GÓRGIAS OU DA RETÓRICA (tradução dos trechos essenciais)

Tradução de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”.

Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei que devia tentar esclarecer alguns pontos polêmicos ou obscuros demais quando se tratar de leitor não-familiarizado com a obra platônica. Quando a nota for de Azcárate, haverá um (*) antecedendo as aspas.

“SÓCRATES – Preferirias, Górgias, continuar, ora interrogando, ora respondendo, desta mesma forma de agora há pouco, e deixar proutra ocasião os discursos longos, tais como o que Pólux havia principiado? Rogo-te que mantenhas tua promessa e limites-te a responder cada questão com concisão.

GÓRGIAS – Sócrates, respostas há que exigem alguma extensão. Atendendo a tua solicitação, contudo, procurarei lançar mão das respostas mais lacônicas possíveis. Afinal, uma das coisas de que me jacto é que ninguém há que consiga ser mais sucinto do que eu.”

“GÓRGIAS – Vou tentar desenvolver, Sócrates, toda a virtude da Retórica, iniciado que fui por tuas palavras. Mas não deves ignorar que os arsenais dos atenienses, bem como suas muralhas e seus portos, foram construídos seguindo, em parte, os conselhos de Temístocles, em parte, os de Péricles, e não os dos operários.

SÓCRATES – Conheço, Górgias, esta reputação de Temístocles. Quanto a Péricles, não só de boca, pois escutei-o pessoalmente exortando os atenienses a erguer as muralhas que hoje separam Atenas do Pireu.”

“Visitei muitos doentes, em companhia de meu irmão e outros médicos, que se recusavam a tomar as beberagens ou a submeter-se aos tratamentos dolorosos que requerem o fogo e o ferro; o médico nada podia quanto a esses teimosos pacientes, ocasião em que eu intervinha. Com a ajuda da Retórica, conseguia que anuíssem.”

“se tens a mesma disposição de caráter que a minha, interrogar-te-ei com satisfação, Górgias. Porém, em caso contrário, pararei por aqui. Perguntas então: qual meu caráter? Sou daqueles que gostam de ser refutados, se acaso não incorrem pela verdade.”

“Afirmas, pois, que te consideras apto a instruir e formar um homem na arte oratória, se ele desejar ser teu aluno?”

“E, se estou certo, acrescentaste, ainda, que quanto à saúde do corpo, o orador é mais confiável que o médico?”

“Quando dizes <multidão>, certamente queres dizer os ignorantes; uma vez que seria inconcebível que o orador levasse vantagem sobre o médico diante de uma platéia instruída!”

“Esta superioridade do orador e da Retórica não seria análoga, comparada às demais artes? Em suma, fica claro que a Retórica prescinde da necessidade de instruir quanto à natureza de cada assunto; basta, na verdade, ser persuasiva, não importa o meio, contanto que pareça, aos olhos dos ignaros, mais sábia que qualquer outro ofício.”

“Avaliemos se o aprendiz da Retórica necessita saber e se tornar hábil em tudo isso antes de principiar suas lições; ou, desconhecendo o tema, tu, que és mestre de Retórica, poderá por ti só ensinar-lhe? Acontece que tu tampouco és versado no tema. Mas prometes, asseguras mesmo, ensinar-lhe de maneira tal que, tu mesmo sendo um não-especialista, teu aluno passará perfeitamente por um legítimo especialista.¹”

¹ A expressão original era “hombre de bien”. Em que pese logo ser impossível prescindir das noções de bem e bom neste (e noutros) diálogo(s) platônico(s), como veremos adiante, julguei impraticável, neste trecho, a tradução “homem de bem”, até pelas conotações pejorativas que o termo ganhou no Brasil recente. Seria a maior banalização jamais vista do pai-dos-filósofos!

“GÓRGIAS – Penso, Sócrates, que ainda quando tal discípulo não saiba nada de tudo isso, aprendê-lo-ia a meu lado.

SÓCRATES – Basta, Górgias, suplico-te! Interrompe um pouco teu belo discurso! Tu falas demasiado bem, com efeito! Mas fazer de outro um bom falador requer que se conheça o que é justo ou injusto, seja tendo aprendido tal distinção noutra escola ou seja de tua própria boca.”

“Pensas, acaso, que haja alguém no mundo que confesse não possuir qualquer conhecimento da justiça, e que não se ache, a despeito de sua ignorância, em posição de ensiná-la aos demais?”

“SÓCRATES – Seria portar-se muito mal para contigo, meu caro, se, tendo tu vindo a Atenas, ponto da Grécia onde se gabam da maior liberdade de expressão, fôras, então, o único interdito de pronunciar teus discursos. Mas põe-te também em meu lugar! Se discorres amplamente e te recusas a responder com precisão àquilo que se te propõe, não terei eu motivo de queixa, isso, claro, se não me fosse permitido, ao invés disso, simplesmente ir-me embora, deixando-o falar só?”

“SÓCRATES – Me parece, Górgias, que em certos ofícios nenhuma receita pode ajudar, mas tão-somente um tato, uma audácia e uma grande disposição natural a diálogos, inerentes à alma. Chamo um destes ofícios de adulação; e dentro desse gênero me parece haver múltiplos subgêneros, dentre os quais o da cozinha. Diz-se que se trata de uma arte, a arte culinária; eu, de minha parte, não lhe concedo este benefício. Antes, trata-se de costume ou rotina.”

“A Retórica é, em minha opinião, o arremedo de uma parte da Política.”

“Muitos possuem uma boa constituição corporal, mas é difícil perceber quem não possui uma, não sendo um médico ou um professor de ginástica.”

“Digo, então, que há no corpo e na alma um não-sei-quê que faz com que se julgue que ambos vão bem, até quando de fato não o vão.”

“a ginástica está para a medicina como a legislatura está para os tribunais, porque cada par se exerce sobre um mesmo objeto, correto?”

“A adulação não se ocupa do bem, e fitando apenas o prazer envolve em sua teia os insensatos, ludibriando-os; não à toa consideram-na de grande valor. A cozinha, ou arte culinária, se orna do véu da medicina, que é capaz de discernir quais os alimentos mais saudáveis para o corpo. Mas se um belo dia um médico e um cozinheiro se pusessem a disputar diante de crianças e de homens tão néscios quanto crianças, a fim de se decidir qual dos dois conhece melhor as qualidades boas e ruins dos alimentos, creia-me, Górgias, nesse dia os médicos morreriam de fome!”

“como está a cozinha em relação à medicina, assim também está a Retórica em relação à arte jurídica. (...) os sofistas e os oradores se confundem com os legisladores e os juízes, e se consagram aos mesmos objetos; donde deriva que nem eles mesmos sabem com exatidão qual profissão exercem, nem os demais sabem para que são bons tais homens.”

“PÓLUX – Como é? Estás dizendo que a Retórica é o mesmo que a adulação?

SÓCRATES – Só disse que era uma parte dela. Ah, Pólux! Na tua idade e já ruim da memória? Que dirá quando fores um idoso!

