Tempos de crueldade

TEMPOS DE CRUELDADE
Miguel Carqueija



(NOTA em 5/1/2017) - este artigo foi originalmente redigido na primeira metade dos anos 90 com vistas à Tribuna da Imprensa, jornal que então circulava nas bancas do Rio de Janeiro, dirigido por Hélio Fernandes, e que hoje ainda existe no meio virtual, e onde na época eu colaborava de vez em quando. Creio que este texto por alguma razão não chegou a ser enviado, ou se foi, não chegou a ser publicado, permanecendo inédito por mais de vinte anos. Refere-se à espantosa carnificina que foi a guerra civil que acabou com a Iugoslávia. Hoje repete-se o fenômeno na Síria.)

“LIMPEZA ÉTNICA”. Arranjaram um nome bonito para o genocídio.
Fico tentando imaginar o que se passa na cabeça de homens como Slobodan Milosevic. A Teologia Cristã afirma a existência, em graus diversos, da possessão diabólica. Não duvido. Um homem em seu estado normal provocaria deliberadamente o morticínio de populações inteiras, inclusive crianças e velhos, o estupro em massa, o arrasamento de localidades, o êxodo das multidões, arrancadas de tudo o que possuem?
E o que se passará na mente de Bill Clinton? O adúltero-perjuro que hoje governa a maior potência da Terra, e que está arrasando os países pobres com sua política dita liberal, guerreia pelo facilitário. Bombardeia do alto. Ele e agora a OTAN, que se tornou sua cúmplice. Antes, bombardeou o Iraque. O presidente amigo de charutos faz a guerra da forma mais covarde: o bombardeio aéreo, que sacrifica os inocentes e até os animais.
Eu entendo que certos casos podem justificar uma intervenção, uma interferência. O Marechal Tito, apesar de ter sido um ditador comunista, tem a seu crédito pelo menos um mérito: o ter mantida e coesa a Iugoslávia, uma confederação de repúblicas e diversas etnias. Na verdade essas etnias conviviam nas diversas repúblicas e províncias, sem se guerrearem; o país estava unido, sob uma linha de política externa independente; e graças a um plano de defesa total do governo de Tito, estava pronto até a enfrentar a invasão das forças do Pacto de Varsóvia, se tal viesse a ocorrer. A Tcheco-Eslováquia, como recordamos, não esboçou reação quando invadida em 1968.
Aí Tito morre, surge Milosevic e o inferno começa. Pessoas amigas passaram a se odiar, por descobrir que não eram da mesma raça... repete-se, a nível espantoso, a tragédia do racismo e do nacionalismo exacerbado. Estados Unidos, África do Sul, Irlanda, diversos países da África Negra (sabiam que os pigmeus sofrem perseguições?)... e agora, a destroçada Iugoslávia. E perversidades sem conta passam a ocorrer.
Ora, não existem raças: branca, preta, amarela, vermelha e muito menos sérvia, croata ou albanesa. Em criança eu aprendi, e jamais esqueci, que só existe uma raça humana: “Homo Sapiens”. Todas as divisões são variedades raciais, não raças. Todos nós somos irmãos.
Como eu dizia, casos há que justificam intervenções. No caso atual, vemos que a Iugoslávia era uma federação de nações, que se esfacelou, e desse esfacelamento surgiram ou ressurgiram diversas nações. E se Milosevic já não reconhece, nos territórios que ataca, a mesma nacionalidade, é evidente que para ele a guerra já não é interna. Como a França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha por ter atacado injustamente a Polônia (esqueceram de incluir a Rússia, que fez a mesmíssima coisa com a Polônia), assim as potências da OTAN poderiam, a meu ver, invadir a Sérvia por terra, objetivando deter Milosevic e levá-lo a julgamento por crimes de lesa-humanidade. Razões humanitárias justificariam tal guerra; os bombardeios aéreos, porém, intensificam a crueldade desse infame conflito, propiciando até ostensivas represálias contra o povo de Kosovo. E quanto a Clinton, com franqueza, não sei a título de que ele se mete. E será que ele não sabe que bombardeios aéreos são contraproducentes, e que nem o Saddam Hussein se rendeu, apesar de todo o poder de fogo despejado sobre o Iraque? E quem foi que outorgou, afinal, aos Estados Unidos, a função de polícia do mundo?
Os últimos séculos se acostumaram a desprezar a Idade Média, inclusive pelas suas barbaridades. E no entanto os séculos pagãos foram piores, como é fácil provar; e apesar dos erros cometidos não faltavam luzes espirituais e intelectuais à época medieval. E que dizer da crueldade dos tempos atuais, motivada pelo afastamento de Deus? O abortamento e a manipulação genética sacrificam nascituros e embriões humanos, às centenas de milhões por ano. A prostituição infantil e o trabalho escravo de crianças largamente praticados no Brasil e outros países. O tráfico de órgãos humanos. O crime organizado que, no mundo moderno, é superpoderoso. O desprezo para com o trabalhador e sua família, esmagados pelo liberalismo. O achincalhe contra os aposentados, os idosos, tratados como escória. A própria destruição da natureza em nome de um falso progresso. O culto à violência. A eutanásia, que avança neste final de milênio e constitui uma perversão da medicina, cujo escopo básico é a preservação da vida. E agora, a “LIMPEZA ÉTNICA”.

“Que fizeste! Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra.”
(Gen 4,10)



imagem pixabay