Lamentável Vélez

Sou de um tempo que a fala de um homem era fiadora de suas ações e atitudes, para o bem ou para o mal. Nestes tempos de pós-verdade e imbecilização dos espaços públicos isto tem sido descartado como algo desnecessário e incômodo.

Sou teimoso. Vou insistir no velho costume e a partir dele avaliar o atual ministro da educação por suas falas e situá-las diante dos fatos. Evitarei emitir opinião, mas tomarei a posição de juntar o discurso com a realidade, algo que a maioria se encontra desabituada ou sem competência para fazer.

>>>"Em entrevista para a revista Veja, Rodríguez usou como exemplo adolescentes que viajam. 'O brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisas dos hotéis, rouba assentos salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola'". http://www.agora.uol.com.br/brasil/2019/02/1986486-brasileiro-viajando-e-um-canibal-afirma-ministro.shtml

É possível citar diversos artigos pedagógicos apontando para a necessidade de se ensinar ética e convívio nas escolas. As próprias diretrizes educacionais no MEC para a educação básica fala sobre solidariedade, convívio e ética como temas transversais.

Seria mais interessante se ele falasse em como cobrar das escolas esta educação, como garantir que os jovens recebam aquilo que as normas já ordenam e estipulam, do que responder de forma generalizante e ofensiva - que pouco contribui para a questão em si.

Aliás, não generalizar, é um dos temas principais quando professor trabalha ética e convívio nas escolas. É da generalização que os preconceitos nascem e se reproduzem. Se o próprio ministro diz pra fazer algo que ele não faz, será difícil as coisas começarem a acontecer.

>>>"O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou que 'a ideia de universidade para todos não existe' e que devem ficar reservadas apenas à "elite intelectual". Em entrevista ao Valor Econômico , Vélez defendeu que os jovens utilizem o ensino técnico, uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro (PSL) durante a campanha". Fonte: Último Segundo - iG @ https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2019-01-28/universidades-ministro-da-educacao.html

A universidade no Brasil nunca foi para todos. Durante o governo Lula houve uma expansão das vagas e criação de um sistema de cotas que permitiu que mais estudantes pobres e negros ingressassem nas universidades. Será este o "todos" o que o ministro se refere? Não sei.

A tal "elite econômica" não se ele se refere a filhos de banqueiros, latifundiários, grandes empresários e investidores e especuladores financeiros. A universidade esta longe ser um espaço predominante de alunos de classe alta. Segundo pesquisa:

>>>"A última pesquisa realizada pela Andifes foi em 2010 e teve a participação de estudantes de 56 Instituições Federais de Ensino Superior. Naquele ano, a pesquisa constatou que 43,74% dos alunos das universidades federais pertenciam às classes C, D e E, e o percentual de estudantes de raça/cor/etnia preta aumentou de 5,9% em 2004 (período da pesquisa anterior) para 8,7%, em 2010.(...) A pesquisa do perfil dos alunos da graduação foi realizada três vezes: em 1996/1997, em 2003/2004 e em 2010." Fonte: https://www.portal.ufpa.br/index.php/ultimas-noticias2/71-classes-d-e-e-sao-maioria-dos-estudantes-nas-universidades

O que seria esta elite intelectual? Precisamos de médicos, engenheiros, professores, psicólogos, assistentes sociais, advogados entre outros. Não podemos nos dar ao luxo de escolher os mais aptos, precisamos melhorar a educação de forma a termos mais alunos e profissionais aptos. Temos demandas por estes profissionais, não podemos reservar as vagas para uma minoria que tenha aptidão, precisamos formar mais pessoas capacitadas intelectualmente para enfrentar um curso superior.

Já temos o Enem e outras formas de avaliação para selecionar os mais aptos por assim dizer e mesmo assim temos problemas nos cursos superiores. E agora? Vamos aumentar o gargalo de tantos profissionais de nível superior? Vamos colocar nível técnico para dar aulas e fazer diagnósticos médicos?

>>>"Vélez ainda criticou o que chamou de "ideologia de gênero" nas escolas, que ensinam "menino a beijar menino e menina a beijar menina" e afirmou que a nova estratégia do MEC será "uma virada brusca" para atender municípios com apoio financeiro. "As pessoas chegaram até a escola, é hora de a escola chegar às pessoas", afirmou".Fonte: Último Segundo - iG @ https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2019-01-28/universidades-ministro-da-educacao.html

Existe alguma pesquisa que nos situe em relação este tipo de ensino. Onde e quantas escolas tem ensinado este tipo de coisa? Não caberia acionar a polícia e o ministério público? Se alguma escola estiver ensinando seus filhos a se beijarem, acionem a polícia. No entanto, não se trata disto, se tal o fosse bastava este conselho.

Trata-se de um factoide para desqualificar a escola que ensina o respeito a diversidade sexual e de gênero. Por coisas como violência contra a mulher, contra os grupos LGBTT não tem que ser "o tipo de coisa que tem que ser revertido na escola" tal como ele se preocupa com o canibalismo brasileiro?

A escola deve chegar até as pessoas? O senhor vai fazer isto as custas de sucateamento das universidades? Só uma pergunta.É possível, basta diminuir o número de vagas para caber só a tal elite intelectual que o ministro aprecia.