PÓLUX – A ti te parece que nas cidades se enxerga os oradores de reputação como vis aduladores?

SÓCRATES – Perguntas-me a sério ou apenas inicias mais um discurso?”

“Para ti os homens aspiram às próprias ações de sempre, ou querem algo que resulta dessas ações? P.ex., quem toma algo prescrito por um médico, quer, segundo tu, tragar a bebida e sentir dor? Ou quereria a saúde, o fim de um meio, que é a bebida?”

“SÓCRATES – O maior dos males é cometer injustiças.

PÓLUX – É este o mal maior? Sofrer uma injustiça não seria muito pior?

SÓCRATES – De forma alguma.

PÓLUX – Preferirias ser vítima de uma injustiça que cometê-la?

SÓCRATES – Eu não preferiria nem um nem outro. Mas se fosse absolutamente necessário cometer uma injustiça ou sofrê-la, ficaria com o segundo ato.

PÓLUX – Tu não aceitarias ser um tirano?

SÓCRATES – Não, se por tirano tomas o mesmo que eu.

PÓLUX – Entendo que um tirano é aquele que tem o poder de fazer numa cidade tudo o que julgue oportuno: matar, desterrar, numa só palavra, agir sempre conforme seu desejo.

SÓCRATES – Meu querido amigo, escuta bem agora. Se quando a praça pública está apinhada de gente, e tendo eu um punhal às escondidas na manga te dissesse: encontro-me revestido neste momento, Pólux, de um poder maravilhoso e idêntico ao de um tirano; de todos esses homens que tu vês, aquele que eu quiser que morra, morrerá; se me parece que devo fender o crânio de alguém, já está feito! se quero despedaçar suas roupas, estão despedaçadas! ah, tão grande é o poder que tenho nesta cidade! Se te recusaras a crer-me, e te mostrasse meu punhal, talvez dissesses: Sócrates, qualquer um em teu caso seria dono de um grande poder. Também afirmo que poderias queimar a casa de quem te viesse à cabeça; pôr fogo ao arsenal dos atenienses, em todos os navios e barcos pertencentes ao público e ao privado. Mas o supremo, no poder, não consiste no fazer o que se considera oportuno. Concordas comigo?”

“PÓLUX – P.ex., Arquelau, filho de Pérdicas, rei da Macedônia.

SÓCRATES – Nem sei como ele é, mas sim, já ouvi falar dele.

PÓLUX – Mas que te parece, é ditoso ou desgraçado?

SÓCRATES – Nada sei sobre isso, Pólux; nunca conversei com ele.”

“Muito me admira ver que tentas refutar-me usando da Retórica, como os advogados nos julgamentos. Ali, um advogado crê ter refutado seu colega, quando apresenta o número suficiente de testemunhas; ou seja, quando tem mais depoimentos a favor de sua tese que contra ela. Mas esta espécie de refutação não concerne à busca pela verdade; porque algumas vezes um acusado é condenado injustamente, graças a depoimentos consideráveis.”

“O homem injusto e criminoso é desgraçado de todos os pontos de vista; e ainda o é mais, caso não sofra nenhum castigo e seus crimes permaneçam impunes; mas é-o menos, se recebe dos homens e dos deuses a justa retribuição por seus crimes.”

“PÓLUX – Não consigo crer no que afirmas! Um homem que, surpreendido em seu intento de chegar a ser tirano, submetido à tortura, decepado, com sua vista queimada, padecendo um sofrimento para o qual não há medida, repetido diariamente, dividido em infinitas partes, submetido à dor pelos mais incríveis métodos; e que ainda por cima tem de ver sua mulher e filhos padecendo de forma semelhante; e que então morre crucificado, ou empapado em resina; ou é queimado vivo; dizes, Sócrates, que um tal homem será mais afortunado que se, escapando a esses suplícios indizíveis, se fizesse tirano absoluto, fosse durante toda sua vida o dono da cidade, praticando todo tipo de ação, despertando a inveja dos concidadãos e estrangeiros, sendo tomado, enfim, como o mais feliz dos mortais? E crês que é possível refutar semelhantes absurdos?”

“Qual é a graça, Pólux? Veja um belo método de refutação: rir na cara de um homem sem alegar nada!”

“Eu não saberia apresentar mais que um argumento em favor do que digo; e esse argumento não muda, não importa se falo a um sábio ou com a multidão.”

“Imagino que não consideras o belo e o bom, o mau e o feio, como a mesma coisa, não é exato?”

“Com efeito, a felicidade não consiste em se ver curado do mal, mas em nunca tê-lo padecido.”

“Cometer a injustiça não passa do segundo mal quando o critério é a magnitude; mas cometê-la e não ser castigado, isso sim ocupa o primeiro lugar no ranking dos males.”

“Consideravas Arquelau um modelo de felicidade, isso porque depois de acusado dos maiores crimes não fôra castigado; já eu sustentava, pelo contrário, que Arquelau, ou um outro qualquer que porventura não se veja castigado após o cometimento de injustiças, devem ser tidos como infinitamente mais desgraçados que qualquer um; que o autor de uma injustiça é sempre mais desgraçado que quem a padece; e o homem mau que se mantém impune, mais que o homem castigado.”

“A Retórica, caro Pólux, não nos serve para nos defendermos no caso de uma injustiça, como tampouco serviria para nossos pais, amigos, filhos ou nossa pátria; eu não vejo como ela pode ser útil senão para acusar-se a si mesmo acima de tudo; e logo depois aos parentes e amigos.”

“SÓCRATES – Uma vez que o objetivo seja causar mal a outrem, inimigo ou quem quer que seja, observar-se-á uma conduta diametralmente oposta. É preciso prevenir-se contra as investidas inimigas. Mas se o tirano comete uma injustiça contra um terceiro, é preciso não medir esforços em palavras e ações para livrá-lo do castigo, e impedir que compareça perante os juízes; e, no caso de que compareça, que se faça o possível para absolvê-lo da pena; de maneira que, tendo roubado uma quantidade apreciável de dinheiro, não precise devolvê-la, retendo-a para gastar de forma ímpia e injusta, para si mesmo e para seus amigos; e se um crime merece a morte, que ele não a sofra; e se assim fosse possível, que ele jamais morresse, e que subsistisse mais e mais malvado, eternamente; e não apenas: mas que vivesse no crime pelo máximo de tempo que lhe coubesse. Ei-lo, Pólux, o útil que enxergo na tua Retórica! Porque para aquele que não deseja cometer injustiças, não vejo ocasião de empregá-la. Já vimos por tempo bastante que a Retórica não é boa para nada!

CÁLICLES – Querefonte, sabes me dizer se Sócrates acredita no que diz ou é apenas um bufo?”

“SÓCRATES – (...) Alcibíades, filho de Clínias, discursa como quer quando quer; mas a filosofia discursa sempre da mesma maneira. (...) Preferiria muito mais uma lira mal-feita e desarranjada; um coro desafinado; e um séquito de homens que, cada um, pensasse diferente de mim mesmo; preferiria tudo isso antes de entrar em desacordo comigo mesmo e ver-me obrigado a contradizer-me.”

