A METICULOSA OPERAÇÃO DE STÁLIN PELA MORTE DE TROTSKI

     Quando aquele idoso que vivia solitário e amargurado em Barcelona olhou a foto que lhe apresentaram, ele não teve dúvidas:
     — Sim, esse é meu filho.
   Nesse momento, questionado pelo criminologista mexicano Quiron Quárez, Dom Pablo Mercarder Marina estava ajudando a solucionar um mistério que já durava havia uma década, desde quando Quiron interrogava o condenado no México. Quem seria realmente o assassino de Leon Trotski, o maior dirigente da Revolução Russa de 1917 ao lado de Vladimir Lenin?
     Dom Pablo então amargava uma revolta com a mulher que parira Ramón Mercader del Rio, Caridad del Rio Hernández, por ter sido abandonado por ela, uma balzaquiana irrequieta, independente, quase uma reencarnação de Carmem, a cigana da novela homônima de Prosper Merimée.  
     Com seu jeito libertário e francamente desestabilizador dos costumes da época, ela se aproximou do Partido Comunista da Espanha e, junto com seu filho, cerrou fileiras contra os partidários do fascista Francisco Franco. Foi nesse entremeio que ela conheceu o general Leonid Eitington, da polícia secreta soviética, que integrava uma missão especial cujo objetivo principal era matar Trotski. Não demorou para que o envolvimento amoroso virasse uma parceria numa cruzada em que se misturavam ingredientes de luxúria com maquinações doentias. Após a derrota para o franquismo, Caridad e Eitington, acompanhados de Ramón Mercader, fixaram-se em Moscou, onde então teve início o plano macabro de acabar fisicamente com o desafeto de Stálin. Não seria a única investida contra o velho líder, uma vez que o regime stalinista já havia assassinado ou causado a morte de vários de seus familiares e colaboradores mais próximos.
     A escolha para aproximar-se da presa recairia sobre Ramón Mercader porque nele foram identificadas qualidades incomuns que o treinamento recebido só acentuou. Sedutor, exímio atirador, articulado, poliglota, perspicaz, capaz de fingir um desinteresse sobre temas candentes, dissimulado, excelente ator, dono de um sangue-frio a toda prova. Esse stalinista de carteirinha recebeu sua missão sob documentos falsos e passou a se chamar Jacques Mornard, um rico empresário que, em uma viagem pelos Estados Unidos, em 1938, conheceu, num acaso planejado, uma secretária de Trotski chamada Sílvia Agellof. Seduzida, ela tornou-se o meio hábil para Jacques Mornard adentrar ao convívio da fortaleza trotskista no México, onde o velho bolchevique vivia asilado e isolado.
     O stalinista Mornard era uma cartada de peso nas inúmeras tentativas do governo de Moscou de dar cabo da vida de Trotski. No dia 24 de maio de 1940, fracassara uma investida em que o seu quarto foi crivado de balas e ele, Natália Sedova e seu neto milagrosamente escaparam ilesos. Se considerarmos o período que medeia entre essa data e 20 de agosto, veremos que é um espaço muito exíguo de tempo. Viver acossado e perseguido já fazia parte do cotidiano de Trotski e ele comemorava cada dia em que podia abrir os olhos para a vida. 
     Em janeiro de 1940, o camaleão Jacques Mornard disse a Sílvia que havia recebido uma proposta de trabalho na cidade do México, já colocando em prática seu intento de aproximação. Mas ele não faria isso de forma imediata. Mostrava-se como um aprendiz em matéria de política ao passo que tomava informações da secretária sobre o cotidiano dos Trotskis. Também fez um dossiê com fotos e relatos que foi enviado para o entorno pretoriano de Stálin a fim de auxiliar na execução do infame desiderato. Nesse momento, ele ainda não era a mão executora do crime, mas já estava se encaminhando para tal. Adentrou na residência em Coyoacán e foi sendo notícia entre os guardas, até que Trotski pessoalmente resolveu conhecê-lo. A oportunidade se avizinhava e então Mercarder passou a ser o plano A de Stálin. Nas três últimas semanas de julho, ele cimentou o terreno da sua infiltração, nunca se esquecendo de pequenas gentilezas para a família, como levar bombons para Natália.
