Poderes irrecorríveis
 

No princípio do Século XX, Ruy Barbosa, o maior jurista que este país já teve, enunciava com grande sabedoria: "A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer". De fato, já naquela época, o eminente pensador antevia que uma das formas de se evitar arbítrios dentro do Estado era desconcentrar o poder, inclusive aquele contido na mão dos togados.

Depois de mais de cem anos, o pensamento de Ruy Barbosa mantém-se vivo. Embora se possa argumentar que a Nova República trouxe inegáveis avanços civilizatórios, há também diversos retrocessos que não podem mais desvanecer da vista do povo. Um deles diz respeito ao sistema político instaurado quando da redemocratização. Dentre todas as críticas que sofre, uma frequentemente passa desapercebida: a falta de controle que se exerce sobre o Poder Judiciário.

Cada juiz, em si mesmo, é um mini estado, repleto de garantias institucionais, financeiras e políticas. Antes assim que um Judiciário submetido aos tiranos. Contudo, há pouca transparência e submissão à vontade soberana numa democracia, que é a vontade popular. É princípio fundamental da República: o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição. Esse preceito não vale para o referido poder: não há eleições para nomeação de magistrados. Ademais, suas decisões só podem ser revistas por seus pares, num sistema hierárquico, nunca pelo povo a quem deveria se sujeitar.

As consequências desse arranjo saltam aos olhos: os acórdãos judiciais invadem a esfera dos outros poderes, que podem ser considerados de segunda categoria. Cria-se uma elite de iluminados, detentores da palavra final do que seria a Lei e a Constituição, da mesma forma que os antigos sacerdotes funcionavam como intermediadores do divino e da verdade universal. O sistema jurídico e político, então, gravita em torno dessas figuras, que podem, a seu bel prazer, decidir o que é certo e o que é errado, à revelia dos reles mortais.

Como reagir a isto? Mudanças institucionais são necessárias e o embate com o povo se aproxima. O excesso de poder pode gerar reações igualmente poderosas, ainda mais quando se está inserido numa democracia, mesmo que fraca como a brasileira. Daí o medo, deveras significativo, de que a República descambe para a Hipótese do Cabo e Soldado, aventada recentemente por aqueles que detém outro poder, o da força física. Tanto este quanto aquele são irrecorríveis e cabe à população a vigilância. O equilíbrio de poderes deve vir por outras vias.