Temos uma saída para a crise?
Publiquei hoje, 25/05/2017, no site de O Globo (www.oglobo.com)
Temos uma saída para a crise?
Nestes últimos dias, angustiantes para a cidadania brasileira, tenho acompanhado as propostas para que a sociedade supere a crise global que nos assola. Quando a maioria da população começa a afirmar que não há solução para o caos que nos envolve e que todos os políticos são iguais fico preocupado. Ninguém se entende, todos têm uma opinião, e a necessária união em torno de alguns poucos objetivos coletivos se perde no meio da balbúrdia das desorganizadas discussões.
Não se trata de debater, aqui, formas e meios para diminuir a inflação, aumentar a capacidade de investimento, descobrir a exata taxa de câmbio a ser praticada, ou dedicarmos tempo com o debate sobre as formas de conter a violência, melhorar os serviços de saúde e implantar, de uma vez por todas, um programa nacional de educação de qualidade. Certamente tudo isso precisa ser resolvido, pois dessas e outras providencias concretas dependerá, em boa medida, a felicidade do povo.
Antes de tudo, porém, é preciso restaurar a união da maioria da população em torno de algumas ideias básicas — os princípios morais — alicerces de toda a Civilização Ocidental, da qual descendemos e fazemos parte. Poucos se dão conta de que desses valores morais foram erigidos os sistemas jurídico, eleitoral, econômico, a doutrina e as Leis sobre a dignidade inerente a todos os homens e mulheres, desde a concepção, o valor da família, a supremacia da dignidade do indivíduo que exige, cada vez com mais veemência, respeito não com ser coletivo, como querem alguns sobreviventes do pensamento marxista, mas como individualidade protagonista da história. Sem a recuperação dessas crenças históricas nada de bom e duradouro poderá ser feito — isto é uma verdade que precisa ser entendida e aceita pela maioria da população, como acontecia num passado de lutas que possibilitaram o atual estilo democrático de organizar e fazer funcionar o Estado Democrático de Direito.
A democracia, com o passar dos séculos, num movimento dialético de aperfeiçoamento contínuo, é a mais importante manifestação cultural do Ocidente, a sua decisiva contribuição para o futuro da humanidade. A densidade ética de uma sociedade, fonte do seu vigor político, se dá pela adesão espontânea e natural da população a esses princípios norteadores da vida e dos sonhos de um sempre possível futuro melhor e mais humano. Os valores a que me refiro estão no reconhecimento e na aceitação da dignidade inerente à pessoa, um “ser indivíduo de natureza racional, livre e social”. Tudo aquilo que promove esta natureza indivisível é um bem a ser cultivado, tudo que prejudica sua explicitação é um mal a ser evitado.
Quando nos referimos à democracia, os primeiros valores lembrados são a liberdade e a igualdade, verdades que se impõem naturalmente. Mas outros valores morais, sem os quais a liberdade e a igualdade não se explicitam, não estão tendo expressão concreta no funcionamento das sociedades: a expressão humana da solidariedade, da adesão livre às normas não escritas como a cordialidade, bondade, elegância na convivência e o amor. Com esta forma de pensar e agir, pequena e egoísta, o ideal democrático não funciona, a demagogia e o imediatismo prosperam, e as formas de convivência se tornam excludentes, deixando de lado o ideal de promoção do bem comum, ideal primeiro e maior do Estado Democrático de Direito.
A transmissão desses valores morais, no Ocidente, que inexoravelmente remetem a uma reflexão sobre o destino transcendente da pessoa, até algumas décadas atrás, sempre foi papel das religiões cristãs históricas. Depois de plantarem por séculos, com êxito, as sementes do ideal evangélico do amor, fracassaram no convívio com os questionamentos do mundo moderno e não sabem mais como agir nestes tempos conturbados e contestadores. Também foi papel dos sistemas educacionais que, por razões várias, se localizaram com a necessária qualidade, na pesquisa e na transmissão do saber, apenas em algumas regiões do planeta, hoje as mais desenvolvidas e democráticas. O Brasil e a América Latina não usaram esse instrumento de desenvolvimento e de aperfeiçoamento humano.
A tarefa de recuperar esse ambiente de alta densidade ética não é fácil. Cabe às Igrejas Cristãs retomarem com adequação ao momento histórico suas pregações e às chamadas elites que precisam deixar de lado o caminho do egoísmo e da indiferença pelo próximo e pensar de forma diferente, até por uma questão de sobrevivência...
A atual atitude das elites é suicida pelo isolamento excludente, pela ganância e egoísmo na manutenção do indecente e contrastante estilo de vida, entre o grupo que detém o poder politico e econômico, o emprego e o saber, e aqueles excluídos, em vários patamares de exclusão, dos benefícios do progresso. Isso não é uma simplificação do quadro social do Brasil, é a realidade que se ignora, mas não cala os que sofrem com o desemprego e a exclusão e, o pior, que não percebem as condições efetivas de igualdade de oportunidades no exercício da cidadania, nos próximos anos.
Um século após a tomada do Palácio de Inverno, em 1917, símbolo do totalitarismo tzarista, implantando o comunismo na antiga União Soviética — única proposta politica que se opôs com eficiência ao capitalismo e até hoje o amedronta — devemos lembrar às elites que elas ou modificam sua forma de comportamento e lideram a redenção do atual “proletariado” ou preparem-se para, possivelmente, enfrentar o caos que nos indica um futuro imprevisível. Um povo destituído da capacidade de refletir a partir de conceitos éticos passa a ser impulsionado por pífios e superficiais estímulos sonoros (rádio) e visuais (TV), ou a limitadíssima comunicação via internet e redes sociais. Sociedades, como a brasileira, que chegaram a sonhar de forma eficiente e objetiva com uma nação sem corrupção, desenvolvida, pacifica, solidária, justa e democrática, precisam, com urgência, retomar com eficácia e coerência a concretização dos seus sonhos, prestigiando a indispensável atividade politica com a eleição de novas caras honestas e competentes, ou preparem-se para a confrontação entre os que nada têm e aqueles que têm alguma coisa, mesmo sem saber aonde chegarão após o trágico conflito.
Eurico Borba é ex-presidente do IBGE e ex-professor da PUC RIO