CÁLICLES – Me parece, Sócrates, que sais triunfante de teus discursos, tal qual um declamador popular. Toda tua declamação funda-se no fato de que com Pólux sucedeu o mesmo que, dizia ele, deu-se a Górgias, quando discursavam contigo. Ele me relatou que, quando perguntaste a Górgias, supondo-se que alguém fosse seu aluno em Retórica sem ter qualquer conhecimento da justiça, se ensinar-lhe-ia o que era a justiça. Górgias, não se atrevendo a confessar a verdade, respondeu-te que lhe ensinaria, mas por pura etiqueta, pois não é de uso entre as gentes responder negativamente a esse tipo de pergunta capciosa. E como essa resposta deixou Górgias na situação de contradizer-se a si mesmo, tu muito te comprouveste. Numa palavra, a queixa de Pólux me parece assaz justa. Mas eis que Pólux se encontra enredado na mesma armadilha. Confesso-te que Pólux me decepcionou ao dar brechas, fazendo-te a concessão de que é mais feio cometer uma injustiça que sofrê-la. Ao dar-te esta resposta, comprometeu-se na disputa, e agora calaste-lhe a boca, porque não pode mais falar o que opina sem se demonstrar contraditório e vulnerável a teus ataques.

Sob o pretexto da busca da verdade, Sócrates, tu mesmo o afirmas, enreda teus interlocutores como faria um bom declamador, que não se interessa pela verdade, mas unicamente pelo belo; não o belo segundo a natureza, mas o belo segundo a lei. (...) Se alguém fala do que pertence à lei, tu o interrogas visando à natureza; e se fala do que pertence à natureza, tu o interrogas visando à lei. (...) Segundo a natureza, todo aquele que é mais mau é igualmente mais feio. Deste ponto de vista, sofrer uma injustiça é mais feio do que praticá-la; mas, à ótica da lei, é mais feio praticá-la. (...)

Quanto às leis, Sócrates, como estas são obra dos mais débeis e do maior número, a meu ver, não pensaram senão em si mesmos no momento de formulá-las. (...) é injusto e feio, no tocante à lei, hipostasiar-se como superior aos demais, o que se passou a denominar injustiça. (...) Com que direito fez Xerxes a guerra contra a Grécia, bem como seu pai contra os citas? (...) se aparecesse um homem, dotado de grandes qualidades, que, sacudindo e rompendo todas estas travas, encontrasse o meio de delas se desembaraçar; que, deitando por terra vossos escritos, vossas fascinações, vossos encantamentos e vossas leis, contrários sem dúvida à natureza; que aspirasse a se elevar acima de todos, convertendo-se de vosso escravo em vosso senhor; brilharia assim a justiça, conforme à natureza. Píndaro, me parece, é da minha opinião quando recita que <a lei é a rainha dos mortais e dos imortais>. (...) Hércules levou os bois de Gerião, sem havê-los comprado, e sem o consentimento de ninguém, dando a entender que esta ação era justa de acordo com a natureza, e que os bois e todos os demais bens dos débeis e dos pequenos pertencem de direito ao mais forte e ao melhor. A verdade é tal como eu a digo; tu mesmo o reconhecerás, caso, deixando à parte a filosofia, te apliques a assuntos mais augustos. Confesso, Sócrates, que a filosofia é uma coisa que tem lá seu encanto quando se a estuda com moderação, em nossa juventude; mas, se explorada por tempo demais, é o látego de todo homem. Por mais talento que um indivíduo tenha, se continua filosofando até uma idade avançada, parece que o tempo todo as coisas antigas se tornam novas para ele, que a dúvida de se ele é ou não um homem de bem ou <do mundo> continua a acossá-lo sem remorso. Os filósofos são completamente leigos em legislação da polis; ignoram completamente como se portar em público, seja nas relações que concernem ao Estado, seja nas relações interpessoais; são neófitos nas questões dos prazeres e paixões humanos, enfim, são inexperientes na vida. Quando encomendas algum negócio a um filósofo, de natureza doméstica ou civil, não deixam nunca de cair no ridículo, exatamente como os políticos, quando se os observa de alguma distância, porque tudo para estas duas classes são controvérsias e disputas ensimesmadas! Nada mais certo que este ditado de Eurípides: <Cada um se aplica com gosto naquilo em que descobriu ter mais aptidão; é a isso que consagra a maior parte do seu dia, a fim de fazer-se superior a si mesmo.> Pois pelo contrário – embora ele esteja certo –, vejo da seguinte forma, um enunciado oculto: distancia-se um homem de todo negócio em que suas ações produzem um mau resultado, passando a tratá-los com desprezo; mas, por amor-próprio, exalta justamente sua especialidade, de modo que, no fim, se exalta a si mesmo. Diante deste cenário, Sócrates, creio que o melhor seja ter algum conhecimento tanto dumas quanto doutras coisas, as práticas e as espirituais. É bom ter algumas tinturas de filósofo, pois a filosofia cultiva e refina o caráter, e nunca é vergonhoso ser um jovem filósofo. Mas quando se entra na idade da decadência, nos anos do amadurecimento, prosseguir filosofando seria patético, Sócrates. Considero-os, os filósofos de meia-idade ou idosos, uns tontos, tartamudos, resmungões, traquinas, teimosos. Crianças grandes! (...)

Como disse, pois, por mais talento que possua, um homem desses não pode evitar de se degradar ao fugir contìnuamente da praça pública, onde os homens adquirem, segundo o Poeta [Homero], celebridade”

“Tu deprecias, Sócrates, aquela que deveria ser tua principal ocupação e, fazendo o papel duma criança, rebaixas uma alma de tanto valor como a tua. Tu não poderias dar a palavra final acerca da justiça, nem penetrar a probabilidade e a plausibilidade dos negócios públicos, como tampouco instruir os demais com conselhos edificantes. (...) Se neste instante te deitassem a mão, ou aos que seguem tua conduta, te conduzindo à prisão, alegando que causaste dano à pólis, ainda que falsamente, sabes bem o quão embaraçado te verias. Apesar de teu valor, faltar-te-iam as idéias, e palavras não sairiam de tua boca. Se te apresentasses diante dos juízes, não importa quão vil e depreciável teu acusador, serias inevitavelmente condenado à morte, se para isso o adversário não medisse esforços. Que estima poderia ter a filosofia, Sócrates, quando reduz à nulidade os que a ela se dedicam com suas melhores qualidades, arte esta que os desguarnece de socorro, deixando os próprios filósofos indefesos? Se alguém não se pode salvar, quem dirá salvaria a outrem! Um filósofo está completamente exposto ao inimigo, sem ter como proteger seus bens, condenado a uma existência sem honra em sua própria pátria. É penoso dizê-lo, mas a um homem em tuas condições pode-se acossar impunemente. O que disse deve bastar, meu caro, para que abandones teus argumentos – cultiva outros assuntos no lugar! Exercita-te no que poderá conceder-te a reputação de homem hábil! Abandona estas sutilezas, consideradas por terceiros meras extravagâncias e puerilidades, conducentes à miséria! Propõe-te novos modelos, não esses que disputam sobre frivolidades, mas aqueles que possuem bens, crédito na praça e que gozam de todas as vantagens da vida.”

