O ESTADO DE NATUREZA COMO REFERÊNCIA CRÍTICA PARA A SOCIEDADE EM ROUSSEAU.

- I -

A teoria política de Rousseau indiscutivelmente influenciou diversos movimentos sociais, tal como foi um alicerce fundamental, por exemplo, da Revolução Francesa de 1789. Sua teoria política é perpassada por uma intensa crítica à história da civilização, além da tentativa filosófica dedicada por ele, de propor uma solução para a regeneração da sociedade e da devida compreensão desta, de seus vícios e corrupções. Para isso, Rousseau estabelece uma estratégia metodológica para analisar a origem das sociedades, através do conhecimento da natureza humana. Tanto para Rousseau quanto para outros filósofos que se dedicaram a examinar os fundamentos da sociedade, depararam-se com a necessidade de voltar-se para o estudo do estado de natureza.

Sua principal ideia do Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755), além de demonstrar a origem da desigualdade social e o progresso da corrupção humana, circula em torno também, de uma análise profunda do homem e de seu estado mais natural e puro que o espírito humano pode conceber. Rousseau examina também quais são suas qualidades naturais, para distingui-las de suas faculdades adquiridas em sociedade.

Com isso, Rousseau pretendia responder a questão proposta pela Academia de Dijon de 1753: Se a desigualdade presente é ou não legitimada pela lei natural. A partir disso, o genebrino descreve o homem em um estado primitivo anterior a qualquer tipo de civilização, como uma forma de referência crítica para a sociedade vigente, onde vivenciava no século XVIII os males, os vícios e a decadência da humanidade. O genebrino procura analisar como os acasos causaram o aperfeiçoamento da razão humana, desde o simples estado de natureza, que era guiado apenas por instintos, até o estado social, regido pela razão, onde foram desenvolvendo-se as faculdades naturais e houveram organizações mais complexas de grupos sócias. Mesmo assim, tudo isso foi ocasionando também a desigualdade social e a maldade, que não existiam no estado de natureza, e por isso, Rousseau explica como começará com sua critica e sua descrição do homem: “Tornar mau um ser ao transformá-lo em ser social e, partindo de tão longe, trazer enfim o homem e o mundo ao ponto em que o conhecemos.”

Diante de toda a miséria humana verificada no decorrer da história da humanidade, Rousseau acredita ser necessário a dedicação ao estudo do homem justamente para compreender as causas e as consequências de sua própria história, desde que sua razão fora desenvolvida. E assim ele critica o modo como a evolução dos conhecimentos na sociedade se deu em uma medida tão desproporcional ao conhecimento que ele considera ser o mais importante e o único que ninguém conhece, qual seja, o de nós mesmos, como ele descreve em suas Cartas Morais:

Olhai este universo, querida amiga, correi os olhos sobre este teatro de enganos e misérias que nos faz, ao contemplá-lo o triste destino do homem[...] Que admirem o quanto quiserem a perfeição das artes, o número e a grandeza de suas descobertas, a extensão e a sublimidade do gênero humano; deveríamos felicita-los por conhecerem toda a natureza, exceto a si mesmo, e por terem descoberto todas as artes, exceto a de serem felizes?

Ao partir do próprio homem por meio de uma abstração lógica, Rousseau pretende analisar as relações sociais: estudar a natureza humana constitui papel fundamental para compreender a nós mesmos, e consequentemente, nossa realidade política, nossas instituições, e o valor da felicidade. Ao esclarecer como se dá a ordem da natureza, que em sua essência possui verdade e inocência, Rousseau pretende demonstrar os bens primordiais do homem para assim criticar os vícios legitimados pela vida social, tal como a corrupção, e a desigualdade. Rousseau foi um severo crítico da progressividade das sociedades, à medida em que elas progridem, emergem males característicos da vida civil, tal como se dedica a descrever o progresso da corrupção humana juntamente com a evolução dos saberes, em seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, e como mostra em seu Discurso sobre a Desigualdade, o surgimento das diferenças entre rico e pobre e as classes de poder, reforçando a desigualdade em Estados cada vez mais ilegítimos.

O estado de natureza é hipotético e inexistente historicamente, sendo assim, a necessidade de estudá-lo envolve basicamente a nossa compreensão do estado atual. O genebrino julga ser aquilo que pertence a natureza em conformidade com o que é bom e verdadeiro, e aquilo que é decorrente das instituições humanas, em concordância com a corrupção moral. Como descreve em seu Segundo Discurso: “Os tempos que vou falar são muito distantes; como mudaste! É, por assim dizer, a vida da tua espécie que vou descrever de acordo com as qualidades que recebestes, e que a tua educação e teus hábitos puderam falsear, mas que não puderam destruir ; e, no Livro I, de Emílio: Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem.

