RENAN, O SUPREMO
Há um livro que estou tentando ler cujo marcador de página indica quase a metade para um pouco menos da obra, cuja apreensão anímica tive que suspender por conta das leituras do curso de filosofia, que eu houve por bem começar neste ano. Emprestei dele o título para este texto. Trata-se do romance histórico “Eu, o Supremo”, do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, considerada a publicação um marco dentro da literatura latino-americana, ombreando com clássicos de Juan Carlos Onetti, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Guimarães Rosa e Erico Verissimo (este com “O senhor embaixador”).
“O Supremo” se chamava Gaspar de Frância e foi o responsável por um período de grande desenvolvimento do Paraguai, que se transformou numa potência na América do Sul, sendo ele sucedido por Carlos Solano Lopes e Francisco Solano Lopez. Governava com mão de ferro, mas não para si. Tinha uma noção de Pátria, que, mal ou bem, garantia-lhe a prioridade. Foi pioneiro no instituto do asilo ao acolher por três décadas, até sua morte, o general José Artigas, expulso do Uruguai que ajudou a libertar sem conseguir dar-lhe a liberdade plena.
Mas este Supremo era de outra tessitura que não a de um supremo que por ora vemos por aqui. Trata-se do presidente do Senado Federal Renan Calheiros, que ajudou, com seu poder nada republicano, a apequenar outro Supremo, o Supremo Tribunal Federal (STF). Renan mostrou-se (in)digno desse título ao colocar o STF de joelhos na primeira quinzena de dezembro. Fez a suprema corte expor suas vísceras e suas idiossincrasias de acordo com seus interesses. Fez a maioria dos ministros beijarem a lona de toga.
Tudo começou com o voto do ministro Marco Aurélio de Mello em decisão monocrática (algo perfeitamente normal em qualquer tribunal) votando pelo afastamento de Renan da presidência do Senado por ser réu em ação penal. Isso foi num dia e, no outro, ele submeteu sua decisão ao pleno do tribunal. Nesse meio tempo, Renan deu várias gambetas no oficial de Justiça que tentou intimá-lo, mostrando seu apreço por uma ordem judicial.
Diante da repercussão do caso, a celeridade foi observada. No outro dia, e contrariando julgamento semelhante no caso de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a sessão foi em sentido oposto. Quem abriu o seu voto inaugurando a decisão teratológica de manter Renan na presidência do Senado e impedindo-o de, eventualmente, ocupar a presidência da República pela linha de sucessão foi o ministro Celso de Mello, aquele que ficará conhecido para sempre como um “juiz de merda”, nas palavras do saudoso, irreverente e operoso jurista Saulo Ramos ("Código da vida", Ed. Planeta, 2ª ed., 2013). Ele foi seguido pelos votos de Teori Zavascki, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e da presidente da corte, Cármen Lúcia. Votaram contra o relator Marco Aurélio de Mello e os ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que se insurgiram contra o evidente conchavo e salvaram suas biografias. O ministro Luís Roberto Barroso não votou por dar-se como impedido e o ministro Gilmar Mendes, que dispensa apresentações sobre sua íngreme personalidade e boquirrotice, foi um dos articuladores EAD do conluio por estar em viagem ao exterior.
Essa operação toda teve um operador remoto instalado no Palácio do Planalto, que vendeu para a parcela-mor dos membros da corte a cantilena de que ruim com Renan, pior sem ele. Dentro do STF, seu braço foi Dias Toffoli, um ministro de ideologia rasteira e acanhado saber jurídico. Esses senhores uniram-se num projeto que passa longe de uma interpretação jurídica, ainda que essa exegese constitucional pudesse ser elástica e um tanto difusa. Até mesmo a ministra Cármen Lúcia, então uma alegoria da deusa Têmis, imagem impecável de boa paroquiana, cedeu aos apelos mundanos dos seus pares e deu seu voto nada ímpar.
Foi assim que, em vez de um bom acórdão, tivemos um acordão. A venda da Justiça foi violada. A mácula sobre a imagem do STF parece uma nódoa difícil de remover e as redes sociais estão ratificando isso. Quando os julgadores se acumpliciam com os réus, eles dão a mensagem de que as penas podem ser ilididas e negociadas com os acusados ou até mesmo fatiadas, como já fizera Ricardo Lewandowski no julgamento da ex-presidente Dilma Rousseff, condenando sem a pena prevista na Constituição, aliviando o delito. Quando a mais alta corte do país abre uma ponte para a impunidade, um forte odor invade o reino da Dinamarca. Renan Calheiros está livre, leve e solto, rindo por último e pronunciando frases de escárnio, como a de que “decisão judicial deve ser cumprida”. Se é verdade que toda regra tem exceção, Renan Calheiros já fez ambas. “Todos são iguais perante a lei”: Renan é um parágrafo único a negar o caput.
