Fome

Minha mãe passou fome quando criança. Meus avós tiveram 5 filhos e sempre trabalharam, puseram os filhos para trabalhar e, mesmo assim, minha mãe passou fome quando criança. A fome não marca simplesmente a pele, é dentro da gente que a fome faz marcas mais profundas. Enxergo isso com clareza e pesar. Minha mãe deixou de estudar para trabalhar. Minha mãe se tornou adolescente, adulta, casou-se com meu pai, teve 3 filhos. Sou o filho do meio. Meu pai deixou de estudar para trabalhar. Meu pai e mãe trabalhavam. Não passei fome, mas foram incontáveis as vezes que cortaram a luz, a água, o telefone - única tecnologia que nós, pobres, ousamos adquirir à época.

Minha infância também foi empobrecida. Morei na periferia. Não tinha escola perto, nem posto de saúde, nem supermercado, nem ônibus passou por lá durante muito tempo. Fomos pobres e escondidos da sociedade por vários anos. Não tive brinquedos, livros, não tive vaga na creche, muitas vezes passava o dia no serviço com meu pai ou com minha mãe. Tive minha liberdade de criança restringida pela pobreza. Sei que foi pior com outras crianças. Com minha mãe foi a fome. Mas todo sofrimento é legítimo. O direito a infância também o é.

Somente no começo do milênio nossa vida começou a melhorar. O dinheiro já valia alguma coisa. Saímos da periferia. Outras pessoas também foram escapando daquela realidade de exclusão territorial. Enquanto isso, quem ficou viu surgindo uma infraestrutura básica ao redor. Passei a receber bolsa escola, pouco dinheiro. Mas ajudava na renda de casa. Para minha família, as coisas foram melhorando mais ainda. No entanto, alguns de meus colegas, que não viam a vida de suas famílias melhorar na mesma velocidade, desistiram dos estudos no ensino fundamental, outros, os que permaneceram em escola pública, desistiram no ensino médio. Repetia-se o que viveram meus pais. Dois colegas mais pobres se envolveram com drogas e crime. Acredito que não tenha sido meramente escolha deles.

Terminei o ensino médio quando as coisas já

estavam financeiramente boas em casa. Havia paz – quando não há dinheiro suficiente em casa, a vida se torna um inferno, a vulnerabilidade se traveste de violência, não há paz; vivi isso, sei. Nesta época, as contas estavam quase sempre pagas, não precisei trabalhar enquanto estudava. Estudei, conquistei uma vaga em faculdade pública, minhas irmãs também. Fomos a primeira geração que entrou no ensino superior na família. A esperança renovada!

Minha adolescência e a de minhas irmãs não foi perfeita. Não tínhamos tudo que sonhávamos, porém, não tínhamos fome e tínhamos as oportunidades inéditas que meus pais e avós nunca haviam tido. Como é de se esperar, estudo e trabalho não são passes mágicos para a prosperidade. As dificuldades foram e são muitas. Do que aprendi, a lição que fica é: as oportunidades são essenciais e a liberdade de aproveitá-las é indispensável. Do contrário, de nada valem. Digo isso porque, se não fosse nutrido, tivesse a família estruturada e condições de me desenvolver, talvez fosse minha a escolha do crime e das drogas.

Conto esta história real para mostrar que, quando olho para minha família, vejo que somos o reflexo do Brasil em evolução. Enxergo mais ainda, mais longe, porque, com a educação formal, tenho aprendido a ser crítico e a valorizar a justiça social. Hoje sei as razões por que as coisas eram como eram para meus avós e meus pais e sei porque minha história se tornou diferente. Sei que a pobreza de meus pais e avós foi fruto de não serem considerados cidadãos, ou por serem considerados cidadãos de segunda classe. Sei que viveram sob a égide do poder militar, sem se dar conta que sua miséria era o projeto de alguns. Sei que, para muitos, a situação melhorou porque o Brasil se democratizou, a economia se estabilizou, o ensino cresceu, a massa de pobres passou a virar GENTE.

