O discurso inicial de Bolsonaro após eleito
O discurso de Jair Bolsonaro às emissoras de TV logo depois de eleito mostra que é um representante das classes privilegiadas. Ele disse que não reconhece a existência de minorias, pois a Lei é para todos. Nenhum grupo deve ter mais direitos que outros, segundo ele.
No entanto, como um exemplo de base lógica para o nosso raciocínio, considerem o conjunto de pessoas negras. Vejam: com tantas nações que existem no Ocidente, salvo engano, houve somente um presidente negro - Barack Obama, nos EUA, em comparação com o número de presidentes brancos nas grandes nações.
Se olharmos para os candidatos que concorreram a cargos de governador, aqui no Brasil, eleitos ou não, veremos que não houve negros. Dê uma circulada nas zonas mais ricas de São Paulo, e conte quantos negros estão lá. Talvez atuem na segurança ou como motoristas, mas raramente como protagonistas sociais.
Quer dizer, se aceitarmos a definição dos direitos como um conjunto que se concretiza na prática, na vida real, veremos que os negros constituem um segmento muito mal representado e que, portanto, não desfruta de fato dos mesmos direitos que todos. E os negros são só um exemplo de muitos outros segmentos ou classes sociais que saem perdendo na distribuição dos direitos – embora cumpram todos os deveres que se espera deles.
É por isso, aliás, que são falácias e errados os argumentos de pessoas brancas, heterossexuais ou ricas, de que elas também sofrem preconceitos de negros, homossexuais ou pobres. Pois basta ver a distribuição desigual de poder e de privilégios no País (e no mundo) para perceber o sentido vertical dessa distribuição, sempre desfavorável a esses últimos. E isso também acontece nos governos de esquerda.
Note que eu nem estou me referindo a desigualdade de renda salarial ou econômica (às quais alguns liberais antepõem justificativas baseadas no mérito, no merecimento ou na capacidade, por exemplo). Estou falando daquele desnivelamento desumano, mais básico, mesmo, que é a desigualdade social - de etnia, de cor, de gênero, de religião (pois as fés minoritárias, tais como a umbanda, têm sofrido ataques violentos, muito embora tenham direitos iguais às majors, na Lei).
Com isso não quero afirmar que por aqui ocorre um racismo explicito (ou pior ainda, segregação e supremacia racial, que seria uma coisa mais dos EUA, mesmo), mas sim que, na prática, há segmentos da população com menos direitos que outros, embora contribuam para a riqueza do País com seu trabalho (e seus impostos) e cumpram seus deveres cívicos.
Ocorre que um direito só existe quando efetivado e as pessoas desfrutam dele; senão, é só intenção. Esta é uma definição e uma posição quase intuitiva, que todos deveriam aceitar; senão, que sentido teria falar sobre direitos e deveres?
Quer dizer, ao contrário do que alega Bolsonaro, não se trata de alguns grupos terem mais direitos do que outros, mas sim, de que existem grupos que na prática gozam de menos direitos do que outros, mesmo com deveres iguais; por isso são minorias.
Quando, então, ele deseja igualar os direitos das minorias ao todo, nem sequer reconhecendo a existência delas, na verdade está querendo voltar aos tempos em que estes temas não eram discutidos: simplesmente aceitava-se a situação de desigualdade e injustiça, num verdadeiro esquecimento cultural. O sonho do conservador é voltar àqueles tempos em que não se falava disso. É o mesmo politicamente correto, mas agora a serviço do conservador. E, para amortecer a consciência, basta taxar esses assuntos de “esquerdismo”.
É preciso, então, um esforço jurídico (e econômico) no sentido de nivelar as diferentes situações sociais, e isso não é feito simplesmente preenchendo uma carta constitucional na qual consta que todos são iguais. Um papel não muda as coisas: ao contrário, se engessado, ele pode até se tornar uma arma para a hierarquização conservadora da sociedade.
A mudança só acontece se as pessoas estão envolvidas em movimentos políticos que as representem e protejam, como frisou a teórica política Hannah Arendt no século XX, alicerçada em uma sólida tradição histórica (pensadora que não pode ser considerada esquerdista, desde que a sua base intelectual é a fenomenologia).
E são as atividades nobres, legítimas – cristãs, podemos dizer - desses movimentos políticos e sociais que Bolsonaro quer calar, como deixa implícita sua fala às emissoras; para obter apoio do povo, usa uma tática antiga, muito comum a classes privilegiadas, ao longo da história - inclusive no cristianismo: a de ridicularizar esses ativistas como baderneiros, malignos, vadios, etc.
Ora, quando vemos as mesmas acusações repetidamente feitas contra movimentos claramente diferentes entre si, como os de luta racial, ambiental, as feministas, os de justiça social (direitos de moradia, trabalhistas, etc), os dos pequenos agricultores, fica claro que uma narrativa é construída de cima para baixo e imposto à população para que creia - inclusive apelando-se a Deus como reforço, como se viu nas orações feitas após declarado eleito. Em vez de compreender esses esforços humanistas, é mais fácil rotular a todos os seus membros como desordeiros, invasores, comunas ... Mas essa tática caluniosa não resolverá o problema.
Deixando de lado esta análise de teor mais lógico-filosófico e falando de um ponto de vista religioso - já que Bolsonaro apelou a Jesus como o seu lema de campanha -, foi justamente por não aceitar essa narrativa parcial, que o Jesus histórico dedicou um ministério preferencialmente aos vulneráveis e excluídos, no âmbito da chamada tradição profética do Antigo Testamento. Se você não o crê, inchado como está de doutrina conservadora, dê uma lida no evangelho de Lucas. Verá que o que eu disse acima sobre os desfavorecidos e outros não é esquerdismo, antes é Evangelho.
Não foi Marx nem a teologia da Libertação quem pregou isso; foi Jesus Cristo. Como palavra revelada de um deus, não se discute: ou você aceita ou não.
A esquerda, aliás, a nosso ver pecou justamente por não ter esse cuidado verdadeiro com as massas, já que deixou a conexão com a periferia e assim perdeu votos.