“SÓCRATES – Tenho certeza de que se tu assentes comigo nas opiniões que tenho vincadas na alma, estas opiniões são, então, verdadeiras! (...) Quanto a estes dois estrangeiros, Górgias e Pólux, ambos são hábeis, e ambos amigáveis; falta-lhes, entretanto, firmeza para discursar; são mais circunspectos do que convém. Como não o seriam, se, por uma reserva indevida, encontram-se a tal ponto atados que, na presença de tantos outros, acabam por contradizer-se mùtuamente, mesmo nos assuntos mais importantes? (...) sois quatro os que estudaram filosofia juntos: tu, Tisandro de Afidne, Andrão (Ândron), filho de Androtião (Androtion) e Nausícides (Nausicides) de Colargo. Ouvi-os um dia em que debatiam até que ponto era conveniente cultivar a sabedoria, e tenho para mim que a opinião que prevaleceu foi que nenhum de vós devia chegar a se tornar filósofo consumado; e que uns vigiariam aos outros, a fim de que nenhum perdesse a medida e se tornasse <filósofo demais>; precaução muito apropriada, já que vosso fito era não acabar por vos prejudicardes involuntariamente.”

“Se o gênero de vida que levo é repreensível em certos conceitos, tem tu certeza, ó Cálicles, que isso ocorre independente de mim. Isso se deve a minha ignorância inata. Não te acanhaste em dar-me bons conselhos; e percebi que começaste muito bem. Só me explica a fundo qual é a profissão que devo abraçar, e qual é a conduta de quem a exerce”

“é possível ser a um só tempo o melhor e o menor e mais débil; o mais poderoso e o mais mau?¹ Ou bem ser o melhor e o mais poderoso seriam uma e a mesma coisa, inconciliável com ser o menor e o mais mau?”

¹ A expressão “pior” seria a mais correta gramaticalmente; no entanto, quis recalcar o aspecto da filosofia platônica ligado ao cultivo da arete, isto é, a perpétua busca do Bem: o melhor (superlativo de bom, aquele que visa ao bem, substantivo) se encontra em oposição ao pior, é certo; mas num sentido moderno poderíamos crer que “pior” se referisse à pura incompetência do sujeito, e não à distância de sua conduta moral no que respeita a si mesmo (trata-se do político mau ou tirano, neste caso – aquele que visa ao mal, substantivo), isto é, quando alguém acaba por agir de uma forma muito inferior ao que realmente poderia atingir (seu eu-ideal). Ora, de um ponto de vista moderno (ou retórico grego), ser tirano (ser o mais poderoso e o pior) é ser competente no que faz; ao passo que a Ciência Política se preocupa em evitar a aparição de figuras tirânicas, a noção vulgar que se tem é a de que a melhor condição da vida seria poder ser um tirano irrefreável e terrível, sagaz, maquiavélico, impune, astuto como uma raposa. Em outras palavras, aquele que não concorda com Sócrates não sentiria vergonha ou remorso ao vestir o anel de Giges e ser como os parlamentares da democracia moderna que tanto critica. Sócrates (re)unifica a Política e a Ética, eliminando essa nossa contradição tão banal, aporia insolúvel do nosso Estado e do nosso tempo. Já segundo o homem das ruas (hoje em dia ou na Grécia Antiga, tanto faz), o “pior político” é aquele que tenta roubar e cometer crimes, mas é pego e punido; não quem consegue sê-lo, permanecendo imaculado ou, ao menos, livrando-se das penas previstas (este é o <melhor canalha>).

“CÁLICLES – Declaro terminantemente que estas três palavras (mais poderoso, melhor e mais forte) expressam a mesma idéia.

SÓCRATES – Segundo a natureza, a multidão não é mais poderosa que um só? Essa mesma multidão que, conforme dizias anteriormente, elabora as leis contra o indivíduo?

CÁLICLES – Sem objeções.”

“Este homem jamais cessará de dizer extravagâncias! Sócrates, responda-me: não te é constrangedor, na tua idade, andar à caça de palavras, crendo, assim, que triunfas nas disputas, distorcendo o sentido das expressões?”

“Provavelmente não crês que 2 sejam melhores que 1, nem teus escravos melhores que tu, por serem mais fortes.”

“CÁLICLES – Gatuno!

SÓCRATES – Não, Cálicles, não é verdade! Por Zeto,¹ que utilizaste para me ridicularizar ainda há pouco! Mas não percamos tempo com acusações: diga, quem consideras teus melhores?”

¹ Monarca tebano mitológico.

“SÓCRATES – Desta maneira, muitas vezes um sábio é melhor, em teu juízo, que 10 mil homens médios; ele é quem deve mandar, e cabe aos demais obedecer. Todo chefe sabe mais que seus súditos. Eis aqui o que queres dizer, segundo interpreto, ao menos enquanto 10 mil for um número maior que um e minha audição não estiver comprometida. Em todo caso, confirmarás se distorço tuas palavras...

CÁLICLES – É isso mesmo o que eu digo, Sócrates, e a natureza me corrobora: o melhor e mais sábio deve sem sombra de dúvidas comandar; igualmente, deve possuir mais que os sem-mérito.”

“SÓCRATES – (...) [segundo teu raciocínio] o sapateiro deve andar pelas ruas com mais sapatos, e sapatos melhores, que qualquer outro.

CÁLICLES - Sapatos?! Lá vens de chacota de novo!

SÓCRATES – (...) o lavrador entendido, sábio e hábil no cultivo das terras deve ter mais sementes e semear em seus campos muito mais que os demais.

CÁLICLES – Estás sempre a repetir os mesmos silogismos e comparações disparatadas!

SÓCRATES – Contanto que o disparate nos esclareça acerca das coisas e dos homens, Cálicles, tomo-o como elogio.

CÁLICLES – Ah, Sócrates, pelo Olimpo! Não páras de aduzir a sapateiros, a alfaiates, a cozinheiros, a médicos, como se a discussão não se apartasse por completo destes ofícios!”

“Tu zombas de mim porque estou sempre a dizer o mesmo, como cantilenas adivinháveis; dizes até que isto é um crime! E eu tenho motivos para queixar-me de ti por não usares nunca as mesmas palavras ainda que discorras sobre os mesmos objetos repetidas vezes – p.ex., por <melhores> e <mais poderosos> entendes ora os mais fortes ora os mais sábios. E não pára por aí! Acabaste de nos brindar com uma terceira definição: eis que, no momento, os mais poderosos e os melhores são, para ti, os mais valentes!”

