O SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO CIVIL
 
     No mundo atual, considerando-se todas as casas legislativas existentes espalhadas pelas mais diversas nações, há um incomensurável número de leis sendo propostas e promulgadas diariamente. Conquanto muitas delas sejam regulações e proibições, boa parte dessas leis são direitos que são incorporados ao escopo jurídico. Em um primeiro momento, pode parecer bom que o número de direitos conquistados pelos cidadãos siga em uma ascendência vertiginosa, todavia, se considerarmos que para cada direito advindo de uma lei, amalgamado a ele vêm também incontáveis obrigações e órgãos garantidores desses direitos, o cenário já não se mostra tão iluminado assim. Ora, um direito sem uma obrigação que o garanta não é direito nenhum, não passa de rabiscos escuros sobre um fundo branco. Um exemplo disso bem próximo à nossa experiência é o direito à pensão alimentícia: uma vez definido esse direito, surge com ele a obrigação a um dos genitores de pagar ao infante a quantia determinada em juízo; não houvesse essa obrigação, esse direito não passaria de letras organizadas em um papel assinado por uma autoridade. Mais ainda, é necessária a criação de órgãos estatais que julguem as demandas, que promovam as ações, que fiscalizem, punam e regulem. Enfim, o que parecia ser uma melhora para a vida do cidadão acaba por ser um impulso para que o Estado fique cada vez mais inchado e controlador, pois ele não só cria direitos, mas impõe obrigações deles decorrentes, além de entregar aos cidadãos a pesada carga de custear uma imensa máquina pública posicionada para garantir tais direitos e dirimir os litígios deles advindos. A máquina pública, por sua vez, é custeada com “contribuições” impostas (quem diria?), também por força de lei. O resultado da obesidade estatal é previsível:
 
     “O resultado dessa tendência será fatal. A espontaneidade social terminará frequentemente violentada pela intervenção do Estado; nenhuma semente nova poderá frutificar. A sociedade terá que viver para o Estado; o homem, para a máquina do governo. E por não passar, afinal, de uma máquina, cuja existência e manutenção dependem da vitalidade circundante que a mantém, o Estado, depois de sugar o tutano da sociedade, ficará tísico, esquelético, morto dessa morte enferrujada da máquina, muito mais cadavérica que a do organismo vivo.”[1]
 
     Feita essa observação, deixemos o “Estado” de lado agora e voltemos a falar sobre as leis. Não obstante a marcha legislativa ininterrupta que busca constantemente atualizar os códigos legais frente à realidade sempre mutável, há direitos que independem de edição, proposta e promulgação, são os chamados direitos naturais. Tais direitos são inerentes ao ser humano, nascem com ele, são personalíssimos, indisponíveis, intransmissíveis e irrenunciáveis. Entre eles, podemos citar o direito à vida, à liberdade, à integridade e ao livre pensamento. Em nosso ordenamento jurídico, coube ao Ministério Público a tutela dos direitos indisponíveis, por isso, quando um litígio civil que envolva tais direitos gera um processo jurídico, o Ministério Público intervém na lide, se não como parte, como fiscal da lei, tendo vistas de todas as movimentações constantes dos autos, garantindo que, ainda que alguma parte queira renunciar qualquer direito natural que seja, fique impedida de fazê-lo.
     As origens do reconhecimento da existência de direitos naturais e seu desentranhamento do mundo das ideias e posterior conversão em obras literárias remonta a antiguidade, mas ecoou com maior veemência com o advento do modernismo. Talvez o pré-socrático Antifonte tenha sido o primeiro na tradição filosófica a levantar a questão do direto natural:
 
     “Antifonte radicaliza a antítese entre ‘natureza’ e ‘lei’, afirmando com termos eleáticos que a ‘natureza’ é a ‘verdade’ e a ‘lei’ positiva é a ‘opinião’, e que, portanto, uma está quase sempre em antítese com a outra. Chega a dizer, por conseguinte, que se deve seguir a lei da natureza e, quando isso puder ser feito impunemente, transgredir a lei dos homens.”[2]
 
     Enquanto Thomas Hobbes escrevia sua filosofia política justificando a existência de um Estado absoluto, o Leviatã, tido por ele como um organismo capaz de dar segurança a uma sociedade viciada pelo “homo homini lupus” onde o homem é o lobo do próprio homem, vinha na contramão de seu pensamento John Locke, lançando as sementes do liberalismo. As ideias de Locke condenavam o absolutismo despótico hobbesiano e preocupavam-se com a proteção das liberdades individuais, ideias essas que acabaram por influenciar profundamente o Iluminismo, além de ter alavancado a independência americana, a tal ponto que até na constituição dos Estados Unidos da América a filosofia lockeana é percebida. As mais profícuas consequências adentraram nosso tempo e contribuíram para a ascensão de grandes nações; o liberalismo lockeano foi uma das vértebras da espinha dorsal do ordenamento jurídico ocidental. As consequências da filosofia lockeana foram sentidas também, como não poderia deixar de ser, na própria Inglaterra, país do qual John Locke era nativo, onde foi possível a germinação do que conhecemos hoje como direitos humanos, precisamente quando em 1689 foi redigida a Declaração de Direitos.
     Os direitos naturais implicam liberdades individuais, um individualismo tanto de valores quanto dos direitos. Tal decorrência se deve ao princípio irrecorrível de que o homem é livre para estabelecer seus valores individuais, construir sua moral e, principalmente, livre para buscar a sua felicidade, como, a propósito, aparece na Declaração de Independência americana, redigida por Thomas Jefferson, remontando a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, textos esses que reverberam a voz de John Locke na contemporaneidade. A busca pela felicidade era tão preciosa que ganhou força constitucional, foi tão reverenciada pelos pais da independência americana que a puseram ao lado do direito à vida e à liberdade. Abraham Lincoln destacou que a constituição americana deveria ser interpretada sob a luz da Declaração da Independência, declaração que tratou como verdades autoevidentes o fato de todos os homens serem iguais, dotados por Deus de direitos naturais inalienáveis, tendo, ainda, a reverência litúrgica de registrar no texto o direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade.
     Uma vez reconhecidos esses direitos individuais, especialmente o individualismo de valor, o qual trata como um direito natural a busca pela felicidade, o que se segue é o individualismo de direitos, reconhecendo-se como legítimo o uso dos meios para atingir-se a felicidade buscada, seja celebrando contratos, convênios, sociedades ou iniciando empreendimentos, desde que não se ultrapasse limites que acabem por ferir a liberdade e os direitos de terceiros. Todo nosso arcabouço jurídico que regula as atividades civis visa a garantir que esse individualismo seja protegido, tanto o é que, já ao folhear as páginas iniciais do nosso Código Civil, salta aos olhos a preocupação do legislador em resguardar os direitos individuais, o individualismo e, principalmente, oferecer segurança jurídica e social para que os homens busquem realizar seus anseios com um foro determinado onde todas as lides podem ser julgadas sob a égide da Justiça. Todo esse desenvolvimento se mostra como corpos celestes orbitando uma estrela situada no centro de um sistema, um sol, e esse sol veio aquecer nossa pele em 10 de dezembro de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde as Nações Unidas delinearam os direitos humanos mais básicos e os estabeleceram como um escopo a ser progressivamente perseguido por todas as nações do globo terrestre.
 
 

[1] ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução de Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016. Pág. 199.
 
[2] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario História da Filosofia: Filosofia Pagã Antiga, Vol. 1. Tradução de Ivo Storniolo. Coleção História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. Pág. 81.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 28/12/2019
Reeditado em 16/07/2021
Código do texto: T6828469
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