A construção do povo em Lênin

Introdução

Neste ano de 2017, diversas comemorações e homenagens surgem para um dos maiores fatos históricos do século XX, a Revolução Russa, que completa este ano, cem anos. Diante deste cenário de comemorações, dediquei-me á ler a formação revolucionária que emergiu na Rússia naquela época. Na busca por livros, encontrei, em "pdf", o livro de Marc Ferro – A Revolução Russa, que parte desde a queda do Tzar até aos bolcheviques no poder. Partindo da leitura, o que mais me interessou foi o processo pelo qual o povo russo se construiu como revolucionário.

Com isso, este texto tem por objetivo analisar a construção do povo russo, enquanto um ator histórico na Revolução de 1917, tanto por suas demandas comuns quanto pelas ideias do líder revolucionário Vladmir Ilitch Ulianov (o Lênin). Através do método do pós-marxista Ernesto Laclau, em relação á construção de povo, como sendo "A razão populista", destacaremos tanto o papel de significante-mestre, desempenhado por Lênin, quanto as demandas unificadoras do povo.

Demandas sociais para a construção do povo russo.

No âmbito da ciência e filosofia politica, o conceito de povo pode possuir diversas das interpretações, para isso, delimitamos como ponto apoio o método de Ernesto Laclau, do qual analisa o povo como não sendo "um grupo dado, mas um ato de instituição que cria um novo ator [politico] .", cujo, "a unidade do grupo é simplesmente o resultado de um somatório de demandas sociais – que, claro, podem ter se cristalizado em práticas sociais sedimentadas." (2005, LACLAU, p.10). Partindo então, deste pressuposto de que o povo não nasce por si só, mas é construído, temos por Laclau uma das premissas de sua construção: o somatório de demandas sociais. Vejamos como forma-se este somatório na Rússia:

O ano de 1917, foi um ano histórico para a nação russa. Nunca foi visto tamanha mobilização constante e em massa, por toda a Europa, desde as revoluções burguesas e francesa dos séculos passados. Vivendo sob o regime monarquista-parlamentar, do tzar Nicolau II e da Duma (Parlamento)- que eram apoiados pelos grandes proprietários, velhos generais e os burocratas da nobreza, e enquanto, a grande massa, vivia no trabalho excessivo, na ignorância e na pobreza extrema.

Deste modo, como nos mostra Marc Ferro: "o povo russo nutria um tal ódio contra seus dirigentes que derrubar o tzarismo era para ele um dever tão sagrado como a defesa da pátria." (1974,p.15), este ódio iniciava, aos trabalhadores do campo e da cidade, um animo de consciência revolucionária. Porém, "a ausência de laços comuns...os mantinha divididos(...)" (p.19), surgia a partir daí, a necessidade de uma segunda premissa para a construção de um povo, da qual posteriormente discutiremos.

A Rússia sofria um desastre nacional, após a derrota de 1914 para a Alemanha de Kaiser, na Primeira Guerra Mundial. Com isso, em "meados do mês de fevereiro as autoridades de Petrogrado decidiram instituir os cartões de racionamento"(p.31), ao saber disso a grande massa, se encheu nas filas das padarias, mercearias, açougues etc. Com o fim do estoque, houveram aglomerações e quebraram-se as vitrines. Fato que se seguiu nos dias seguintes.

Iniciava-se assim, as agitações populares. E os parlamentares da Duma, em busca de representar as manifestações, preconizava a incapacidade do governo. Mas devido a ira dos trabalhadores, suas organizações ilegais, rejeitaram tal representatividade.

Após um comitê para as manifestações, sucederam-se 5 dias de jornadas pela Rússia. No inicio de forma pacifica, onde que as autoridades russas não as via com tanta gravidade. Mas as jornadas foram se intensificando e nas fabricas iniciavam-se as greves. No terceiro dia de jornadas, os bolcheviques, se tornavam os principais organizadores do movimento, que seguia dos guetos para o centro e agregavam-se aos soldados, que se rebelaram perante as derrotas na guerra. O quarto dia, foi o estopim para o levante contra o tzarismo. Após os oficiais ordenarem abrir fogo contra os manifestantes, o conflito terminou dispersando a multidão e deixou 40 mortos e 40 feridos. No dia seguinte: "O ímpeto revolucionário dos trabalhadores coincidiu com o movimento dos soldados, que na noite de 26 para 27 se amotinaram contra os oficiais: não lhes perdoavam ter-lhes dado ordem de atirar no povo."(p.33), assim, os soldados encarceraram os oficiais. E na manhã do dia 27, operários e soldados confraternizavam, tendo os ministros desaparecidos e o antigo regime desabado: " Alguns instantes mais tarde, viu-se o pavilhão imperial descer lentamente, puxado por mão invisível, e logo em seguida um pano vermelho flutuou sobre o palácio. Em 5 dias pusera fim ao reino dos Romanov." (p.34).