“SÓCRATES – (...) Não seria necessário exercer esse império sobre si mesmo, além de sobre os demais?”

CÁLICLES – O que entendes por <mandar em si mesmo>?

SÓCRATES – Nada inconcebível, mas apenas a definição vulgar: ser moderado, dono de si, refrear suas paixões e desejos.

CÁLICLES – Ah, me encantas deveras, Sócrates! Os moderados são justamente os imbecis!

SÓCRATES - Como? Não há quem não compreenda que não é nesse sentido que o digo.

CÁLICLES – Mas é nesse sentido, Sócrates. Não existe felicidade na submissão. Nem quando a submissão se encontra dentro de si. Mas vou dizer-te, com toda liberalidade, no que consiste o belo e o justo naturais. Para ser feliz não há outra forma senão deixando expandir-se o quanto quiserem nossas paixões – nada de moderação! (...) Alguns dizem que a intemperança é uma coisa feia; lhes parece ser um obstáculo a mais na vida dos que nasceram mais propensos a ela em relação aos mais contidos de berço. Mas é a frustração destes imodestos quando fracassam em regular suas paixões que enseja que, como subterfúgio, elogiem a temperança e a justa medida -- isso não passa de covardia! (...) Como essa pretensa beleza da <justeza e moderação dos homens> não haveria de desgraçar a vida do intemperante (e todos os reis são intemperantes!), sendo que ela o privaria de distribuir mais a seus amigos que a seus inimigos, contrariando seu título de soberano?

“Este homem dizia, querido Cálicles, contrariando tua opinião, que, de todos os que estão nos ínferos, os mais desafortunados são estes campeões da avidez e incontinência, eternos sedentos, que de um tonel furado tentam retirar, com uma taça igualmente furada, a água com que desejam aplacar sua sede. (...) [E por que é que repetem sem cessar esse suplício agoniante? Porque] a desconfiança e o esquecimento não lhes permite reter nada.”

“a doçura da vida se encontra no êxtase e no transbordamento, Sócrates.”

“Então diga-me: quem tem sarna e comichão, coça-se e arranha-se a ponto de abrir chagas (pois a coceira não cessa), vive feliz?”

“SÓCRATES – (...) Cálicles da Acarnânia sustenta que o agradável e o bom são uma mesma coisa, e que a ciência e o valor são diferentes, não só entre si, como também em relação ao bom. Sócrates de Alópece convém ou não com isto? Não convém.”

“Não acabam ao mesmo tempo a sede e o prazer de beber?”

“CÁLICLES – Sócrates é sempre o mesmo, Górgias. Lança mão de perguntas ligeiras, sem significância, para no fim refutar-vos.

GÓRGIAS – Mas por que te deixas levar àsperamente, Cálicles? Tu mesmo concordaste, no início, com que Sócrates argumentasse a sua maneira.”

“Segue daí, meu caro amigo, que o bom e o agradável, o mau e o doloroso, não são a mesma coisa, posto que ambos saem de cena ao mesmo tempo, o que prova sua diferença.”

“na hora em que se faz a primeira concessão a Sócrates, leviana que seja, à guisa de recreio, ele se apodera dessa brecha com a mesma animação obcecada da criança.”

“Ah! Ah! Cálicles, és astutíssimo! Tratas-me como criança, dizendo-me que as coisas são dessa e dessa maneira, ou então daquela e daquela, conforme o contexto; enganas-me como enganas um pequeno. Não cria, na minha ingenuidade, antes de nossa conversação, que eras mal-intencionado dessa forma! Para mim, Cálicles, tu não eras mais que um amigo! Admito meu erro. Resignar-me-ei, citando o velho provérbio, com as coisas como elas são. E elas são como tu mas representa. Dizes, então, retomando o raciocínio, segundo o que eu entendi, que uns prazeres são bons, e outros maus, é verdade?”

“Crês que Cinésias, filho de Meles, deseja que seus cantos sirvam para melhorar os homens que o escutam, aspirando a mais do que simplesmente agradar à multidão de espectadores?” “E a tragédia, este poema imponente e admirável, a que conduz? Todos os seus esforços, todos os seus cuidados, não estão dirigidos unicamente ao agrado do público?”

“SÓCRATES – A poesia, doravante, é uma espécie de declamação popular.

CÁLICLES – Justo.

SÓCRATES – Uma declamação popular é uma Retórica; afinal, não te parece que os poetas desempenham no teatro o mesmo papel que os oradores?

CÁLICLES – Concedo-o.

SÓCRATES – Encontramos, finalmente, uma Retórica para o povo, i.e., para as crianças, as mulheres, os homens livres e também os escravos, reunidos todos. Ninguém parece prestar muita atenção a esta Retórica, afinal, como todas as outras, ela é mera adulação.

CÁLICLES – Correto.

SÓCRATES – (...) A ti te parece que os oradores visam a produzir o maior bem e despertar a virtude nos cidadãos, através de seus discursos? Ou será que, buscando agradá-los, bajulá-los, desprezam o interesse público mais alto, priorizando os interesses particulares, falando como que para crianças, para que seja mais certo que acabem por se sentir agradados? Estaria fora de questão qualquer aspiração a longo prazo, sobre se o que falam irá torná-los melhores ou piores dali em diante!

CÁLICLES – Aqui tens de fazer uma distinção. Alguns oradores visam ao interesse público; outros são esses de que tu falaste.

SÓCRATES – Bom, não faço objeções a tua distinção, Cálicles. Se há duas, e somente duas, maneiras de disputar com palavras, uma delas é a adulação, prática vergonhosa; e a outra, o debate honesto, virtuoso, visando ao melhoramento das almas dos concidadãos. Esta segunda maneira de disputar não se importa com desagradar ou não seus ouvintes, contanto que atenda seu objetivo principal. Mas me atrevo a dizer que nunca viste uma Retórica assim. Se puderas nomear algum orador desta segunda classe, fá-lo-ias, decerto?

CÁLICLES – Por Zeus, Sócrates! Ninguém entre os atuais oradores.

SÓCRATES – Nem dentre os antigos, nem um só, de quem se diga que fez dos atenienses pessoas melhores desde que começou a discursar a eles?! Ou, menos, que fez com que os atenienses conservassem a virtude e permanecessem tão bons quanto antes? Eu não sei dizer nenhum nome, caro Cálicles!

CÁLICLES – Deveras, Sócrates? Então nunca soubeste da fama de Temístocles, tão homem de bem quanto os reputados Címon, Milcíades e, por fim, Péricles, falecido há pouco, cujos discursos tu mesmo ouviste em vida?”

“Os médicos geralmente permitem que quem está sadio dê livre curso a sua dieta, deixando que comam o que quiserem quando bater-lhes a fome, que bebam, idem. Mas não permitem o mesmo aos enfermos.”

“SÓCRATES – (...) Responde agora estas dúvidas finais, para que ao menos arrematemos este assunto!