>>>"O ministro da Educação defendeu também defendeu as escolas cívico-militares, afirmou que o projeto é economicamente viável e disse que as escolas que quiserem aderir poderão manter seus projetos pedagógicos. "Exemplos já existentes mostram que basta meia dúzia de militares para que os traficantes parem de aliciar os jovens", disse Vélez" Fonte: Último Segundo - iG @ https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2019-01-28/universidades-ministro-da-educacao.html

A questão é a seguinte, por que não ampliar o modelo dos IFETs e CEFETs, que mostram ótimos resultados e propor modelos de escolas militares? Quem conhece o contexto das favelas e áreas marginalizadas no Brasil sabe que serão muitas escolas deste tipo que deverão ser construídas.

Vamos ao economicamente viável, exemplo das escolas militares implantadas em Brasília:

>>>"A presença de policiais militares na gestão de duas escolas da rede pública do Distrito Federal foi aprovada pelas comunidades escolares nessa terça-feira (5/2). Em torno de 20 a 25 PMs passarão a atuar no Centro Educacional (CED) 1 da Estrutural e no CED 3 de Sobradinho a partir do início do ano letivo, na próxima segunda (11)". Fonte: https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2019-01-28/universidades-ministro-da-educacao.html

Se presença de policiais em favelas não garantem a redução do poder do tráfico, por que a presença de meia dúzia de policiais dentro de escola vão inibir o aliciamento de alunos? Os policiais vão acompanhar os alunos até em casa? Já ouviram falar das UPP's?

Podemos discutir os bons resultados de algumas escolas militares, que não sejam as voltadas para seus filhos, mas não será a questão do aliciamento o que dará base para implementá-las em larga escala. Nada impede que os sistemas de ensino se militarizem, como de fato tem acontecido, qual o papel que o MEC terá nisto?

>>>"Mais tarde, em breve entrevista à imprensa, o ministro chegou a afirmar que o "marxismo cultural" faz "mal à saúde" e é culpado pela falta de autoestima dos professores e pelas notas baixas de alunos brasileiros no exterior. "Ela [falta de autoestima dos professores] decorre dessa massificação [consequência do marxismo]. Vamos tentar reerguer a autoestima do professor acreditando na pessoa", disse... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/01/02/ministro-da-educacao-cita-deus-e-critica-marxismo-cultural-nas-escolas.htm?cmpid=copiaecola

Peço ajuda ao leitor: qual o fundamento empírico disto? Primeiro, o que seria este marxismo cultural? Segundo, que dados temos que nos confirmam o tal marxismo afetando aprendizagem e auto estima dos professores? Quer dizer que a qualidade do ensino e auto estima dos professores são resultados deste tal marxismo cultural? De que maneira ele age, como ele pode ser responsável pelos péssimos indicadores educacionais? Qual a base acadêmica disto? Estou verdadeiramente interessado.

Muito se fala sobre formação de professores, desigualdades sociais, violência, infraestrutura das escolas, questões salariais, mas "marxismo cultural" não conheço a referência acadêmica disto. O MEC vai dispor para as escolas materiais sobre isto? Fontes científicas, precisamos entender melhor isto.

>>>"Em discurso proferido durante sua posse, nesta quarta-feira (2), o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou que, entre seus objetivos como líder da pasta, estão acabar com o "marxismo cultural" e com a ideologia de gênero nas escolas. "A ideologia globalista passou a destruir um a um os valores culturais que regem o país, família, igreja, Estado, pátria e escola", afirmou o novo ministro.... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/01/02/ministro-da-educacao-cita-deus-e-critica-marxismo-cultural-nas-escolas.htm?cmpid=copiaecola"

Digamos que tal "marxismo cultural" seja característica de uma linha pedagógica adota por um professor, a constituição garante esta pluralidade pedagógica, tanto que nada impede que uma escola utilize o chamado construtivismo ou método fônico na alfabetização. O ministro vai impedir este tipo de ensino? Vai prender, vai multar, demitir, como ele vai fazer, dentro da lei e da constituição, para inibir o professor e a escola de adotar tal linha pedagógica? Como identificar tal linha?

Onde está ideologia globalista destruindo escola, igreja, Estado, pátria, família... Gostaria de saber a fonte disto, por que se for isto tudo teremos um único inimigo e não um conjunto estrutural de causas e problemas que afetam a escola. O que está ameaçando as famílias? O divórcio? A pátria? As igrejas evangélicas tem crescido no país e até exportando modelos para países da África e Ásia. A Igreja Católica tem se estagnado aqui por conta própria, o que não acontece com as protestantes.

> Questão central:

>O ministro realmente entende a estrutura e os processos envolvem a educação no Brasil atual?

>O ministro vê o problema da educação no Brasil como uma realidade multicausal (política, administração, economia, orçamento, social) ou como ideológico?

> Se o nosso problema educacional é de cunho ideológico, que medidas ele adotará para lidar com este problema? Vai mexer na constituição? Vai implementar o projeto Escola sem Partido, quando este for votado e sancionado?

Enfim, se chegou até aqui, te agradeço pela confiança e paciência. Tenho certeza que não esgotei o assunto, mas também não te deixei sem boas questões a serem pensadas e respondidas.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 14/02/2019
Reeditado em 14/02/2019
Código do texto: T6574390
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.