Após a queda do Tzar, organizou-se a Rússia em um Governo Provisório, sendo-o dirigido pelo príncipe Lvov e um duplo poder: (1) os governistas: que buscavam manter as estruturas e comandar a administração; e os (2) O soviét., que desdenhava de um poder de contestação. Mas os soviét. eram constantemente tentados á ser controlado por partidos e o seu núcleo era formado, por lideres socialistas moderados (os mencheviques). Sua função era fiscalizar se o governo cumpriria as reformas, para atender as demandas que fizeram da população se rebelar contra o Tzar. Essa função, traziam aos olhos dos bolcheviques, a ideia de que o Soviét seria o embrião do futuro Estado Socialista.

O problema é que o governo, em meio á este antagonismo de interesses, não conseguia atender as demandas da massa. E foram essas demandas não atendidas, que culminaram na união de um povo ativamente politico.

Tais eram as demandas dos grupos que compunham a massa:

Operários: "desejava que lhes melhorassem as condições de vida, instituindo a jornada de oito horas, o seguro e o aumento dos salários; era favorável à diminuição das diferenças de nível salarial, mas não á equiparação; desejava que comitês de fabrica exercessem um controle sobre a gestão das empresas..." (p.41)

Camponeses: "desejavam que tomassem medidas contra o Tzar e a antiga administração... além de reformas democráticas e uma ampla descentralização", os camponeses pobres, "desejavam uma distribuição gratuita, quer de terras devolutas, quer de grandes propriedades."(p.42)

Soldados: [exigiam]"a instituição de abonos às famílias dos combatentes e a concessão de uma indenização aos feridos e mutilados...[e que] se estabelecesse uma disciplina baseada no respeito à pessoa humana."(pp.42-43)

Estrangeiros: "desejavam que fosse reconhecida não apenas sua qualidade de cidadãos da república nova, mas também a de pertencerem a uma pátria."(p.43)

Essas demandas, divergiam dos interesses conservadores e burgueses, e este antagonismo colidia na sociedade civil: enquanto "a classe operária apresentara reivindicações modestas", o patronato pouco os concedia, e aproveitando-se das dificuldades econômicas, "não somente aumentaram muito pouco os salários, mas também despediram operários cada vez que havia interrupções na produção."(p.62).

A gota d'água para que a massa se rebelasse contra o Governo Provisório, foi a coalizão impulsionada por Kerensky, líder menchevique nos Soviéts, que contra os anseios dos operários e dos soldados, decidiu colaborar aos interesses burgueses e manter a guerra.

Significante-mestre: a bolchevização e o surgimento de Lênin.

Diante da traição e do não comprometimento aos anseios sociais, chegamos na segunda premissa para a formação de um povo, enquanto sujeito politico-histórico: o significante-mestre.

Ernesto Laclau, exemplifica em seu livro, "A razão populista", a definição de significante-mestre, onde que: " o conceito de significante-mestre, formulado por Lacan- poderia ser concebido de diversas maneiras. Em primeiro lugar, como centro de irradiação de equivalências que, entretanto não perde a particularidade de seu conteúdo original." (2013, LACLAU, p.308).

A bolchevização

Na Rússia, o centro de irradiação das equivalências, ou seja, o canalizador das demandas sociais, foi o processo de bolchevização, que emergia os ideais de Lênin para a massa. O bolchevismo, assumiu o posto de significante-mestre, pois "a intransigência do patronato, a falta de forças do governo provisório, deram rapidamente razão àqueles que haviam manifestado sua desconfiança no regime de fevereiro...". Assim: " A bolchevização conquistou os primeiros operários das grandes fabricas(...) [e] os soldados da retaguarda...", adotando assim " uma parte cada vez maior da população [que] se separava das outras correntes socialistas e se aproximava daqueles que assumiam suas aspirações."(p.82).

Emergia-se assim um povo como ator politico, na Rússia, pois o bolchevismo, levava á cabo uma das máximas de Rousseau em "Do contrato social", onde que:

" Ora, como é impossível aos homens produzirem novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um único meio e fazê-los agir de comum acordo" (2014, ROUSSEAU pp. 29-30). Os bolcheviques representavam esta força impulsionadora do povo.

Mas no núcleo dos bolcheviques havia um literal comunista, aos moldes de Marx, o líder dos bolcheviques, Lênin, que detinha fielmente a definição marxista, de que: " Os comunistas são, portanto, na prática, a porção decisiva dos partidos de trabalhadores de todos os países, a força sempre a impulsiona-los adiante: eles percebem, na teoria, antes da massa restante do proletariado, as condições, o curso e o resultado geral do movimento proletário." (2012, MARX e Engels, p.59).

O surgimento de Lênin.

Segundo o clássico texto de Max Weber - " A politica como vocação", " A história mostra que chefes carismáticos surgem em todos os domínios e em todas as épocas.", sendo estes, "á fonte de vocação, onde encontramos seus traços mais característicos." (2007,p.58). De fato, Lênin parece possuir uma vocação para a revolução, pois não era apenas uma luta ideológica e material, mas até certo modo, era pessoal. Já que sob o regime tzarista de Alexandre III, o revolucionário, presenciou a morte de seu irmão Alexandre Ulianov.