CÁLICLES – És insuportavelmente teimoso, Sócrates! Se me cresses só uma vez, renunciarias a continuar esta disputa e acabá-la-ias com outra pessoa.

SÓCRATES – Mas quem há de querer?! Por favor, te peço mais uma vez, só mais um pouco!

CÁLICLES – Tenho uma idéia: por que não a terminas sozinho, seja discursando sem interrupção ou respondendo-te a ti mesmo?”

“o mau é o que está em oposição ao homem temperante; é o libertino, cuja condição não cessas de louvar. (...) um homem desta categoria não pode ser amigo dos demais homens nem dos deuses; porque é impossível que tenha qualquer relação com eles; e, onde não existe relação, não pode ter lugar a amizade. (...) era preciso, em caso de injustiça, acusar-se a si mesmo, ao próprio filho, ao amigo; e servir-se da Retórica com este fim. (...) não é o mais feio testemunhar uma agressão injusta, uma mutilação injusta, um confisco de bens injusto? Não, pior ainda é que me espanquem e que me retirem o que me pertence, injustamente. (...) não estou certo de que o que digo seja verdadeiro; porém, o que sei é que, de todos os que conversaram comigo, dessa forma como nós dois estamos fazendo, ninguém deixou de cair no ridículo, e por culpa de si mesmo, tentando defender uma opinião contrária a minha.”

“SÓCRATES – (...) Pergunto se, para não sofrer injustiças, basta querê-lo. Seria necessário buscar poder suficiente para pôr-se ao abrigo de toda e qualquer injustiça?

CÁLICLES – É claro que a única saída é obter poder.

SÓCRATES – Agora, quanto a cometer injustiças, seria bastante não querer cometê-las para que não fossem cometidas -- ou, considerando tudo, seria preciso adquirir certo poder, isto é, uma certa arte, de modo que, sem aprender esta arte e sem adquirir este poder, e sem pô-los, em seguida, em prática, incorrer-se-ia, necessariamente, em injustiças?”

“SÓCRATES – Se algum dos jovens desta cidade dissesse a si mesmo: como hei de alcançar um grande poder e pôr-me ao abrigo de toda injustiça?, o caminho para aí chegar, ao meu ver, é criar o hábito, o quanto antes, de bajular e vituperar as mesmas coisas que o tirano bajula e vitupera, e esforçar-se por adquirir a mais perfeita similaridade com ele. Não concorda?

CÁLICLES – Sim.”

“Ignoro qual seja o segredo de sua arte, para virar e revirar os raciocínios mais díspares em todos os sentidos, Sócrates! Ignoras tu que este homem, que se modela pelo tirano da cidade, fará morrer, desde que o julgue conveniente, e despojará de seus bens, qualquer um que não o imite?”

“SÓCRATES – (...) Crês que o homem deve tentar viver o maior tempo possível, e aprender as artes que nos salvem dos maiores perigos nas mais variadas situações da vida, como a Retórica prega? Ou seja, crês que o melhor é aprender Retórica, sinônimo de segurança nos tribunais?

CÁLICLES – Sim, por Zeus! E – pela milésima vez – este é o melhor conselho que hei de dar-te.

SÓCRATES – Caro Cálicles, que achas da arte de nadar?

CÁLICLES – Não me agrada, decerto.

SÓCRATES – E no entanto... por saberem nadar, muitos homens já evitaram a morte. Mas, já que consideras a arte de nadar algo desprezível, mencionarei outra mais importante: a de conduzir navios, que não só salva muitas almas, como corpos, e os bens, de grandes perigos, igual faz a Retórica. É uma arte modesta, sem pompa; não é presumida, não faz ostentação de si mesma, não se julga a panacéia universal; e, mesmo produzindo a quantidade equivalente de vantagens da arte oratória, não demanda mais que 2 óbolos caso queiramos, p.ex., ir de Egina a Atenas sãos e salvos. Mas se o ponto de partida for o Egito ou o Ponto, ou seja, um percurso muito mais extenso, ainda assim é uma arte maravilhosa: pela conservação de nossa vida e de todos os nossos bens, nossos filhos, nossas mulheres, esta arte não cobra mais do que 2 dracmas, e isso apenas após estarmos já em terra firme, no porto de desembarque. Quanto àquele que principalmente exerce essa arte, que nos prestou um serviço tão elevado, após o desembarque, não se parecerá com um príncipe soberbo, nem mesmo às margens das águas onde atracou seu navio. A verdade é que, em circunstâncias banais, ele mesmo ignora o bem que realizou, e a quem realizou. Afinal, sabe o praticante desta arte, por experiência, que, no fim, não melhorou nem piorou ninguém por exercer o ofício que exerce. A alma e o corpo dos seus passageiros permanecem tais quais à entrada, no momento de sua saída da embarcação. Mas creio que, continuando a refletir, aquele que conduz naves chegaria a estas conclusões: um enfermo que padece de males graves e incuráveis, passageiro meu, bem que gostaria de morrer em sua travessia pelo mar; se não morreu afogado e continua enfermo e sôfrego após a viagem, tanto pior para ele! Decerto, não seria este a me agradecer uma vez entregue ao destino combinado. Nada fiz-lhe de bom. E alguém saudável de corpo, porém incurável de alma, o que é muito pior, por um acaso julgaria de forma diferente o serviço que eu lhe presto?! Obviamente que não, pois estaria muito melhor afogado no oceano. Para uma alma corrompida e perdida, afogar-se seria receber justiça. O piloto de navio sabe, pois, instintivamente, que não é vantajoso para o homem mau viver, porque este há, necessariamente, de viver em desgraça. (...) Pretenderias, acaso, compará-lo ao advogado? Porém, Cálicles, se ele quisesse usar a mesma linguagem que tu, e exaltar a própria arte, oprimir-te-ia com suas razões, provando-te que devias tornar-te maquinista, exortando-te a seguir esta profissão, já que os demais ofícios não são nada cotejados com o dele, e vejo uma multitude de argumentos que ele poderia empregar. Tu, por tua vez, depreciarias seu ofício, dizendo-lhe, provavelmente para irritá-lo, que ele não passa de um maquinista; e que jamais darias a mão de tua filha a um filho de maquinista, nem a do teu filho a sua filha. Fixando-te sobre as razões que tens para estimar em tão alto grau tua própria arte, com que direito depreciarias a arte do maquinista e a dos demais de que te falei? Já sei que dirás que és melhor que eles e de melhor família.”

