Corrupção: 15 anos que abalam o Brasil



Há quinze anos um tema entrou com força na agenda da política brasileira para não mais sair: a corrupção. Desde o berço pátrio a bibliografia registrou uma seqüência grande de escândalos, mostrando que o Brasil não foge a regra e por aqui a corrupção na política também é sistêmica, sistêmica demais.

Já em 1627 o historiador frei Vicente da Bahia sentenciou que "nenhum homem nesta terra é repúblico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular", mas não se infere daí que a corrupção esteja ligada a alguma identidade dos brasileiros, ou transmitida culturalmente a partir do patrimonialismo originário em Portugal. Isto seria resvalar para o preconceito.

A novidade é que pela primeira vez na história estamos diante de uma comoção nacional em torno do tema. O Brasil tornou-se monotemático. É como se o ilustre alienista Simão Bacamarte retornasse ao país e se deparasse com uma monomania moralista coletiva em torno dos abiscoitadores da coisa pública.

O país, doente, urge por tratamento, diria o alienista, perplexo e indignado com os descaminhos inusitados e irracionais de uma sociedade que ao engatar uma dialética negativa não cessa de descer no abismo. A barbárie não é mais apelo retórico, está colada ao real e suas possibilidades.

Sinal destes tempos judiciais, os brasileiros sabem de cor não apenas o nome de cada um dos onze magistrados do STF, mas conhecem suas posições e preveem suas sentenças. Egos inflados, suas excelentíssimas ocupam o espaço midiático como celebridades emergentes e a cada decisão da corte as redes sociais fervilham com achincalhes e indignações, muitas vezes transbordando para as ruas a exigir a cabeça de magistrados que votaram na contramão das expectativas.

Antes da revolução de 30 o ex-presidente Washington Luís proferiu a pérola do autoritarismo: "questão social é caso de polícia". Nos dias que seguem cabe muito bem a paráfrase: "questão política é caso de polícia". Nada mais correto, basta uma leitura aleatória nas mídias diárias, nas manchetes dos jornais de papel ou digitais, nos editoriais, nos twitter e face books, nos programas televisivos, todos focados nas agendas da Polícia Federal, do Ministério Público, no Judiciário e do Congresso Nacional, este último como fornecedor da matéria prima da venalidade, os sentenciados e encarcerados, os investigados e os amedrontados.

Esta é a tragédia, o drama histórico que espanta e entristece uma nação radicalmente dividida entre amigos e inimigos. Se o Brasil fosse uma colmeia dentro de uma árvore gigante e os brasileiros transmigrados para a forma abelha, o Dr. Bernard de Mandeville seria taxativo em nomear de "canalhas assumidos" um dos lados e de "canalhas dissimulados", o outro. Mas a fábula que estamos a tratar é outra, distante do egoísmo ético e sua máxima: "vícios públicos, benefícios privados".

No olho do furacão qualquer análise é temerária, ninguém sabe para onde soprarão os ventos. Minerva, a ave do conhecimento que costuma alçar voo e explicar retroativamente as astúcias da história, permanece quieta.

Provavelmente em seu voo futuro ela terá muito trabalho para decifrar a complexidade de dois fenômenos que chegam juntos: a inédita mobilização nacional pela ética na política a demandar todas as disciplinas do saber social e a emergência da sociedade-em-rede de alta interatividade ainda na infância, longe de ser metabolizada, domesticada, entendida, mas destinada, para o bem ou para o mal, a revolucionar conceitos e práticas consagradas.

Não por acaso o mal estar na política e a crise da democracia representativa que ocorre aqui e no mundo. Terá muito trabalho, a ave, também para processar sínteses em face da quantidade absurda de informações replicadas infinitamente nas redes sociais com opiniões para todos os gostos, todas as paixões, todas as razões.


O nó da questão

Muito além das palavras, as imagens pornográficas das malas de dinheiro, calaram fundo no imaginário popular e acabaram por extravasar o tanque onde os brasileiros acumulam a indignação antiga com a parelha corrupção/impunidade. Indignação com os fatos corriqueiros a revelar a inexistência de república e a face oligárquica e venal da democracia como o enriquecimento ilícito; os processos eleitorais contaminados pelo deus Mamon; os privilégios, outra modalidade de corrupção; o uso de empresas públicas como fonte de propinas para a governabilidade.

Não por acaso, quando a Lava Jato surgiu em 2014 houve uma aclamação nacional. A onerosa Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal teriam enfim saído de uma hibernação secular para cumprir o papel constitucional de investigar, julgar e prender os culpados fossem eles políticos, grandes empresários ou burocratas?

