia por este país - overdose de vertigem. Argh!; os parlamentares da bíblia evocando Deus pelo impeachment, na certa provocando o vômito Divino; o "tem que manter isto, viu?" de Temer; o Fred e os dois milhões do impune Aécio; as conversas antirrepublicanas de Romero Jucá; as cenas trepidantes das jornadas de 2013; o assalto popular ao Congresso Nacional entre tantas outras. Tudo trespassado com um fio narrativo intimista de uma integrante da classe média que viveu todas as consequências, inclusive intrigas de família (quem não as viveu?), de um mundo em vertigem.
Com certeza muitos odiaram o documentário por ele mostrar a frustração de Petra (e da maioria dos brasileiros, incluindo boa parte dos petistas) com o erro fatal dos governos petistas de aderir a governabilidade corrupta e venal da política brasileira. "Eu votei no Lula com a esperança que ele reformulasse eticamente o sistema político", narrou a cineasta, para em seguida lamentar "Era triste ver um partido que se elegeu com a promessa de transformar o sistema, se embrenhando no sistema promíscuo de financiamento de campanha, desenhado para tornar qualquer mudança impossível". Mas o ápice do ódio, principalmente daqueles que consideram tolos e imbecis os que percebem a corrupção dos políticos um grande mal, viria a seguir na voz inocente de Petra:
"Distante da pressão popular a classe política perpetuou um antigo sistema de interesses cimentado pela corrupção. E este sistema permaneceria intacto décadas após décadas, até que veio o abalo sísmico. A relação promíscua do dinheiro com a política era o segredo que todos sabiam e quando eram investigados nunca dava em nada. Até que chegou a Lava Jato".
Crítica demais para partidários que consideram o PT sempre vítima, nunca um dos atores da complexa e negativa dialética cujas últimas piruletas para trás deu em Bolsonaro. Petra citou Moro, o "juiz treinado nos EUA que aprendeu a usar a mídia em seu favor". Criticou a mídia que "abraçou a causa sem nenhuma espécie de questionamento". Mas neste ponto o documentário poderia ser mais enfático e explorar o papel da grande imprensa em plena era digital de jornalismo alternativo. Parcela da vertigem que abala a democracia é fruto da manipulação dos fatos e das pessoas, da mentira deliberada, da parcialidade. Nesta onda terraplanista em que a própria verdade racional se esvai, a verdade dos fatos, a base da convivência e da troca de opiniões no espaço público, está sendo dizimada. A democracia em todos os cantos do mundo sofre de vertigem ao ser bombardeada pelos algoritmos dos engenheiros do caos. O desafio é global mas temos que encarar nossas próprias mazelas.
Como Petra é jovem, terá tempo suficiente para, lá na frente, fazer outro documentário que poderia se chamar "Democracia em Idílio" mostrando ao Brasil e ao mundo a capacidade de superação dos brasileiros e de iniciar algo inteiramente novo.
Precisamos da alegria na política para complementar a outra em que damos de goleada: a alegria vital.
luiz cezare vieira
Enviado por luiz cezare vieira em 16/01/2020
Reeditado em 21/03/2020
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