“De fato, o verdadeiro homem na acepção da palavra não deve desejar viver pelo tempo que imaginar ser mais adequado nem ser muito apegado à vida, senão que, deixando a Deus o cuidado de tudo isto, confiando nos discursos das mulheres, que dizem: Jamais alguém se livrou de seu destino --, do que um homem necessita é saber de que maneira desfrutará o tempo que lhe resta. E isto deve coadunar com os costumes do país em que vive? Se sim, é preciso então que, desde este momento, te esforces o máximo para parecer com o povo de Atenas, se é que queres ser por ele estimado e dispor de crédito na cidade. Avalia se não é uma postura vantajosa para ti e também para mim! Mas previne-te, amigo, para que não se nos suceda o mesmo que às mulheres da Tessália, rematadas supersticiosas, que acreditavam ficar completamente impotentes assim que a lua se punha. Serve de alerta para que não percamos o alento, imaginando que não possamos alcançar toda essa estima senão sacrificando nossa pureza e nossas maiores qualidades. (...) porque não basta imitar os atenienses; é preciso ter nascido com seu caráter; só assim sua amizade será mais que mera afetação, e o mesmo (para) com o filho de Pirilampo.¹”

¹ É um adorno espirituoso e ao mesmo tempo enigmático de Platão, principalmente por vir da boca de Sócrates. Uma das interpretações é que é apenas um jogo de linguagem inocente, visto que Pirilampo (pai adotivo de Platão) teve um filho com sua mãe biológica a que deu o nome de Demos, isto é, “povo”. Outra interpretação não impossível é que Sócrates se referiria ao próprio Platão, posto que é filho de Pirilampo, no final das contas, mas não faz muito sentido. Por fim, outra interpretação, igualmente menos provável que a primeira, seria uma crítica a Pirilampo e seu filho, numa de duas acepções: 1) Que o nome de alguém não define verdadeiramente quem se é; logo, Pirilampo, dando o nome de Demos a seu filho, quis apenas bajular o espírito democrático ateniense (agindo como um orador astuto), sendo sua ação inócua e vã; 2) Mas pode ser também que seja uma crítica (nem que apenas preventiva, pois pode ser que Demos fosse então apenas um menino) dirigida tão-só a Demos, que seria um protótipo do tipo que Sócrates gostaria de evitar, e que gostaria que Cálicles, se pudesse mudar sua maneira de ser, também evitasse: um imitador barato, um homem de maneiras afetadas. De todo modo, não é possível precisar que idade teria o cidadão Demos no contexto deste diálogo de um já idoso Sócrates (na Grécia alguém se tornava oficialmente cidadão e responsável pelos próprios atos políticos igualmente aos 18 anos). Como o sentido é ambíguo, embora acredite que a primeira interpretação é a mais próxima da verdade, deixei o “para” entre parênteses: se se inclui a preposição na fala de Sócrates, significaria: “e o mesmo se aplica quando fores te dirigir ao filho de Pirilampo (para conservar sua amizade, tu tens de ter o caráter ateniense)”; caso não seja nesse sentido que Sócrates se expressa, mas no sentido de achincalhar Pirilampo/Demos, a preposição não seria usada.

“SÓCRATES – (...) Os homens, com efeito, Cálicles, se comprazem mais com aqueles discursos que se moldam a seu caráter; tudo que lhes soa estranho parecerá ofensivo. Ou discordas de mim? Que possíveis objeções interporias?

CÁLICLES – Não sei dizer como tens razão, Sócrates, mas me parece que tens, neste particular! Em que pese isso, Sócrates, sigo pertencendo à maioria dos que te escutam: não me convences.”

“Já ouvi dizer que Péricles fez dos atenienses preguiçosos, covardes, tagarelas e interesseiros, ao profissionalizar o exército.”

“SÓCRATES – (...) Eu presenciei a época e sei, e tu também sabes muito bem, Cálicles, que Péricles granjeou-se uma enorme reputação no começo de seu governo; os atenienses, quando eram mais maus,¹ não ousaram acusá-lo nem infamá-lo nenhuma só vez; porém, no fim da vida de Péricles, quando já se haviam tornado bons e virtuosos,² condenaram-no pelo delito de peculato, e pouco faltou, em verdade, para que o condenassem à morte, de modo que, no final de sua tirania, Péricles havia caído no conceito do povo, e terminou reputado um mau cidadão.³,4

CÁLICLES – E só porque era tido por mau pelo povo, haveria de sê-lo?”

¹ Menos molengas, ou seja, mais aptos a combater um tirano – não seriam, portanto, com o mesmo direito, melhores?

² Sócrates escancara a ironia que era mais leve e ainda incerta no começo da frase.

³ De duas uma: ou Péricles foi um excelente governante e o povo foi ingrato com ele, ou Péricles foi tirano, logo, um homem ruim, um demagogo, e recebeu sua paga ao final. E pouco importa, no caso presente, que Péricles seja exaltado ainda hoje como o maior governante da época áurea de Atenas. Com efeito, a primeira alternativa contradiz a si mesma: se o critério de Cálicles fosse válido, Péricles teria escapado da condenação e morrido querido pelo povo. Subjaz sempre a possibilidade de que Péricles fôra justo mas não um orador no sentido calicliano, e que, portanto, indefeso contra a cegueira de maus cidadãos, terminou em desgraça, mas isso ainda corroboraria Sócrates, quem crê que é menos pior sofrer uma injustiça que cometê-la. De todo modo, que Péricles tenha sido um modelo de político, não é o que conclui Sócrates em momento algum do diálogo. Se só o poder nu e cru salva o homem e deve ser a meta suprema, como Cálicles poderia explicar que o maior político da esplendorosa Atenas tenha se emaranhado em maus lençóis, tendo sido tão poderoso e incontestável? Além disso, foi Cálicles que citou exemplos passados como os de políticos que deveriam ser imitados.

“SÓCRATES – (...) Diga-me agora, quanto a Címon: não o condenaram à pena do ostracismo, para que ficassem 10 anos sem ouvir a sua voz? Não aconteceu o mesmo a Temístocles, que ainda por cima foi desterrado? E Milcíades, o vencedor da batalha de Maratona, não foi sentenciado a ser trancado num calabouço, destino que teria sofrido, sem dúvida, não fosse a intervenção do primeiro prítane? (...) É natural que os hábeis condutores de carruagem caiam de seus cavalos ao princípio, enquanto aprendem, mas não depois, quando já sabem ser dóceis e desempenham bem o ofício de cocheiros. Não concordas que o mesmo que acontece com a condução dos carros se aplica a qualquer outro assunto?

CÁLICLES – Ora, concordo.

SÓCRATES – (...) agora vês que estes figurões do passado não levam nenhuma vantagem sobre os políticos de nossos dias. (...)

CÁLICLES – Ainda assim, Sócrates, muito falta aos políticos de hoje para que consigam levar a cabo ações tão grandiosas quanto as de qualquer um dos citados por ti.”

“Um homem à cabeça do Estado jamais pode ser oprimido injustamente pelo próprio Estado que governa. Com os políticos é como com os sofistas. Os sofistas, hábeis no que lhes concerne, observam, contudo, até certo ponto, uma conduta desprovida de bom senso. Enquanto professam ensinar a virtude, acusam, por outro lado, muitos de seus discípulos de injustos, por não lhes pagarem o dinheiro que lhes é devido pelo ensino da virtude. Em suma, acusam os seus alunos de ingratidão diante de seus serviços.”