A força tarefa colocou um espelho diante do Brasil e mostrou a face horrenda da política como ela é. Mas a euforia quase consensual durou pouco. Influentes formadores de opinião motivados por diferentes interesses, logo saíram a campo para denunciar os abusos cometidos pela Força Tarefa como a ausência de imparcialidade do juiz Sérgio Moro; motivações partidárias, confirmadas pela adesão de Moro ao governo Bolsonaro; o pacto jurídico-midiático com o vazamento seletivo de informações sigilosas orientadas para o impeachment (golpe) de Dilma e o impedimento de Lula se candidatar a presidente.

Surgiram também graves denúncias envolvendo agências do governo americano por trás da Lava Jato, de olho nas reservas de petróleo e na Petrobrás. Um pouco de informação sobre guerra híbrida, mostra que as teorias de conspiração são histórias da carochinha ante a ferocidade da geopolítica atual. E, é claro, o papel da Globo neste pacto com a Lava Jato. O espetáculo da corrupção elegeu o bandido adequado, o PT, às façanhas do herói nacional.

A república de Curitiba cometeu uma "agressão judiciária à democracia" afirmou o eminente jurista italiano Luigi Ferrajoli. O juiz ao julgar Lula, ao invés de se comportar como "indiferente pesquisador da verdade" acabou protagonizando um "processo ofensivo" e se tornou inimigo do réu, sentenciou Ferrajoli.

Se a Vaza Jato teve o mérito de revelar as tiranias da intimidade processual, acabou também por ofuscar de vez a corrupção real, reduzida agora, para muitos formadores de opinião influentes, a mero epifenômeno do que seria a verdadeira corrupção, a dos operadores da justiça. Em determinados meios, principalmente sites de esquerda, é relegada à "corrupção dos tolos" ou até afirmada como boa práxis de política, pois para se atingir determinados fins, todos os meios são bem vindos.

Como bem considerou Mangabeira Unger, a corrupção não é o tema mais importante para o Brasil, e sim os projetos. Mas a julgar pelo índice de aprovação de Moro e da Lava Jato em recente pesquisa da Data Folha, ela permanece na ordem do dia. Não se pode fugir ao tema, como insistem os petistas. Há um silêncio inexplicável dos intelectuais com relação às práticas corruptas do PT no governo.

Todas as vozes que nas origens moldaram o partido com a ética na política e vociferaram alto contra a corrupção de FHC, estão caladas, ou tentam ignorar os fatos e apagar a história dos últimos 15 anos. Deveriam antes ouvir Faulkner: "o passado nunca está morto, ele nem mesmo é passado".

Após 15 anos de dispêndio de muita energia emocional, psíquica, cívica e política, gasto de recursos públicos incalculáveis, qual o destino desta epopeia nacional? Chegaremos um dia a Ítaca a exemplo de Ulisses - e nossa Ítaca é a República, objeto arisco de desejo que os brasileiros perseguem há 500 anos, sem alcançá-la - ou ficaremos para sempre no meio do caminho prisioneiros dos monstros, sem nenhuma imaginação para nos livrarmos deles? E eles já estão entre nós, diante de Beemot dança o terror.

O frustrante legado da Operação Mãos Limpas da Itália é apenas uma advertência, cada país carrega sua cruz. O fato é que mesmo legítimas e bem intencionadas, as mobilizações nacionais não são sinônimo de epifanias políticas.

O retrocesso está sempre à espreita. Lá eles chegaram a Berlusconi, cá estamos em Bolsonaro. Como aconteceu na Itália, é nítido o movimento das placas tectônicas reacomodando-se após o abalo sísmico para restaurar a soturna paisagem onde vicejam sem alardes, a corrupção, a impunidade, os privilégios.

Destinado ao buraco negro digital que acolhe a plêiade de escrevinhadores da hora, esse artigo parte da perplexidade e inconformismo do autor com o andar da carruagem.

A compreensão é criadora de sentido, a ponte através da qual ajustamos nossas ações e paixões ao real.Para Hannah Arendt, a qualidade de uma opinião depende do grau de sua imparcialidade, isto é, livre de interesses privados e imediatos, mas depende também de anteparos ao engodo e a mentira que manipulam os fatos.

Democracia é conflito e desentendimento, mas acima de tudo espaço público para explicitar e debater opiniões. Além dos pólos do maniqueísmo reinante que divide o mundo entre mocinhos e bandidos, pretende-se dialogar com ambos, em torno da pergunta chave e suas variações: a corrupção realmente existente que envolve empresários, políticos e burocratas é um fenômeno que corrói valores democráticos e inviabiliza a republica, e precisa ser combatido dentro da lei, ou não passa de nuvem de fumaça ideológica a serviço de interesses do capital, seus porta-vozes, e da geopolítica internacional?