O LEVIATÃ DE THOMAS HOBBES

 

 A obra clássica de Thomas Hobbes que marca a filosofia anglo-saxônica nos salta aos olhos em um primeiro contato pela originalidade e pelo pioneirismo das ideias, levando-se em consideração a época a que Hobbes foi contemporâneo, época essa marcada pelo absolutismo monárquico. O Leviatã de Hobbes (1651) nos traz as origens do Estado, na concepção moderna como o conhecemos, embora ele não use esse termo. A obra em questão foi tão marcante que garimpou seu lugar na história da filosofia e é leitura obrigatória para os que se inclinam ao liberalismo, embora Hobbes não seja um liberal, e tem lugar cativo na prateleira de qualquer amante do conhecimento que se dedique ao estudo da filosofia política e jurídica.
     Ao se deter na meditação sobre como surgem os Estados, ou o que ele chama de Leviatã, Hobbes escreveu que o homem em seu estado natural é mortalmente destrutivo, trazendo de forma inata em sua própria natureza a gana por devorar outros homens. O estado primitivo do homem para Hobbes vai à contramão da metapolítica aristotélica: Enquanto Aristóteles vê o homem como um ser político, inclinado para o convívio na Pólis, Hobbes o vê como um animal afugentado, vivendo com medo e em um constante estado de alerta, temendo por sua vida, por suas propriedades e na terrível iminência de ter uma morte repentina e violenta. É nesse ponto que Hobbes contraria tanto a filosofia tomista quanto a doutrina cristã, a qual diz que o homem traz escrita em seu coração a lei de Deus, que é o tribunal secreto da alma, ou seja, a consciência, que leva o homem a agir segundo a lei eterna, conforme Paulo escreveu:
 
     “Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os.”

Romanos 2: 14, 15

 
     Para Hobbes, a doutrina cristã não serve como parâmetro, tanto que ele não era visto com bons olhos pela igreja da época, o que ele afirma é que o estado natural do homem não traz consigo nenhum senso de justiça ou injustiça, sendo desprovido de qualquer padrão moral que não seja aquele que o leva a defender sua própria existência de quem a ameace. O homem que vive relegado à sua própria sorte vive em constante estado de guerra, experienciando uma vida isolada, pobre, áspera, rude e sem expectativas, seja quanto à sua longevidade, seja quanto a qualquer espectro de prosperidade que o futuro possa lhe trazer. É nesse cenário sombrio de insegurança geral que surgem os conflitos de interesses, exatamente quando dois homens desejam a mesma coisa e a única regra que pode decidir o vencedor é a força bruta, seja de um único homem mais forte, ou da união de muitos, ainda que mais fracos.
     É justamente na tentativa de fugir de uma vida de medo que surge o ímpeto de preservação, ímpeto que acaba por levar homens a se anteciparem às ameaças e partir para a pilhagem e para a conquista antes que delas sejam vítimas. É a tentativa de se proteger que faz do homem o lobo do próprio homem, é o medo o germe da guerra. Hobbes elucida que quando algum homem alimenta ao extremo esse ímpeto e o extrapola o que se segue é a ganância pelo poder, pelo simples prazer de conquistar e saborear a glória de ser temido. A consciência de que há outros homens ocupando espaços próximos ou até mesmo a convivência com estes tem como resultado, além do medo e da desconfiança constante, uma profunda agonia, uma angústia que consome a alma. Essa convivência doentia, segundo Hobbes, se dá pelo fato de um homem temer o outro mutuamente e não haver um terceiro que os amedronte aos dois.
     O filósofo inglês aponta três causas principais para a efetivação dessa realidade, sendo a primeira a competição, onde alguns homens, visando lograr proveitos, usam braços de ferro para subjugar outros homens e colecionar espólios de guerra. A segunda causa apontada por Hobbes é a difidência, ou desconfiança, onde, em busca de segurança, os homens erguem o estandarte da violência para se precaver de supostos ataques. A terceira causa é a glória, onde homens derramam sangue para construírem uma reputação, marcarem seus nomes na história, eternizarem-se e serem temidos por aqueles que venham a ouvir seus nomes. Enquanto não há um soberano que regre a todos e imponha a força, o cenário que se apresenta é o de guerra, de medo, de desconfiança e de violência contumaz. Não há quem julgue, tampouco quem elabore leis, não há nem mesmo o senso de justiça, nem qualquer ideia do que seja o certo a fazer, e o direito de propriedade é dissipado na inexistência, como uma fumaça que se esmaece ao vento.
     Depois de descrever a crueza desta realidade cadavérica, Hobbes apresenta o caminho por onde dela escapar, a luz no final do túnel, a solução para tão negro imbróglio, o sol que desponta no horizonte: as paixões. São essas paixões que acabam por regar no coração do homem um desejo de paz, de convívio pacífico e do gozo de uma liberdade onde possa adquirir seus bens através do suor do seu rosto. Hobbes identifica a raiz dessa esperança como sendo o medo da morte, o medo de uma vida pequena, breve e fútil. Mas não somente nas paixões se encontra a saída, mas também na razão, na esperança de que os homens podem alcançar a concórdia e estabelecer termos sinceros e mútuos de paz e não agressão, de forma que a selvageria seja deixada de lado e o diálogo norteie as relações. É quando surge o contrato social, onde, mesmo todos os homens tendo direito às mesmas coisas, eles optam por abrir mão desses direitos em prol de um pacto que garanta a paz a todos. A própria liberdade do homem deve ser limitada neste pacto para que o estado de guerra acabe e se chegue à paz. Todavia, essa ação deve ser universal, comum a todos, pois se alguns assim agirem, colocando-se sob o jugo do pacto social, e outros não, aqueles estarão se tornando indefesos e presas fáceis destes que relutam em abdicar do direito à liberdade de fazer qualquer coisa que lhes apraza. A busca pela paz em fuga do estado natural deve, então, ser uma atitude mútua, trazendo a ideia de um contrato, de um pacto, de uma aliança, onde cada parte assume direitos e deveres e repartem competências com o compromisso de exercê-las, tudo visando a um convívio pacífico.
     Uma vez estabelecido o pacto, surge a figura do soberano, a quem são entregues pelos pactuantes os direitos, as liberdades e a autoridade, entrega que se apresenta como uma expressão de submissão à essa nova autoridade que recebe agora a precatória para zelar pela paz e evitar a volta ao estado primitivo de guerra de todos contra todos. Uma vez concretizado esse pacto, com homens abrindo mão de direitos e liberdades e os conferindo a um soberano, surge o Estado, chamado por Hobbes de Leviatã. Será a essa entidade terrena que os homens organizados em sociedade deverão suas vidas, suas propriedades, suas defesas e principalmente a paz. É nos moldes hobbesianos que os Estados modernos estão edificados, paga-se impostos, abre-se mão de liberdades, cumpre-se deveres e obrigações, sujeita-se às legislações e, em troca disso, espera-se que o Estado garanta a segurança, zele pela saúde dos cidadãos e ofereça jurisdição a todos. Hobbes pode ser considerado um visionário por conceber uma ideia de Estado muito próxima do que os Estados contemporâneos são hoje, e isso muito antes de eles realmente se efetivarem. Assim, Hobbes descreveu, há tempos, quase que em um vislumbre do futuro, se não no todo, em considerável parte, muito do mundo tal como conhecemos hoje.


 
 BIBLIOGRAFIA:

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Coleção Os Pensadores, Vol. XIV. São Paulo: Abril cultural, 1974.

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.

    

Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 27/12/2019
Reeditado em 04/11/2021
Código do texto: T6828087
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