OS DIREITOS NATURAIS E O ESTADO
 
     Os direitos naturais são direitos que não dependem de edição normativa para existirem. O mero fato de um ser humano existir como tal traz, de forma intrínseca à sua existência, valores individuais que transcendem qualquer ordenamento jurídico. Todavia, isso não quer dizer que é desnecessário que as constituições incluam em seus textos os direitos e as garantias fundamentais ao ser humano, eles precisam ser positivados, até mesmo porque, como não há crime sem lei que o defina, é a normatização positiva do Direito que cria o arcabouço jurídico para que ele seja garantido e também para que a sua transgressão seja punida. Nota-se esse positivismo legal evidenciado em nossa Constituição de 1988, a chamada por Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”. Se tão somente molharmos os pés nas tranquilas águas de nossa Constituição, logo sentiremos seu calor ao lermos garantias como a de que “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”[1] A vida, a liberdade, o livre pensamento, o asilo inviolável, a livre manifestação de pensamento, tudo foi, de forma atenta e cuidadosa, colocado na Carta Magna pelos constituintes.
     No entanto, cabe aqui um movimento no objeto observado, uma mudança de ângulo, como se nosso ordenamento jurídico fosse um objeto tri e não bidimensional. Ao invés de olharmos nossas leis como sendo pensadas apenas para o sujeito legislado, olhemos para elas como sendo, ao mesmo tempo, um limitador do poder do Estado. Quando o artigo quinto estabelece a casa como asilo inviolável, onde ninguém pode entrar sem consentimento do morador, e um terceiro só pode entrar sob o consentimento do morador, para prestar socorro ou em caso de calamidade, e o Estado só pode entrar com o consentimento do morador, para exercer seu poder de polícia em caso de flagrante delito ou com ordem judicial somente durante o dia, não é somente para os direitos naturais que está se olhando, não é só o individualismo e a dignidade da pessoa que está se procurando defender, mas, principalmente, é o Estado que está sendo freado e limitado. Quando atinamos para essa percepção, notamos que até mesmo o nosso Código de Processo Penal não é uma forma que o Estado tem para garantir seu direito de punir infratores, criminosos e delinquentes, antes, é uma garantia de que ninguém será levado à prisão sem o devido processo legal, que nenhuma prova ilegal será juntada aos autos, que ninguém terá suas ligações telefônicas interceptadas sem uma autorização judicial. É claramente a atuação do Estado sendo regulada.
     É o chamado “Garantismo” que fica evidente em nossos códigos legais. Antes de ser uma ferramenta punitiva, já é plenamente perceptível, ainda no recebimento do inquérito policial pela Promotoria de Justiça, no posterior oferecimento da denúncia à respectiva vara criminal e na possível autuação do acusado gerando um processo, que todo o trâmite adotado como instrumento persecutório do Estado configura-se uma verdadeira anatomia processual que pretende garantir ao réu um julgamento justo e livre de qualquer autoritarismo ou truculência estatal. Garantias penais como a exclusão de prisão perpétua, pena de morte, penas cruéis e de banimento, foram fincadas na Carta Magna como cláusulas pétreas, as quais não podem ser suprimidas nem emendadas, sendo que qualquer movimento tendente a mitigar tais garantias exige uma nova constituição, um chamamento para uma nova constituinte, e isso, por meio do poder constituinte originário: o povo!
     Essa articulação entre direitos naturais e liberalismo sempre estiveram coesas, e quem quer que tome mais intimidade com a ideia de direitos naturais não vai demorar mais do que poucos minutos para perceber a dicotomia cidadão X Estado. Quanto mais se busca promover a liberdade do indivíduo, mais se suprime o poder de ação do Estado, sendo a recíproca verdadeira. O liberalismo busca um Estado mínimo (pelo menos uma corrente dele, o liberalismo miniarquista), com a menor intervenção estatal possível, onde as pessoas sejam livres em suas vidas para decidirem seus valores éticos e morais. Assim, para os liberais o Estado deveria intervir apenas em questões essenciais, como segurança, por exemplo, e evitar ao máximo interferir no mercado econômico e na livre iniciativa das pessoas. Há também a corrente liberal que diz que o cidadão não deveria ser obrigado pelo Estado nem a ser ajudado por outrem nem a ajudar outras pessoas se não o quisesse, ideia que faz ferrenha oposição à concepção de Estado assistencialista.
     Ora, diante desse dualismo, podemos analisar como seria cada extremo. Se o Estado chamasse para si todas as responsabilidades e se dispusesse a ser um grande pai de todos, o próprio Estado se agigantaria a tal ponto que seu próprio peso seria um fardo insuportável para aqueles que ele tenta proteger e acabaria por esmagar aqueles que buscava assistir e socorrer, o que nos leva à ideia de que a moderação parece mesmo ser o mais prudente. Por outro lado, um Estado nulo é também inviável, impossível, seria ou uma anarquia ou aquela misteriosa quimera que o comunismo clássico prega. É utópico pensar em um Estado onde tudo seja privado, isso não é um objetivo a ser alcançado, materializado, antes é um exercício contínuo, uma práxis, como diria o marxismo. Assim sendo, quando se fala em Estado mínimo, a ideia é que ele seja como uma salsicha presa ao rabo de um cachorro, algo a ser sempre perseguido sem nunca ser alcançado, uma constante busca pela autonomia do ser humano e sua liberdade e uma permanente vigilância sobre os tentáculos estatais que se espraiam sobre seus cidadãos, uma procura constante pelo enxugamento da máquina estatal e pela saída do Estado de áreas onde sua presença não se faça indispensável.

 

[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico, 1988. Art. 5º, inciso II.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 28/12/2019
Reeditado em 14/02/2021
Código do texto: T6828473
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.