O Imbecil Funcional: uma tragédia chamada Brasil

É um tipo curioso que tenho observado há algum tempo. Estão presentes no nosso dia a dia e tão importantes em termos de votos, que é pouco inteligente por parte dos analistas não considerar o peso desta gente ao explicar as coisas do Brasil.

O Imbecil Funcional é aquele especialista em ensinar, dirigir vãs, cuidar de crianças, em tratar a saúde das pessoas, projetar prédios, etc., mas que carrega consigo na mesma proporção certas defasagens em termos de reflexão sobre a vida social.

A vida social se apresenta diante dele não como algo complexo, no sentido de múltiplas conexões e possibilidades, mas como algo misterioso. Uma ordem de coisas que parece estar tão naturalmente diante dele tal como uma árvore se encontra plantada em um bosque ou como uma montanha se encontra nos limites de uma cidade.

O Imbecil Funcional não opera com ideias, as ideias é que operam com ele. Ideias de outros, é claro, que exercem sobre o mesmo um fascínio como se fosse algo além da vontade humana e seus interesses mundanos.

O Imbecil Funcional tem dificuldade de entender qualquer coisa, filme, livros, artigos, obras de arte, ideias que não possam caber dentro de um esquema de interpretação já elaborado e acabado. Ele não consegue ou não vê razão para ampliar sua capacidade interpretativa de forma a agregar mais possibilidades e mais pessoas, coisas e ideias existentes.

E isto é grave, pois uma capacidade interpretativa limitada, também limita o mundo que pode ser contemplado pelo sujeito. Tirando seu "bairro" e outras pequenas coisas que lhe são familiares, tudo fora disto é chato, pecaminoso, errado e dentro de sua cabecinha caótico demais para ser algo que preste.

Por isto é intolerante com qualquer um que represente uma mudança ou mesmo obrigação de abarcar em seu mundo uma diversidade pela qual não se encontra em condições culturais de assimilar. Então ele discrimina e levanta bandeira contra tudo que ameace seu "bairro", que amplie as fronteiras de sua percepção.

A violência deste Imbecil Funcional é antes de tudo uma reação de proteção e fuga dissimulada de qualquer que lhe diga: o mundo é bem maior do que imagina. Saber que seu mundo é pequeno não faz dele um explorador de um novo mundo, mas um sentinela do próprio mundinho contra as ameaças exógenas.

O Imbecil Funcional em outros tempos se calava. Era uma forma de proteger seu mundo: não falar sobre isto a não ser com os seus iguais que pensam como ele. Mas nos tempos atuais ele saiu do armário. Se antes reclamávamos de sua apatia, hoje imploramos para que se calem e desistam de ser especialistas em tudo.

O Imbecil Funcional estava protegido em sua toca. Até que um dia o silêncio foi quebrado. O incomodo começou a bater em sua porta, o barulho ensurdecedor começou a chegar pelos jornais, pelas novelas, pela boca de seus filhos, pela ações de militantes e pela eleição de certas bandeiras.

Seu silêncio estava impossível de ser praticado, era o silêncio da conivência. Então começou a gritar e a gritar bem alto, não que tivesse muito a dizer que outros já não soubessem ou não se enganassem tão facilmente. A ideia era gritar bem forte para não só não ouvir o outro que ameaçava seu mundo, como também com o intuito que a voz do outro não fosse ouvida.

Por isto o Imbecil Funcional é antes de tudo um homem que berra. A espécie que se adaptou do silêncio ao barulho como forma de sobreviver aos novos tempos.

***

Ele pode ser um ótimo ou mediano profissional, isto pouco afeta. Pode ganhar muito ou pouco dinheiro. Pode inclusive entender muito sobre arte, vinhos e bom gosto. Porém quando se trata da relação com o outro e a vida social de uma forma mais ampla, ele se mostra um verdadeiro imbecil.

Não se trata de tomar por imbecil quem diametralmente discorde de uma ideologia que entendo por certo. Se fosse assim seria mais fácil lidar com a questão, pois seria meramente ideológica ou uma questão de gosto. Política não é como escolher entre morango ou chocolate, São Paulo ou Corinthians, Cruzeiro ou Atlético, Gal ou Elis.