     Na data de 17 de agosto, Mercarder/Mornard fez o último e decisivo ensaio para executar sua ópera mortífera. Sob o pretexto de mostrar a Trotski o esboço de um artigo, privou com ele a sós durante 11 minutos em seu gabinete. Nesse momento, examinou todo o ambiente e analisou todas as possibilidades envolvendo sua ação projetada, como chances de êxito e riscos na tentativa de fuga. Bem que Trotski comentou com Natália que o visitante estava estranho, mas ele parecia ter renunciado a viver com completa desconfiança de tudo e de todos. 
     Finalmente, no dia 20, usando de um pretexto para deixar Sílvia no hotel, Mornard dirigiu-se ao refúgio de Trotski com a desculpa de lhe apresentar o texto concluído. Eram 17h20min daquele dia fatídico que abreviaria a existência do velho dirigente marxista. Levava consigo uma capa de cor cáqui e, costurado por dentro do forro, colocou um longo punhal, alojando noutro bolso uma picareta de alpinista, de cabo cortado para melhor ocultação. Num dos bolsos traseiros da calça, acomodou uma pistola automática .45. Com a picareta, contava realizar um assassinato silencioso. Com a arma, esperava abrir caminho por entre a guarda. Sua mãe e o general soviético o esperavam num veículo próximo para lhe dar fuga.
     Quando Mornard chegou, com os guardas lhe obsequiando a entrada, Trotski estava cuidando dos seus coelhos e não sem impaciência atendeu o visitante. Possivelmente lhe parecesse enfadonho ler o artigo do qual já conhecia as linhas mestras. Ele retirou suas luvas de trabalho e seguiu para o gabinete, com seu iminente assassino lhe seguindo os passos. Sentou em seu gabinete e começou a ler. Ao alcance de sua mão, tinha uma pistola .25. Mornard, estrategicamente, postou-se entre ele e o sistema de alarme. Mal ele concentrou seu olhar no texto, Mornard fechou os olhos e desferiu o golpe de picareta no seu crânio, perfurado em oito centímetros. Trotski soltou um grito terrível e atirou-se sobre ele, num engalfinhamento entre vítima e algoz. Natália entrou junto com os guardas, que agrediram o Mornard e o matariam se não fosse a intervenção do próprio Trotski, que disse que ele deveria ser interrogado. Anos depois, o sempre frio e calculista Ramón Mercader revelaria que o grito de Trotski o perseguiria para sempre.
     Interrogado, Mornard apresentou um álibi inconsistente, mas nunca denunciou os mentores do assassinato. Depois de uma pena de 20 anos, que cumpriu de forma exemplar e discreta no México, viveu em Praga, fez visitas esporádicas à Rússia e à China e teria desaparecido na Cuba de Fidel para nunca mais ser visto. Sua mãe, durante o período de sua condenação, recebeu honrarias do regime despótico de Stálin. Todavia, ao ver que o governo de Moscou nada fazia para libertar seu filho, decepcionou-se e, posteriormente, ao saber dos crimes em massa atribuídos a Josef Stálin, inclusive com a morte do seu amante Eitington, teria se desiludido com a verdade por detrás do mito. Nesse momento, ela já era cúmplice ativa de um homicídio cruel que marcaria para a posteridade o final trágico de um grande líder internacionalista, de um pensador pujante engajado desde sempre na luta pelo socialismo verdadeiramente revolucionário. 
     Ao entardecer do dia 21 de agosto de 1940, Trotski morria para agigantar-se na história da luta de classes. Stálin, por sua vez, após sua morte, deixou um legado de terror que ensina, previne e atemoriza.



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Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 21/08/2018
Reeditado em 21/08/2024
Código do texto: T6425752
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