“O Supremo” se chamava Gaspar de Frância e foi o responsável por um período de grande desenvolvimento do Paraguai, que se transformou numa potência na América do Sul, sendo ele sucedido por Carlos Solano Lopes e Francisco Solano Lopez. Governava com mão de ferro, mas não para si. Tinha uma noção de Pátria, que, mal ou bem, garantia-lhe a prioridade. Foi pioneiro no instituto do asilo ao acolher por três décadas, até sua morte, o general José Artigas, expulso do Uruguai que ajudou a libertar sem conseguir dar-lhe a liberdade plena.
Mas este Supremo era de outra tessitura que não a de um supremo que por ora vemos por aqui. Trata-se do presidente do Senado Federal Renan Calheiros, que ajudou, com seu poder nada republicano, a apequenar outro Supremo, o Supremo Tribunal Federal (STF). Renan mostrou-se (in)digno desse título ao colocar o STF de joelhos na primeira quinzena de dezembro. Fez a suprema corte expor suas vísceras e suas idiossincrasias de acordo com seus interesses. Fez a maioria dos ministros beijarem a lona de toga.
Tudo começou com o voto do ministro Marco Aurélio de Mello em decisão monocrática (algo perfeitamente normal em qualquer tribunal) votando pelo afastamento de Renan da presidência do Senado por ser réu em ação penal. Isso foi num dia e, no outro, ele submeteu sua decisão ao pleno do tribunal. Nesse meio tempo, Renan deu várias gambetas no oficial de Justiça que tentou intimá-lo, mostrando seu apreço por uma ordem judicial.
Diante da repercussão do caso, a celeridade foi observada. No outro dia, e contrariando julgamento semelhante no caso de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a sessão foi em sentido oposto. Quem abriu o seu voto inaugurando a decisão teratológica de manter Renan na presidência do Senado e impedindo-o de, eventualmente, ocupar a presidência da República pela linha de sucessão foi o ministro Celso de Mello, aquele que ficará conhecido para sempre como um “juiz de merda”, nas palavras do saudoso, irreverente e operoso jurista Saulo Ramos ("Código da vida", Ed. Planeta, 2ª ed., 2013). Ele foi seguido pelos votos de Teori Zavascki, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e da presidente da corte, Cármen Lúcia. Votaram contra o relator Marco Aurélio de Mello e os ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que se insurgiram contra o evidente conchavo e salvaram suas biografias. O ministro Luís Roberto Barroso não votou por dar-se como impedido e o ministro Gilmar Mendes, que dispensa apresentações sobre sua íngreme personalidade e boquirrotice, foi um dos articuladores EAD do conluio por estar em viagem ao exterior.
Essa operação toda teve um operador remoto instalado no Palácio do Planalto, que vendeu para a parcela-mor dos membros da corte a cantilena de que ruim com Renan, pior sem ele. Dentro do STF, seu braço foi Dias Toffoli, um ministro de ideologia rasteira e acanhado saber jurídico. Esses senhores uniram-se num projeto que passa longe de uma interpretação jurídica, ainda que essa exegese constitucional pudesse ser elástica e um tanto difusa. Até mesmo a ministra Cármen Lúcia, então uma alegoria da deusa Têmis, imagem impecável de boa paroquiana, cedeu aos apelos mundanos dos seus pares e deu seu voto nada ímpar.
Foi assim que, em vez de um bom acórdão, tivemos um acordão. A venda da Justiça foi violada. A mácula sobre a imagem do STF parece uma nódoa difícil de remover e as redes sociais estão ratificando isso. Quando os julgadores se acumpliciam com os réus, eles dão a mensagem de que as penas podem ser ilididas e negociadas com os acusados ou até mesmo fatiadas, como já fizera Ricardo Lewandowski no julgamento da ex-presidente Dilma Rousseff, condenando sem a pena prevista na Constituição, aliviando o delito. Quando a mais alta corte do país abre uma ponte para a impunidade, um forte odor invade o reino da Dinamarca. Renan Calheiros está livre, leve e solto, rindo por último e pronunciando frases de escárnio, como a de que “decisão judicial deve ser cumprida”. Se é verdade que toda regra tem exceção, Renan Calheiros já fez ambas. “Todos são iguais perante a lei”: Renan é um parágrafo único a negar o caput.