Por que a classe média odeia tanto o Lula
Tive analisando uns comentários sobre o novo depoimento do Lula. Me perguntei por que alguém já preso, com 73 anos, é tão odiado. Outros fizeram coisas supostamente piores do que ele, mas não recebem o mesmo ódio.
Seus 8 anos de governo não tiveram o desemprego e a crise que se desencadeou durante o governo Dilma. Moradias, cotas e vagas nas universidades, financiamento estudantil e exploração do pré-sal, gente escolhendo emprego, enfim tudo como se não fosse nada, pois há algo além mais forte no coração de quem o odeia.
Devemos imaginar a figura social típica de classe média. Ele estudou em escola particular, em uma das melhores, futuro certo em uma universidade federal e curso a altura de suas pretensões financeiras e sociais, trabalhadas pelos pais desde da tenra infância.
São tratados como príncipes e princesas pelos pais, empregadas, pelo porteiro e pelo professor. São como destinados aos melhores lugares do mundo, sentem isto e agem como se tal fosse verdade.
Este indivíduo que fará um curso de prestígio na universidade federal logo se empregará bem. Terá um ótimo carro e dará entrada em um apartamento bem situado, decente e confortável. Ele tem uma família como aquelas de comercial de banco. São aparentemente tranquilos.
Falam duas línguas ou mais. Sabem comer, beber, se vestir, falar, tratar os outros, se portar em lugares e ocasiões especiais, enfim entrar e sair de qualquer lugar.
Não demora muito a importância conquistada e merecida, como uma promessa lá da infância garantida pelos pais, exigida da escola e fomentada pelas expectativas sociais, se transformar em uma imponência e auto valor que não demoram a ser reconhecidas pelos menos favorecidos como “doutores”. E fazem questão de ouvirem da boca destes validos o reconhecimento que eles nunca poderão ter na vida.
Enfim este cara, bem situado, um vencedor na vida que pode cumprir todas as exigências da sociedade e do mercado, ter a excelência e pegar seu prêmio em dinheiro e status – é um merecedor de quase um direito, que acredita ter feito muito individualmente por merecer.
Em certa altura de sua vida, este vencedor e merecedor do melhor que a vida tem a oferecer se depara com seu avesso lhe governando.
Um cara com jeito de peão, pau-de-arara, falando de forma simples, povão mesmo. Sem requinte, sem falar o português correto, sem jeito com coisas finas e de bom gosto.
Pouco estudo e uma sabedoria adquirida na prática, na rua e pelas porradas da vida. Este cara se torna presidente e começa a governar o outro lá, treinado para ser um dos príncipes deste mundo.
Lula se torna um elemento de crise existencial para esta gente. Ele mostra que mesmo sem estes recursos, tempos e pagamentos por promessas de um bom lugar na sociedade, é possível alguém entrar para a história e ser amado e respeitado até internacionalmente.
O outro sente seu anonimato pesar, ainda que com mais estudo, leitura, faculdade, requinte e conhecimento, o “analfabeto”, velho e pobretão entrará para a história e ele não.
É como uma promessa feita lá na infância aos príncipes deste mundo de um lugar magnifico ao Sol caso aceite o treinamento e a sujeição a uma dada educação e comportamento. E de uma ora para outra tudo parece bagunçado, pois havia antes um horizonte certo e claro de qual seria o caminho para o sucesso e para ser alguém na vida.
Se não conseguissem, poderiam facilitar que seus filhos continuassem de onde eles pararam, não haveria problema. A eternidade é antes de tudo que um modo de vida se perpetue através dos filhos, mas isto estava ameaçado.
E se deparam com a verdade da morte, do fim e da inutilidade. Havia uma áurea de conquista, de um merecimento de um lugar no Panteão dos bem-sucedidos. Mas como explicar que um pobretão conseguisse entrar para a história, enquanto eles seriam só mais um a morrer na praia tentando deixar um caminho mais a frente para os filhos, que tentarão ir um pouco além e alcançar o que os pais não conquistaram.
O que fazer senão odiar aquele que faz pouco do meu mérito, que despreza meus merecimentos, que me tira o lugar do mundo ao me tirar a exclusividade e o sentimento de que sou especial e único? É preciso destrui-lo, ainda que preso, humilhado, viúvo e idoso. É preciso torturá-lo e matá-lo ainda que em pensamento e ofende-lo ainda que ele não fique sabendo. Para que ninguém mais ouse, nem em pensamento questionar o meu lugar e meu direito e merecimento de ter mais do que os outros, tanto dinheiro quanto o respeito.
O negro militante, aquele que não aceita sua subalternidade diante do branco, a feminista que não aceita ser apêndice de homem, o pobre que entra por cotas e leva sua pauta própria para dentro da universidade, o homossexual que exige ser respeitado como um outro qualquer são outros incômodos que geram esta crise na classe média. Quebram as hierarquias e subvertem os caminhos consagrados e seletivos.
Agora dá para entender o porquê do ódio ao Lula. É um ódio tanto ao que ele representa pelo que ele foi e tanto pelas causas que tomou para si enquanto presidente – o tipo de gente ao qual ele deu voz e vez.
Não houve absurdos, patifarias, elogios a ditadura e a torturadores, nem mesmo covardia diante de debates, preconceitos e tosquices que impedissem a vingança pelo voto. Era preciso alguém que prometesse restaurar as coisas de antes, botasse ordem nas coisas e a ordem sempre foi esta: meu dinheiro, minha cor, minhas vantagens, meu sexo, minha orientação e meu gênero me dão direito ao meu prêmio que é meu lugar privilegiado no mundo, meu verdadeiro merecimento que não fiz para merecer.
Lula e as lutas que ele representou e deu voz ameaçavam a estrutura política e social que garante que os fetos de famílias ricas, ou que se acham ricas, tivessem assegurados seus lugares como príncipes deste mundo usufruindo a vida boa e digna que aqueles fetos de ventres pobres jamais sonharão em ter. Para que ocupem os lugares que sempre sobram, que não escolherão pra si, mas que terão que suportá-los como parte de suas vidas e de sua breve passagem pela Terra.