MARSÍLIO DE PÁDUA E O DEFENSOR DA PAZ
 
     Marsílio de Pádua, embora não seja tão conhecido pelo grande público, nos legou um dos princípios mais basilares dos estados ocidentais, o princípio do estado laico. Foi ele, inclusive, o primeiro autor a propor a ideia de um estado laico, estado esse totalmente independente dos poderes papais. É importante salientar que o período em que o filósofo viveu foi marcado por intensas instabilidades políticas, tendo ele nascido no final do século XII, viveu intensamente o período de duras lutas entre o papado e o Sacro Império Romano Germânico. Marsílio foi professor na Universidade de Pádua, e também esteve à frente da reitoria da Universidade de Paris, sendo que a principal obra que nos legou foi o livro “O defensor da paz”. Marsílio escreveu, na verdade, duas obras de filosofia política, que influenciaram e marcaram a modernidade e retumbam na contemporaneidade.
     O defensor da paz para Marsílio era o imperador do Sacro Império Romano Germânico, e era pelo autor considerado acima do papa na hierarquia estatal. A ideia de um imperador com autonomia governamental, completamente independente dos olhos da igreja era algo revolucionário para a época, uma vez que, até então, prevalecia a política agostiniana, onde Deus é que estabelece reis e destrona reis, comandando os tempos e os reinos. A consequência das ideias propostas por Marsílio foi a manifestação da ira do papa João XXII, a ponto de o supremo pontífice condenar a obra “O defensor da paz”, e provocar a fuga de Marsílio, temendo por sua vida, para a Baviera, onde buscou refúgio e proteção.
     A forma de governo vista com melhores olhos por Marsílio é a república, onde todos seus integrantes têm como objetivo a obtenção e a manutenção da paz. É possível notar a concordância com Tomás de Aquino quando Marsílio afirma que o poder vem de Deus em direção ao povo, e esse, por sua vez, faz uso desse poder conferido por Deus escolhendo soberanamente seus governantes. Dessa forma, a autoridade máxima e que representa legitimamente o povo é o governante, e não o papado, sendo concebido aqui o poder representativo. Percebe-se na obra de Marsílio a deliberada intenção de apresentar o imperador como sendo o único capaz de ser o defensor da paz, uma vez que, concordando com Santo Agostinho e se antecipando a Thomas Hobbes, Marsílio aponta o homem como sendo mal por natureza, escravizado a uma condição corrompida, e por isso, carente de um governo firme e severo, capaz de garantir a paz na sociedade. Na república pensada por Marsílio, nenhuma interferência, quer seja de bispos ou de padres, quer seja de papas, era bem-vinda; a autoridade máxima e absoluta na condução da vida civil era exclusivamente do imperador, o defensor da paz, o qual devia contas apenas a Deus por suas deliberações.
     Todavia, a ideia de um estado laico, conforme proposto por Marsílio, não teve uma aceitação muito imediata, até mesmo porque o próprio sacro império romano germânico desmoronou, e desmoronou muito antes do papado, inclusive. Devido a grande força do papado na idade média, Marsílio morreu sem ver nenhuma de suas ideias se concretizarem, o que o faz um homem à frente de seu tempo, sendo ele como aquele que derrama a semente sobre a terra, para que depois outros possam colher os frutos. A resistência foi tão grande que por cerca de duzentos anos após a morte de Marsílio ainda aconteciam guerras e batalhas entre o papado e o Sacro Império Romano Germânico, de sorte que somente com o advento da reforma protestante é que Europa veio a ser separada entre aqueles que permaneceram fiéis à igreja católica e ao papado, e entre aqueles que aderiram ao protestantismo (luteranos, calvinistas e anglicanos), e passaram, consequentemente, a ignorar a cúria romana.
     Marsílio Mainardini, que também era médico, defendia um governo centralizado, único e indivisível, sem passar pelo direito divino nem apresentar a civitas como um processo natural, antes, uma sociedade civil embasada na experiência humana e no exercício da razão. Ao expor sua ideia de governo, o filósofo descreve a sociedade em partes, onde cada parte exerce uma atividade vital, em uma clara analogia a um organismo vivo. Dentre essas partes, a principal é a pars principans, que é o governo, a única parte indispensável do organismo civil. O autor sugere que em situações onde haja vários poderes, haja um que seja centralizador e superior hierarquicamente a todos os demais poderes, para assim, regular, fiscalizar e coibir os erros dos demais. Vários autores contemporâneos a Marsílio eram a favor de um governo centrado em uma única pessoa, dizendo até ser impossível reinar sem que esse governo seja uno. O que se percebe é uma hegemonia da monarquia no pensamento da época. Todavia, embora Marsílio defenda um governo central, essa centralidade não se dá na figura de uma pessoa, mas na unidade do governo, das funções da máquina pública.
     É por isso que o nosso autor, mesmo concordando com a monarquia, se inclina mais para a aristocracia a para a república constituinte. Aqui, embora a ação do governo seja coletiva, persegue-se a unidade das ações, tornando irrelevante o fato de o governo ser composto por um único homem ou por um conselho. Todavia, se houver vários governos, sem um centralizador e soberano aos demais, o que se segue são o caos e intermináveis batalhas sangrentas. A polêmica da obra do médico paduano reside na completa ruptura entre governo e religião, de tal forma que condena qualquer outra forma de poder que queira se por em pé de igualdade ao poder soberano e único. O filósofo chega ao ponto de refutar a ideia de um poder divino, onde uma autoridade sacerdotal exerce um segundo poder, trazendo uma ambiguidade e um conseguinte desequilíbrio na ordem e na paz da sociedade civil.


BIBLIOGRAFIA

MARSÍLIO DE PÁDUA. O defensor da paz. Tradução e notas de José Antônio de C. R. de Souza. Introdução de José Antônio de C. R. de Souza, Francisco Bertelloni e Gregório Piaia. Petrópolis: Vozes, 1997.

STREFLING. Sérgio Ricardo. “A unidade do poder em Marsílio de Pádua”. Veritas: Porto Alegre, v. 56, n. 02, maio/ago. 2011, p. 165-177.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 27/12/2019
Reeditado em 14/02/2021
Código do texto: T6828376
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