“SÓCRATES – (...) Ó, querido Cálicles, em nome de Zeus, que preside sobre a amizade, diga-me: não achas absurdo que um homem que se gaba de ter feito de outro um virtuoso se queixe dele como de um malvado qualquer, quando está patente que foi instruído e é virtuoso?

CÁLICLES – É, me soa absurdo.

SÓCRATES – Mas não é este discurso que ouves de quem professa ensinar a virtude?

CÁLICLES – Exato. Mas que outra atitude se poderia esperar de gente desprezível como os sofistas?

SÓCRATES – E tu, que me dizes: estes que, gabando-se de compor a cabeça do Estado e de consagrar todos os seus cuidados a fim de torná-lo virtuoso, têm razão em sair acusando o Estado de estar corrompido? Crês por um acaso que estes homens se encontram em caso diferente dos sofistas? São o sofista e o orador, meu querido, uma mesma coisa ou, ao menos, duas coisas bem parecidas, como eu disse a Pólux.”

“SÓCRATES – Se, portanto, alguém destruísse este princípio de maldade, isto é, a injustiça, este alguém jamais teria de temer que se conduzissem para com ele de modo injusto; e seria ele o único que, com toda certeza, poderia dispensar gratuitamente seus talentos, se era realmente seu dom ensinar a virtude. Não convéns?

CÁLICLES – Sim.

SÓCRATES – Provavelmente é em virtude disto que não é vergonhoso receber um salário por outros tipos de conselhos, p.ex., sobre arquitetura, e artes que-tais.

CÁLICLES – De acordo.”

“SÓCRATES – Agora me explica claramente a qual destas duas maneiras de buscar o bem do Estado me convidas; combatendo as inclinações dos atenienses, para fazer deles excelentes cidadãos, como se eu fôra um médico da alma; ou alimentando suas paixões, buscando apenas ser prazenteiro. Não hesites, Cálicles, pois, como começaste a dialogar comigo com franqueza, deves continuar até o fim dizendo exatamente aquilo que pensa, sem omitir nada.

CÁLICLES – Digo, Sócrates, que meu convite é para que sejas o fomentador das paixões dos atenienses.

SÓCRATES – Ah, meu mui generoso Cálicles, quer dizer então que me incentivas a ser seu adulador.”

“serei julgado como sê-lo-ia um médico acusado por crianças e um cozinheiro. Examina, com efeito, o que um médico, no meio de semelhantes juízes, teria de dizer em sua defesa, se se o acusasse nestes termos: jovens, este homem faz-vos muito mal; desperdiça vossa juventude, e ainda a dos mais jovens que vós; torna vossa vida inconsolável, cortando-vos, queimando-vos, debilitando-vos e sufocando-vos; dá-vos bebidas muito amargas, faz-vos quase morrer de fome e de sede; não vos serve, como eu, alimentos de todas as classes em grande quantidade, e agradáveis ao paladar.”

“Se sou acusado de corromper a juventude, provocando a dúvida em seu espírito; ou de falar mal de cidadãos anciãos, pronunciando, a seu respeito, discursos mordazes, seja em particular, seja em praça pública, não poderei dizer, como é certo, que se obro e falo assim é com justiça, tendo em conta vosso poder anômalo, ó juízes! Mas exclusivamente por essa razão. Dessa forma, creio que, seguindo firme, me submeterei à sorte.”

“O temível é cometer injustiças; porque o maior dos males é descer aos ínferos com uma alma carregada de crimes.”

“Nos tempos de Cronos, regia entre os homens uma lei que sempre subsistira, e que subsiste ainda, entre os deuses, segundo a qual aquele que observou uma vida justa e santa é encaminhado, após a morte, às Ilhas Bem-Aventuradas, onde goza duma felicidade perfeita, ao abrigo de todos os males; na outra mão, quem viveu na injustiça e na impiedade é dirigido ao lugar do castigo e do suplício, que se chama Tártaro. Sob o reinado de Cronos e nos primeiros anos de Zeus, estes homens eram julgados em vida por juízes vivos que pronunciavam sua sorte no mesmo dia em que deviam morrer. (…) <o que faz com que hoje os julgamentos não sejam justos é que se julga os homens com base na roupa que vestem, se os julga quando seu futuro ainda está em aberto. Daqui resulta que muitos de alma corrompida possuem um corpo bem-formado e belos trajes, achando-se muitos testemunhos favoráveis no tribunal, pois a sentença que dão é que ‘viveram bem’. (…) Que se comece por vedar aos homens a presciência de suas horas finais, porque, me parece, por ora eles já as conhecem de antemão.> E Zeus continuou: <Comandei Prometeu a destituí-los desse privilégio. Ademais, desejo que eles sejam julgados em uma nudez absoluta, livres de tudo que os rodeia, o que requer que sejam julgados depois de morrerem. Também é preciso que o próprio juiz esteja nu, isto é, morto, e que examine, com base em sua própria alma, a alma do julgado (…) eu nomeei três de meus filhos como juízes: dois de Ásia, Minos e Radamanto, e um de Europa,¹ Éaco. (…) Radamanto julgará os mortos da Ásia, Éaco os europeus; darei a Minos a autoridade suprema para decidir em última instância sobre casos controversos tanto da parte de uma jurisdição como da parte da outra (...)”

¹ Observe que se fala aqui de duas mães de filhos de Zeus, e não dos continentes em si.

“Se teve em vida algum membro deslocado ou fraturado, os mesmos defeitos aparecerão depois da morte. Numa palavra, tal como se quisera ser durante a vida, no reino do corpo e da carne, assim também será a imagem da morte.”

“Quanto a Tersites, e a qualquer outro mau, esses que sempre viveram com egoísmo, nenhum poeta os representou sofrendo os tormentos mais terríveis. (…) É muito difícil, ó Cálicles, digno mesmo dos maiores louvores, não sair da justiça, quando é-se plenamente livre para agir mal, e são bem poucos os que se encontram nestas condições. (…) Desse pequeno número foi Aristides, filho de Lisímaco, que tem uma justa reputação no mundo grego (…) quando algum destes tiranos cai nas mãos de Radamanto, tem certeza, Cálicles, este juiz desconhece identidades, parentes, tudo; em verdade, só sabe de uma coisa: que ele é mau; e depois de reconhecê-lo como tal deposita-o no Tártaro, não sem marcá-lo com certo sinal, que denuncia se esta alma é passível ou não de cura.”

“Vós vedes muito bem, vós 3, os mais sábios da Grécia, Cálicles, Pólux e Górgias: não podeis provar que se deva adotar, aqui, outra vida senão aquela que nos será útil lá embaixo.”

“é uma vergonha para nós presumirmos que valemos grande coisa, sendo que mudamos o tempo inteiro de opinião sobre os mesmos objetos de sempre”

“Marchemos pelo caminho que nos traça a justiça, e comprometamos os demais a nos imitar. Não demos ouvido ao discurso que te seduziu e que me suplicavas que eu admitisse como bom; porque não vale nada, meu querido Cálicles.”