JEAN-JACQUES ROUSSEAU E O CONTRATO SOCIAL

 

     O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1776) foi um autor que marcou a Idade Moderna, principalmente o século XVII, o século do Iluminismo, e serviu como inspiração para acontecimentos que mudaram a história do mundo ocidental. Robespierre, um dos mentores e um dos principais líderes da Revolução Francesa, tinha como seu livro de cabeceira a obra de Rousseau Do Contrato Social. Considerando que Robespierre foi um proeminente agente histórico e que a Revolução Francesa divide os períodos da história entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea, podemos dizer sem nenhum exagero que a filosofia de Rousseau mudou o mundo. Rousseau escreveu o Discurso sobre a origem das desigualdades sociais e também o livro Emílio, que trata da educação, além de outras obras, mas, sem dúvida, sua obra prima foi Do Contrato Social, e é sobre essa última que vamos nos debruçar. O lendário, mítico e heroico Napoleão Bonaparte chegou a dizer que se Rousseau não houvesse existido, ele mesmo, Napoleão, o personagem histórico e eterno, também não existiria.
     Rousseau começa seu pensamento argumentando que o homem em seu estado de natureza é bom, mas a corrupção o afeta por meio da sociedade. Sendo ele um dos filósofos contratualistas — precisamente o terceiro, sucedendo Thomas Hobbes e John Locke —, ele já começa discordando de Hobbes, para quem o homem em estado natural é destrutivo, tem sede pela aniquilação dos demais e recorre ao contrato social justamente porque enxerga nele uma forma de segurança, um meio para fugir de uma vida de medo e uma saída para estancar a ameaça constante que o cerca. Essa ideia de um homem bom em essência e que é corrompido pelo contexto em que é inserido muito se aproxima do “Dasein” de Martin Heidegger, um filósofo alemão que em sua obra Ser e Tempo diz que o homem ao ser inserido no tempo tem a sua essência danificada e obstruída pelo contexto que o cerca, afastando-se assim do seu verdadeiro “eu”, da sua verdadeira essência. Segundo Rousseau, o homem em estado natural, ou o “bom selvagem”, era um homem solitário, livre e feliz, desatado dos grilhões da sociedade e de qualquer forma de opressão ou de manipulação comportamental. Em suma, o homem podia ser aquilo que ele queria ser, não havia nenhum padrão de moralidade, nem qualquer ética coletiva que o preocupasse e ditasse seu comportamento, não havendo, portanto, nenhum egoísmo nem ambição, sendo que a única preocupação era fugir da dor.
     O problema surge, segundo Rousseau, quando pela primeira vez um homem finca uma estaca no chão, cerca um pedaço de terra e se declara dono daquele espaço, surgindo assim a propriedade privada que, para Rousseau, é a origem de todo o mal que assola a humanidade, sendo a causadora das desigualdades sociais e a responsável pelo constante espírito de guerra.
     Esse surgimento primeiro da propriedade privada teve sucesso devido à inocência e ingenuidade dos outros “bons selvagens”, que deveriam ter prontamente rechaçado essa atitude e impedido a ideia de alguém como possuidor da terra, uma vez que os frutos da terra são um bem comum e ninguém pode se autodeclarar dono da terra. Nesse ponto, Rousseau discorda de outro filósofo contratualista, desta vez de John Locke, que dizia que ao trabalhar uma área de terra, o trabalhador adquiria legitimidade para ser o proprietário do lugar.
     Para Locke, o princípio de aquisição da terra era o trabalho, pois o trabalhador imprime sua personalidade naquele espaço e produz frutos pelo seu suor e esforço. Rousseau questiona o posicionamento de Locke colocando que, para que a propriedade tenha legitimidade seria necessário haver o consentimento de todos os outros homens, aprovando, dessa forma, a propriedade privada, o que de fato não ocorreu, pois a primeira cerca foi esticada por livre vontade e deliberada ambição. Rousseau identifica nesse fato a raiz de todo o caos social e lembra de que quando Hobbes escreveu em sua obra Leviatã que o homem em seu estado natural vivia em estado de guerra, esse cenário de terror se dava justamente porque a propriedade privada já havia sido instituída, colocando, assim, os homens uns contra os outros.
     Seguindo uma gradação, Rousseau escreveu que após a instituição da propriedade privada a sociedade se dividiu entre ricos e pobres, possuidores de propriedades e sem propriedades, vindo daí o surgimento do contrato social, onde os ricos que continuariam com suas propriedades asseguradas propuseram aos pobres a garantia de paz, da segurança e da justiça. Todavia, todas essas garantias só beneficiaram os ricos detentores de bens; a paz, a segurança e a justiça eram uma ferramenta dos poderosos para manutenção de suas propriedades contra qualquer reivindicação ou insurreição por parte dos pobres.
     Uma vez que a história seguiu o seu desenrolar no fluxo temporal, ficando impossível voltar-se ao estado natural, ao estado dos “bons selvagens”, Rousseau apresenta então outra solução para esse desfecho trágico da sociedade humana, propondo um novo contrato social, desta vez buscando equilibrar a balança que pendia para um lado. A proposta de Rousseau é que todas as pessoas da sociedade se entreguem de corpo e alma ao coletivismo e à comunidade, moldando dessa forma um novo soberano que é a vontade geral. Nessa linha de pensamento, nenhum homem mais buscaria seus próprios interesses, não seriam mais movidos pela ambição, pela mesquinhez ou pela avareza, mas buscariam sempre o bem da coletividade, balizados pelos ideais romancistas do amor fraternal, da liberdade e da igualdade. A essa altura, Rousseau já parece dialogar com Aristóteles, especialmente em sua metapolítica, onde descreve o homem como um “Zoon Politikon”, um homem que isolado é incapaz de alcançar a felicidade, só se realizando plenamente quando inserido na “Pólis”. Quando deixa de viver para si e se torna parte de algo maior, trazendo sentido e finalidade à sua existência, é aí que o animal político homem encontra a felicidade. Essa, aliás, é a verdadeira intenção das palavras de Aristóteles quando as disse. O estagirita nunca teve a intenção de dizer que o homem é por natureza inclinado aos debates e assuntos políticos ou ao envolvimento com causas partidárias. Como disse Eric Voegelin:
 