Lênin, sabia da necessidade de construir um povo como ator politico, para desencadear a revolução: "De fato, até o presente parece que ninguém ainda duvidara de que a força do movimento contemporâneo estivesse no despertar das massas (e principalmente do proletariado industrial), e sua fraqueza residisse na falta de consciência e de espírito de iniciativa dos dirigentes revolucionários." e que esta construção necessitava de consciência: " o 'elemento espontâneo', no fundo, não é senão a forma embrionária do consciente.". (LENIN,1902 p.15-16)

O revolucionário russo esteve no exílio durante a revolução e de lá: "Lenine não cessava de escrever ao Comitê Central do Partido", e assim participava ativamente, pois este exílio, o permitia ver o todo, ver a conjuntura que se formava em torno da revolução e os meios que o bolchevismo poderia utilizar para atingir o poder:

" A 12 de setembro intitulava sua carta (Os bolcheviques devem tomar o poder). Mostrava que, tendo daí por diante a maioria dos Soviets de Moscou a Petrogrado, os bolcheviques podiam e deviam fazê-lo. {"Eles o podiam porque a maioria ativa dos elementos revolucionários do povo das suas capitais bastava para arrastar as massas, para vencer a resistência do adversário, para aniquilá-lo, para conquistar o poder e para conservá-lo."}"(p.85).

As ideias de Lênin, ganhavam cada vez mais força a medida que se vinculava aos anseios dos trabalhadores e a situação que estes viviam, pois: "O descontentamento invadia os operários e por isso as teses defendidas por Lenine tiveram repercussão considerável." (p.82).

Lênin, ao notar que "durante a Kerenschina, as velhas molas do Estado e da sociedade cessaram de funcionar. [E que] bastava, que um grupo, mesmo que reduzido agisse com determinação, para exercer uma autoridade desproporcional em relação ao seu poder real", impulsionava tal urgência á ação dos bolcheviques, dizendo que: "Se nós não tomarmos o poder agora a história não nos perdoará."(p.85). Mas os bolcheviques julgavam o proposito do revolucionário como inoportuno, sendo por isso, criticados por Lênin, que até ameaçou se demitir do partido, porém, os fatos evidenciavam que o governo impedia os Soviéts. de atingir o poder, assim os bolcheviques aderiram á Lênin.

Assim, " Lenine, Trotsky, Lunacarski surgem como os novos chefes da Revolução, e são aclamados pelos Soviets. A 26 de outubro teve lugar a segunda e ultima sessão do congresso. Lenine anunciou que a hora da revolução socialista chegara: leu seu decreto à paz: ' propondo a todos povos beligerantes e a seus governos iniciarem visando a paz justa e democrática'. Propôs também seu decreto sobre a terra, que ' abolia imediatamente a grande propriedade, sem indenização, e entregava a terra aos comitês agrários'. Logo em seguida os Soviets elegeram um governo operário e camponês, composto exclusivamente de bolcheviques."(p.91)

Conclusão

A construção do povo russo, como ator politico-revolucionário, deteve de particularidades únicas. A massa possuía além das demandas sociais comuns, fator que ajudou a uni-la: os sentimentos de ódio e de frustração ás autoridades. Deste modo, não bastava que a união dela se formasse, surgia como necessário também, quem as guiassem e lhes trouxessem, para suas ações, a confiança perdida. Faltava-lhes o significante-mestre, Lênin, que detendo a visão de exilado pôde guiar as táticas dos bolcheviques. Suas ideias se vinculavam com os anseios da massa e lhes davam a personalidade de povo.

Lênin, não foi um mero "grande homem" aos termos de Freud, que como um pai guiou as massas, mas sim um potencializador do sentimento revolucionário, que lhes desencadeou seu papel ativo na história.

Bibliografia

FERRO, Marc. A revolução russa de 1917. Trad: Maria P. V. Resende. Rio de Janeiro. Editora Perspectiva. 1974.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. Trad: Carlos E. M. de Moura. 1ªedição. São Paulo. Editora Três Estrelas. 2013.

______________. O retorno do povo: razão populista, antagonismo e identidades coletivas. Politica & Trabalho. Revista de Ciências Sociais. N°23. Outubro 2005.

LENINE, Vladmir Ilitch. Que fazer?. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm. 10/05/2017

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Trad: Sergio Tellaroli. São Paulo. Editora Schwarcz. 2012.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad: Ricardo M. P. Rodrigues. 1ªedição. São Paulo. Hunterbooks. 2014.

WEBER, Max. Ciência e politica: duas vocações. Trad: Leonidas H. e Octany S. Mota. 14ªedição. 2007.

Glossário

Duma: assembleia, parlamento.

Soviet: organização politica das massas.

Bolchevique: da ala esquerda majoritária do Partido Operário Social-Democrata Russo.

Kerenschina: período entre o fracasso da tentativa de reação e o sucesso da insurreição bolchevique.