A política tem consequências que não são de cunho meramente ideológico. Trata-se da vida que as pessoas levam, de quanto terão que trabalhar para aposentar, de quantos direitos serão tirados, de que assistência terão quando adoecerem e de que oportunidades os filhos terão e em que mundo viverão em termos de convívio ( violência, intolerância, discriminação, desigualdades extremas, etc.).

O Imbecil Funcional não consegue pensar nos termos colocados acima. Para ele tudo é uma questão de preferência, de quem é melhor ou pior segundo uma identificação pessoal que tem com fulano de tal. Ele não enxerga de uma forma mais profunda os problemas da sociedade, reduz tudo a questão de preferências.

Vamos a um exemplo concreto para amarramos este raciocínio. O deputado reeleito pelo Psol, Jean Wyllys, decidiu não tomar posse devido a ameaças e a liberdade restringida por conta de pessoas que não tolera suas defesas, principalmente de grupos GLBTs:

''Ainda segundo a assessoria, desde então, o parlamentar precisava andar de carro blindado e com escolta de seguranças armados.

'Aumentou a situação de violência, de seguidores do atual presidente [Jair Bolsonaro] que fazem todo tipo de xingamento e ameaças nas redes sociais. Isso criou uma situação cada vez mais difícil. Antes do assassinato da Marielle, ele já vinha recebendo ameaças muito pesadas, inclusive direcionadas não só a ele, mas também à família. E-mails falando endereço da mãe, endereço da irmã, da família', informou"¹

Agora vejamos um outro caso. Uma barragem novamente se rompeu hoje, dia 25/01/2019, novamente a Vale envolvida e novamente vítimas, pessoas que perderam seus bens e lares, ameaça de contaminação do meio ambiente e possível comprometimento do abastecimento da Grande BH.

Nos lembrou automaticamente de novembro de 2015, quando a tragédia do mesmo tipo em Mariana-MG ocorreu deixando 19 mortos e milhares de atingidos direta e indiretamente. Resultado:

"Dezenove mortes e nenhum condenado. Laudo da empresa contratada para levantar quais as causas e a dinâmica de rompimento da Barragem do Fundão (veja mapa), a Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP (CGSH) deixa claro que houve erros no processo construtivo do reservatório, mas que tais problemas foram atropelados por tentativas infrutíferas de contornar os problemas"².

A questão é, você não verá o Imbecil Funcional com a mesma indignação com estes casos. Famílias de responsáveis diretos e indiretos não precisaram se esconder ou temendo por suas vidas. Veremos fotos suas saindo algemados para alguma delegacia.

Não são tratados como criminosos, é como se a empresa não fosse formada pela decisão de pessoas, fosse uma entidade administrada por terceiros e com decisões próprias - pensamento digno de imbecis. O Imbecil funcional não fica indignado com carros ou empresas matando, pois a complexidade das ações fazem com que ele não enxergue tomadas de decisões, riscos sendo assumidos em cima da vida de outros, ele não enxerga isto.

Ele enxerga entidades como automóveis, empresas, prefeituras, mas não enxergam indivíduos operando estas instituições. Ações individuais para ele são mais "didáticas": estupros, roubos, assaltos, etc. Aos quais respondem energicamente através de linchamentos.

O Imbecil Funcional não consegue entender a relação entre indivíduos e instituições, por isto não sabe até que ponto temos a responsabilidade individual e até que ponto temos a institucional.

É mais fácil para o Imbecil Funcional agir de forma enérgica em casos individuais do que naqueles que envolvem instituições.

Tivemos um caso interessante que foi o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef e a condenação do ex-presidente Lula. Aparentemente os imbecis tinham aprendido a separar as ações individuais das institucionais. Donos de grandes empreiteiras tomando cadeia e um ex presidente respondendo por seus atos.

Aí os mais otimistas pensaram, agora o povo tomou jeito. Ansiosos demais, eles não entenderam que a única coisa que fez o Imbecil Funcional enxergar o indivíduo no institucional foi sentir seu bolso ameaçado. Ele começou a culpar estes ex-presidentes ao verem os pobres elevando o nível de vida enquanto o deles se encontrava relativamente estagnados.