Digo virar gente porque ninguém é gente quando tem fome, a identidade fica arruinada. Mais do que virar gente, os pobres começaram a ir ao médico, à praia, a viajar de avião, a entrar na faculdade pública e particular, com bolsas ou pagando com seus próprios salários. Até os pretos. Esses sofreram mais ainda. Começaram a virar gente agorinha. Os gays, os indígenas, os quilombolas... tudo muito bonito, humano e recente essa história de virar gente para boa parte dos brasileiros. Um padrão civilizatório básico para todos - o nome disso é bem-estar social, um campo que estudo e amo muito.

Mas tenho más notícias. Não querem mais que você seja tão gente assim! Os pobres estão fora de controle, é preciso lhes fazer pobres novamente! Querem lhe roubar o direito de estudar, o direito à igualdade, o direito de existir. Um movimento que vem se fortalecendo emergiu à superfície. Projetos retrógrados criaram um discurso bonito de valorização da família e segurança para esconder sua agenda de interesses econômicos: manter o pobre intelectual e financeiramente pobre, ou seja, pobre e burro. Onde já se viu pobre virando doutor, chefe, andando de avião? Lugar de pobre, depois do ensino técnico ou profissional superior, é servindo a criar valor para alguém que não ele, não para aproveitá-lo.

Quando você ouve falar em carteira de trabalho verde e amarela, reforma trabalhista, eliminação da gratuidade da graduação e pós-graduação, privatização, parcerias público-privadas, entre outros, pode ficar de orelha em pé. Lembre-se que até pouquíssimo tempo seu salário estava sendo reajustado acima da inflação e que já não está mais. Ainda, poderá continuar assim, a depender de sua opção política. Veja para onde estão sendo direcionados os recursos públicos, os impostos que você paga, para as pessoas, em forma de produtos ou serviços, ou para organizações sem face e sem nome. O grande lance aqui é a nomenclatura diferenciada, acordo patrão-empregado, meritocracia, eficiência. Assim vamos perdendo nossa soberania, nossa cidadania.

Se você ouve falar de armas nas ruas, de armamento de guerra, pergunte-se para matar quem e onde? Procure saber sobre os relacionamentos insidiosos da National Rifle Association (NRA) com a política nos Estados Unidos. Isso é uma coisa que não queremos copiar em hipótese alguma. Olhe os mapas e calendários dos tiroteios em massa (mass shootings) nos EUA. Veja que o nosso Senado acaba de receber 8 senadores da bancada da bala. Armas e violência são quase totalmente indissociáveis. Examine se a essência de sua existência deveria se basear em violência, se a religião é uma desculpa para isso, se algum nível de insegurança o é.

Nosso país estava caminhando para uma democracia social mais ampla, de acordo com a Constituição Federal de 1988, nossa vida só vinha melhorando, até que resolveram atacar nossas instituições e nossa economia. Veja para o lado de quem pesa esse jogo. Vi minha vida e a vida de minha família sendo REALMENTE valorizada nos anos recentes, porém, agora nos encontramos diante de uma ameaça evidente a esse projeto de país includente e socialmente justo. Não caia nessa de comunismo, Venezuela. Isso tudo, além de não corresponder à realidade, diverge sua atenção dos problemas reais. Não caia nessa de que a corrupção é partidária. A corrupção é estrutural no Brasil e não há medidas simples que lhe aniquilarão do dia para a noite. Portanto, não existe um arauto da retidão que vá fazê-lo. Olhe para as políticas reais e para a cidadania, avalie como sua vida melhorou. Vote consciente de que suas escolhas afetarão o seu bem-estar, o de sua família e de seus amigos num curto espaço de tempo e com efeitos duradouros. Vote pela democracia, pela inclusão, pela dignidade humana, a favor de si e do Brasil.

Fernando Béca
Enviado por Fernando Béca em 12/10/2018
Reeditado em 12/10/2018
Código do texto: T6474383
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