A merecida atenção à questão da desigualdade social que a Academia de Dijon propôs, permite Rousseau apresentar suas principais ideias críticas de cunho político, social e ético, demonstrando o percurso do gênero humano que os levou a união, em torno de um falso pacto que prometia a paz e a liberdade dos associados, mas que na verdade contribuiu para o aumento da desigualdade e a introdução de todos os outros males conhecidos pela sociedade. Roberto Gatti comenta que, o maior mal, aquele do qual muitíssimos outros derivam, é a desigualdade política e econômica. É preciso partir daqui para compreender como e por que a sociedade atual foi tão distanciada de sua condição “natural”.

Rousseau delineia dois tipos de desigualdade existentes na espécie humana:

Uma que chamo natural ou física, por ser estabelecida na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens.

A desigualdade natural, caracterizadas pelas diferenças físicas e biológicas, não justifica que um homem seja superior ou tenha poder sobre seu semelhante. Um homem mais forte que se considera superior ao fraco apenas pela medição de forças físicas, tem seu “poder” imposto de forma ilegítima. Portanto, para Rousseau, a desigualdade natural não justifica a desigualdade política ou social. O filósofo tentará formular seu Segundo Discurso objetivando entender como a desigualdade social se estabeleceu e se configurou tolerante e legítima entre os homens.

Uma das características descritas do homem primitivo, era sua capacidade de se autoconservar, qualidade essa, que era tida como o fim básico de sua existência. É, portanto, na esfera moral do homem, que se introduz uma das mais importantes teorias da liberdade, elaborada por Rousseau, que define e diferencia a espécie humana dos outros animais: “Percebo as mesmas coisas na natureza humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade [...]” .

A desigualdade social já faz parte da vida civil, e, por isso, se faz necessário a regulamentação e formalização de ideais igualitários justamente para amenizar, ou pelo menos, recuperar a igualdade existente no estado de natureza através do pacto social: o princípio da igualdade é um direito e fim básico que deve prevalecer na sociedade . Mesmo defendendo a igualdade entre os cidadãos, Rousseau sabia que as divergências naturais, físicas e morais, é parte intrínseca dos homens civis, como Pateman afirma sobre a teoria rousseauniana: “Sua teoria não exige igualdade absoluta, como muitas vezes se afirma, mas destaca que as diferenças existentes não deveriam conduzir à desigualdade política.” A respeito da igualdade civil na teoria rousseauniana, Roberto Bueno enfatiza que esta apresenta-se como “passo necessário para a superação dos abismos de desigualdade que unem os homens em sua natural luta pela sobrevivência em sociedade ”. No entanto, a vida social enseja a evolução da desigualdade, porém é necessário transformar a relativa igualdade presente no mundo natural em um postulado convencional e jurídico, e garantir certo nível de igualdade , ou seja, a legitimação da igualdade configura-se como uma superação da desigualdade social.

-II-

Das qualidades naturais do homem primitivo que diferem-no do resto do animais, além da liberdade, daremos destaque a perfectibilidade,que para Rousseau, é a capacidade que o homem tem de desenvolver-se, adaptar-se, e qualificar-se no decorrer do tempo, além de aperfeiçoar sua razão, como o filósofo nos diz:

Sobre diferença entre o homem e o animal, haveria uma outra qualidade muito especifica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstancias, desenvolve sucessivamente todas as outras[...]

Essa faculdade, sob um ponto de vista positivo, permite a saída do homem de seu estado de natureza, e ajuda a aprimorar o modo como este se relaciona, modifica e adapta no meio ambiente e social, de forma que o seja vantajoso para sua vida, pois, se o homem permanecesse em tal estado naturalmente isolado, “que progresso poderia conhecer o gênero humano esparso nas florestas entre os animais?” Entretanto, Rousseau demonstra que o ponto negativo desta faculdade, se dá na medida em que, é ela quem permite o surgimento tanto das virtudes como dos vícios, diz Rousseau:

Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem [...] que seja ela que, fazendo com que através do séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza.

Rousseau concebe uma crítica ao filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), por ter defendido que, como a natureza humana tem como finalidade principal sua conservação, então, naturalmente o homem tenderia a fazer o mal a outrem, gerando assim um estado de guerra potencial de todos contra todos. Rousseau percebeu uma falha no pensamento de Hobbes: as paixões atribuídas ao homem no estado natural — como elucidou o filósofo inglês — o levariam a ser corrupto, mau e desconhecedor da virtude. Para Rousseau, essas paixões são obra da civilização e o homem não tende a fazer o mau naturalmente, pois, o desconhecimento das paixões no estado de natureza, impede-o de cometê-lo. Como nos explica Rousseau a respeito da teoria da natureza humana de Hobbes:

Ele diz justamente o contrário por ter incluído, inoportunamente, no desejo de conservação do homem selvagem a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram as leis necessárias [...]. De modo que não se poderia dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a tranquilidade das paixões e a ignorância do vicio que os impedem de proceder mal.