Não um despertar de consciência, uma libertação do fetiche da instituição, onde vemos Brasil, Vale, Samarco, Prefeitura, STF ao invés de ver os agentes que ali operam e seus interesses. O que vemos foi o não reconhecimento de certos indivíduos como merecedores dos cargos e autoridades a eles confiadas.

Sabemos disto como? Simples, pelas reações diferentes nas ruas ao se tratar de um político e ao se tratar de outro. Não era contra a corrupção, mas contra a ruptura de uma hierarquia de valores, cuja a estagnação de uma classe somada a esta quebra de hierarquia se transformou em uma força de protestos e indignações que culminou no último impeachment. Não vemos nada parecido com o que ocorreu durante o mandato tampão de Temer.

O Imbecil Funcional possui estas limitações. Ele é capaz de ameaçar um deputado que representa pautas identitárias, mas não fica indignados com agentes privados ou públicos quando agem por trás de uma empresa ou governo (De forma alguma, acho que devem ameaçar estas pessoas como fizeram com o deputado, só me espanta que não haja tanta macheza quando se trata de pessoas que realmente causaram mal para os outros).

Se fôssemos listar aqui o tanto de coisas ruins que provavelmente não teria acontecido ou que seriam menos graves por conta de existência de milhões de Imbecis Funcionais por aí, teríamos grandes tomos divididos em centenas de volumes que chamaríamos de Enciclopédia da Burrice Humana ou Tratado sobre a Imbecilidade do Homem.

***

O Imbecil Funcional é guiado por valores e crenças, sendo incapaz de pensar sobre o fundamento delas e os interesses que as operam. Novamente, ele só faz este questionamento quando se trata de defender seu senso comum.

Ele vive em um mundo em que crer serem as coisas humanas, criadas por outros humanos antes dele, algo natural, algo que não foi construído, mas que existe desde o início dos tempos.

Por isto não foi difícil por parte de alguns charlatães, deste que vivem de vender mentiras que as pessoas desejam acreditar que sejam verdades, convencer os Imbecis Funcionais a se oporem aos seus professores de História, Sociologia, Filosofia ou qualquer outro que fale de forma crítica a respeito do que ele acha ser uma verdade absoluta.

O Imbecil Funcional possibilitou que este país fosse um dos maiores exportadores de religiões oportunistas do mundo. Digo estas que vendem bênçãos e que fez muitos acreditarem que a prosperidade é uma questão de fé e graça.

Este Imbecil Funcional não consegue nem mesmo vê contradições entre o que sua igreja diz, o que seu candidato defende e o livro que considera o único, entre muitos existentes, que possui a verdade sobre vontade de Deus.

O Imbecil Funcional só existem aos milhões não só devido ao tipo de educação que lhe é oferecida, mas também da forma como é tratado: arbítrio não combina crítica e nem com democracia, a educação acrítica é ferramenta tão indispensável quanto mais autoritário e arbitrário é um sistema político.

O Imbecil Funcional é um tipo institucionalizado que precisa ser reproduzido aos milhões através das escolas, mídias. igrejas e leis sem os quais não seria possível o que chamamos de Brasil. Da mesma forma, como o que conhecemos como Brasil durante 300 anos não teria acontecido sem a a escravidão indígena e negra.

Diferente do escravo, que tinha seu corpo escravizado e sua alma torturada para servir a outras almas, o Imbecil Coletivo não precisa ter sua alma torturada. A pouca capacidade que este tipo tem de pensar o social apequena sua alma, a restringe a simplificações grosseiras da realidade, e a torna presa fácil de quem aparenta autoridade e superioridade - ou seja, de quem possa pensar por ela e dirigir suas ações.

1 - https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/24/deputado-jean-wyllys-nao-tomara-posse-para-novo-mandato-diz-assessoria.ghtml

2 - https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/11/04/interna_gerais,1002816/3-anos-apos-rompimento-da-barragem-do-fundao-o-pesadelo-continua.shtml