     “Da abundância de hieróglifos famosos, desejo recordar no momento apenas um, que goza de grande aceitação junto dos politólogos: a fórmula aristotélica do homem como um zoon politikon. Não há maneira mais dignificante para abrir um tratado sobre princípios políticos do que começar por citar Aristóteles, embora o autor esteja ‘alegremente’ inconsciente do fato de que Aristóteles queria dizer que o homem é um animal político que encontra a sua realização na Pólis e em nenhum outro tipo de comunidade política, exatamente o oposto daquilo que o escritor moderno geralmente deseja expressar.”[1]
 
     Na sociedade idealizada por Rousseau o indivíduo ao invés de ser corrompido pela sociedade é dissolvido nela, vindo a ser um cidadão, uma parte atuante e um motor ativo das transformações sociais.
     Todavia, como poderia o homem que é corrompido pela sociedade e degenerado pelo contexto em que está inserido viver na sociedade idealizada por Rousseau? O próprio filósofo se fez essa pergunta e ofereceu a resposta. Uma vez que a estrutura social é modificada ou mesmo revolucionada, a educação tem papel determinante para tornar o homem bom novamente, levando-o de volta às suas origens, à sua essência. É a educação que formará o cidadão, tornando-o livre, autêntico, fiel ao seu verdadeiro “eu” e, portanto, resistente às manipulações e aos cerceamentos. A pedagogia na filosofia de Rousseau tem a finalidade de levar o homem à sua verdadeira natureza, pautada pelos verdadeiros instintos naturais, uma ideia que, mais uma vez, muito se aproxima do “eu” ontológico de Martin Heidegger. A bondade, o amor, o carinho, a solidariedade, o altruísmo, a empatia, enfim, tudo em que há alguma virtude será despertado no homem por meio da educação, devendo-se para esse fim evitar-se o castigo e a punição, pois estes instrumentos não alcançarão, de forma alguma, os mesmos resultados que a pedagogia edificada sobre os alicerces do amor e do carinho.

 

 


[1] VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas - Vol. 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012. Pág. 174.


BIBLIOGRAFIA:

CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1952.

LOCKE, John. O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Edição bilíngüe. Campinas: Editora Unicamp. Petrópolis: Vozes, 2012.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Coleção Os Pensadores, Vol. XIV. São Paulo: Abril cultural, 1974.
 
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
 
VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas - Vol. 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012.

Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 27/12/2019
Reeditado em 12/04/2022
Código do texto: T6828374
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