Apenas em sociedade que os indivíduos entraram em conflito devido o surgimento das paixões e dos vícios, e, portanto, seus abusos levaram a corrupção, fazendo com que Rousseau sustentasse a tese de que a desigualdade moral e política afastou por completo os homens da sua natureza e inocência, levando a humanidade a viver em constantes guerras, medo e em um estado civil totalmente decadente.

A igualdade e liberdade absoluta, própria do estado de natureza, permitia com que os indivíduos tudo pudessem ter e fazer, sem a intervenção de outrem em suas ações. Essas duas são fins essenciais da vida humana e mesmo com a transição do estado de natureza para o estado civil, os homens precisaram obter uma forma de preservar sua liberdade e igualdade. Porém, o surgimento da propriedade destruiu a igualdade natural e ocasionou a desigualdade social que não era de modo algum legitimada pela lei natural. Rousseau discursa a respeito da origem da propriedade: “O verdadeiro fundador da sociedade civil, foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer, isto é, meu, e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.”

Sendo assim, com a dependência predominante das relações dos homens entre si, no Contrato Social, Rousseau apresenta-nos uma ideia distinta: um pacto legítimo e verdadeiro, onde os membros estejam ligados sob uma vontade apenas - a volonté générale . A liberdade torna-se, então, submissa à relação indivíduo-estado, sendo o homem livre porque obedece a lei que estatui a si . É como se Rousseau oferecesse uma solução para o problema que havia encontrado em seu Segundo Discurso: da perda da liberdade absoluta dos indivíduos no estado de natureza com o advento das uniões sociais. O Contrato Social pretende oferecer uma forma de associação em que todos possam ser beneficiados e protegidos, tendo sua liberdade e igualdade preservadas, em troca de segurança e outros direitos civis. Foi a forma que os homens encontraram para estabelecer um governo adequado e legítimo por meio do ato voluntário de todos.

Aqui temos uma outra questão, como comenta Peter Gray, em síntese do pensamento rousseauniano, no prefácio da obra “A questão Jean-Jacques Rousseau”, de Ernst Cassirer: Como pode o homem civilizado recuperar os benefícios do homem natural, assim inocente e feliz, sem retornar ao estado de natureza, sem renunciar as vantagens do estado social? A problemática levantada por Rousseau permanece tão atual e não está completamente “respondida”, uma vez que não apenas sua concepção contratualista, mas também a de outros teóricos políticos, inspiraram a fundamentação da estrutura dos grandes Estados democráticos, demonstrando a possibilidade que a civilização traz consigo tanto de uma vivência harmoniosa, tranquila, justa, como também os riscos eminentes e necessários que a sociedade convencional, mais precisamente a democrática, carrega.

Para isso, a necessidade de voltar-se para o estado de natureza, se prova como necessária na medida em que ela nos permite fazer uma referência crítica à sociedade civil, analisando as qualidades naturais do homem, e mostrando como essas, tais como a liberdade e a igualdade, não podem estar subjugadas na sociedade.

O centro do argumento de Rousseau, a respeito da origem da desigualdade, se fundamenta em seu aspecto não natural e resulta de uma construção cultural humana. Os males são frutos não naturais resultados do abuso que fazemos de nossa razão e nossas paixões, por isso Rousseau nos diz: “A maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza” . Mesmo com tais elogios ao modo de vida natural humano, as interpretações que houveram de que Rousseau estaria defendendo uma volta ao estado selvagem, são vagas se analisarmos o conjunto da obra rousseauniana, e até mesmo seu Segundo Discurso onde ele afirma que, se o gênero humano continuasse em tal estado, ele pereceria. Aqui, mostramos a necessidade que há em estudar o estado de natureza, justamente para conhecermos quais são nossas qualidades naturais, e podermos então, estabelecer como princípio fundamental da sociedade, a permanência desses “direitos” naturais, além de contemplar a crítica rousseauniana às instituições sociais corrompidas, mostrando serem elas, totalmente contra a natureza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CASSIRER, Ernest. A questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

GATTI, Roberto. Rousseau. Tradução de Alessandra Siedschlag. 1ª. ed. São Paulo: Ideias & Letras, 2015.

ROUSSEAU, J-J. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. Organização e apresentação de José Oscar de Almeida Marques... [et al.]. São Paulo: Estação Liberdade: 2005.

ROUSSEAU, J-J. Do Contrato Social; Ensaio sobre a origem das Línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes - Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Lourdes Santos Machado; introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Machado Gomes. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

ROUSSEAU, J-J. Emílio ou Da Educação. Tradução de Laurent de Saes. São Paulo: Edipro, 2017.

PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.

Lays Alvarez
Enviado por Lays Alvarez em 13/08/2019
Reeditado em 13/08/2019
Código do texto: T6719518
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