A Pastora-Ministra e uma incongruência problemática
Eu sou contra o aborto. E isso não apenas por causa das minhas convicções religiosas, mas também por acreditar que descriminalizar tal prática seria o mesmo que recompensar a irresponsabilidade. De fato, noutros tempos em que o acesso à informação era precário, e a vontade da mulher no tocante à maternidade e à sexualidade era praticamente nula, até se podia compreender que algumas recorressem ao aborto. Hoje, porém, embora circunstâncias análogas possam ainda ser observadas, é fato que a liberdade feminina, bem como o conhecimento de moças e dos rapazes sobre as implicações que uma relação sexual desprotegida poderá lhes trazer, possuem uma configuração e dimensão diferentes de outrora. Se, portanto, a despeito disso, submetem-se ao risco, então que assumam a responsabilidade.
Essa minha postura firme e até certo ponto "conservadora" no tocante ao aborto adquire, porém, outras matizes quando se trata de gravidez advinda de um estupro. De fato, a monstruosidade de tal ato e o golpe à dignidade da mulher são de tal forma insólitos que não creio ser lícito condenar qualquer dentre elas que se disponha a encerrar a gravidez sob tais circunstâncias. Não se trata de um risco a que se expôs, muito menos de uma irresponsabilidade sua, mas de verdadeira violência. E começa por aí a minha divergência com a PL 478/2007, conhecida como o "Estatuto do Nascituro", que a futura Ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu em recente entrevista.
De acordo com o art. 12 do projeto de lei, é proibido "ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de ato delituoso cometido por algum de seus genitores". Com isso, põe-se um fim na excludente de ilicitude prevista no art. 128, inc. II do Código Penal, mediante a qual se admitia o aborto em casos de gravidez resultante de estupro. Trata-se de uma crueldade gigantesca contra a mulher. Como se já não fosse suficiente o trauma do ato por si, força-se a vítima a manter o resultado deste, sob pena de vir ela própria se tornar uma criminosa. Aliás, nos termos da PL, o direito do nascituro à vida deve ser assegurado com absoluta prioridade. Obriga-se, pois, a mãe a manter a gestação fruto de um estupro, e se acaso vier ela a ter complicações, ao que parece, sua vida estará em segundo plano. Mais de 51% dos países do mundo, inclusive os mais desenvolvidos, têm a sensibilidade de tratar a situação de outra forma, mas o Brasil resolve agora retroceder, "pra variar"...
O art. 13 da PL 478/2007 também traz ainda um sério problema. Isso porque, em seu inciso II, estabelece que o estuprador pague ao nascituro uma pensão alimentícia no valor de 1 (um) salário mínimo até que complete 18 anos. Ora, ocorre que apenas cerca de 10% a 15% do total de estupros são registrados; e cerca de 90% das vítimas de violência sexual não denunciam o seu agressor. Dessa forma, é pouco provável que o gravame previsto no Estatuto atinja sua finalidade; e, nesse contexto em que é desconhecida a identidade do estuprador, o parágrafo único desse mesmo dispositivo coloca sobre o Estado a obrigação alimentar. É, portanto, uma incongruência que a Ministra, parte de um futuro governo cujos cabeças são adeptos de uma doutrina de Estado Mínimo, e críticos de políticas como o Bolsa Família e principalmente o Auxílio Reclusão, defenda um projeto de lei que trás, em seu bojo, proposta bastante semelhante.
A PL 478/2007 traz consigo uma proposta válida e necessária, qual seja a proteção ao nascituro. Peca, todavia, nos excessos e na falta de sensibilidade sobretudo para com as mulheres que são vítimas de violência sexual, como demonstrado. É ainda omisso quanto a diversas outras questões relevantes, como a própria sistemática do poder familiar, inclusive quanto ao direito de convivência entre a criança e o pai, quando conhecido. Por isso mesmo, o Estatuto do Nascituro vai na contramão do que a maioria dos países do mundo dispõe acerca da temática, se constituindo, no fim, mais num retrocesso do que num avanço, infelizmente.
---
*NOTA DO AUTOR: Este artigo representa a minha opinião acerca do conteúdo nele exposto. Se você não concorda, respeito seu posicionamento, e as eventuais réplicas, quando pautadas do diálogo e na aquisição de conhecimento são sempre bem-vindas.