Mitologia do Liberalismo
Os liberais do Brasil atual, que proliferam em revistas, sites e fóruns virtuais, precisaram importar ou criar aqui mesmo alguns mitos para fundamentar a possibilidade e urgência de um projeto político liberal para o país. Para ser bem objetivo e facilitar o entendimento, vou enumerar abaixo os mitos e suas decorrências:
1 - Um mercado que se organiza por si mesmo.
Isto foi realidade quando o poder político do Estado Mercantilista já tinha cumprido sua missão de quebrar o poderio dos senhores feudais, incorporando-os em novas funções administrativas e militares. Da mesma forma quebrando barreiras internas a produção e circulação de mercadorias.
A intervenção do Estado no sentido de manter sua influência e apoio da aristocracia administrativa e militar se mostrava estranha e mesmo prejudicial a dinâmica das trocas no mercado, que conseguia maior eficiência se regulando conforme oferta e procura.
Crises econômicas da Quebra da Bolsa em 1929 até a da Bolha Imobiliária mais recentemente só foram possíveis por causa da desregulamentação pela qual os liberais constantemente lutam. Foi dinheiro público e não o próprio mercado que possibilitou a recuperação econômica sem que houvessem crises sociais e econômicas mais graves.
2 - A intervenção do Estado é que gera as crises e não a desregulamentação.
Os liberais concebem a esfera privada, a das relações pessoais às econômicas, como não conflitivas. Eles entendem que a livre concorrência e oferta de mão de obra ajustariam sem causar conflitos. O mercado seria a melhor forma de mediação dos conflitos de interesses.
O que eles ignoram é que é possível utilizar um maior acesso a capitais para desequilibrar a concorrência, para produzir excesso de mão de obra disponível, entre outros fatores políticos que não vou considerar aqui.
Eles acreditam que a equação eficiência > lucro não pode ser desequilibrada pelo próprio mercado pela desigualdade de capitais entre os concorrentes. Ainda nem falei de quando estes grupos influenciam os governos a seu favor.
3 - Pobreza significa pouca eficiência ou competência na alocação de recursos
É o pressuposto falso de que todos começam com as mesmas oportunidades financeiras ou educacionais. Se tal o fosse, aqueles realmente mais competentes, falo tanto de empresas quanto de indivíduos, teriam as melhores posições como recompensa de maior eficiência.
Na verdade, esta eficiência se deve a desigualdades de recursos. Digo mais, quando se tem abundância de capitais, poucas empresas ou indivíduos podem fazer frente a empresas medíocres no aspecto da eficiência mas que dispõe de domínio de mercado.
Vou dar um exemplo real: a empresa Facebook comprou a Whats App. Ao fazer isto, ao invés das duas empresas aperfeiçoarem seus serviços oferecidos aos clientes para competir pelos mesmos, agora elas têm um domínio seguro de mercado, sem precisar gastar grandes recursos em uma competição por usuários. O grande capital acumulado pelo
Facebook, explorando as brechas e o pioneirismo do Orkut, possibilitou frear a concorrência encorporando seu concorrente. Em outras palavras, o Facebook e não o Orkut chegou primeiro ao mercado, ao transformar sua rede social em uma empresa. Seria possível o Facebook se o mercado virtual de 10 anos atrás fosse tão competitivo como é hoje?
4 - A economia de mercado sem as intervenções do Estado permitiria com o tempo distribuir melhor a riqueza produzida.
Isto não ocorreria, pois melhores salários seriam em função de escassez de recursos humanos no mercado de trabalho. Assim como a disposição das pessoas a investirem seu tempo para ter futuramente determinado salário.
Boa parte do trabalho não é especializado, depende de formação rápida e sem grandes investimentos educacionais. E dispõe de ampla oferta de mão de obra.
Para o indivíduo que quisesse melhor remuneração, ele teria que rezar para faltar mão de obra ou teria que disputar as vagas de melhor remuneração, porém mais escassas. Estas vagas dependem de formação técnica e acadêmica cujas as oportunidades são limitadas tanto em quantidade quanto em pre-requisitos educacionais .
Em outras palavras, a ocupação de empregos de melhor remuneração ficaria restrita aos que já tivessem de casa vantagens educacionais e financeiras.
A tendência da produção em geral é a substituição de mão-de-obra por máquinas. Primeiro tivemos uma substituição em larga escala do trabalho humano pesado por máquinas. Agora estamos vendo a substituição do trabalho especializado por máquinas computadorizadas.
É mentirosa a perspectiva a longo prazo de escassez de mão de obra. De forma que a pobreza gerada pelo mercado de trabalho desregulado aumentaria ao invés de diminuir. A não ser que o Estado começasse a bancar as pessoas em casa ou complementar salários - o que o liberalismo não poderia aceitar sem se contradizer.
5 - Eficiência produtiva é igual a eficiência econômica
Algo que muitos liberais não enxergam, mas não todos, vou ser justo. Vamos pensar, o Brasil é muito produtivo na agropecuária e pouco na indústria, então vamos fazer como os antigos udenistas e priorizar o primeiro setor. Não produz tanto emprego quanto a indústria, não agrega tanto valor quanto o produto industrial e não nos fornecem o outros bens que precisamos.
Nosso agronegócio tem renome internacional, enquanto nossa indústria é quase anônima se fosse a Embraer e algumas empresas fundadas no Regime Militar (mas neste caso, o liberal deve se abster pois foram iniciativas de Estado).
Apesar de tudo isto, economicamente seríamos dependentes de importação de bens industriais e com isto geraríamos emprego no estrangeiro, enquanto o povo estaria mal pago e empregado.
É possível crescermos economicamente 12% ao ano produzindo pobreza, pagando mal seus empregados ( Exemplo, China). O preço disto seria miséria e desigualdades. Se os liberais aceitam pagar este preço, pelo menos os desavisados apoiadores precisam saber disto. Ninguém vai dizer "vamos melhorar a economia sacrificando o povo", pelo menos publicamente não.
6 - Países desenvolvidos seriam exemplos de sucesso do liberalismo
Mentira ou ignorância. A Europa, Estados Unidos e China intervem em suas economias protegendo mercado, mantendo suas moedas nacionais desvalorizadas artificialmente, protegendo seus produtos nacionais contra a concorrência com produtos mais baratos e de melhor qualidade de outros países.
Atuam militarmente em países produtores de petróleo e outros recursos minerais importantes para apoiar governos favoráveis ou desestabilizar governos hostis.
Permitem que seus cidadãos tenham acesso fácil a armas, a comida danosa a saúde e a ignorância da indústria cultural de massa, tudo para fomentar o mercado.
7 - Teleologia seletiva
A crítica anterior é respondida pelos liberais dizendo que se houvesse liberalismo nestes países eles seriam ainda mais ricos. É um argumento especulativo, que impede então que eles sejam então usados como exemplos. Você verá os liberais acusando os comunistas de utópicos dizendo que nunca o comunismo não foi possível graças a natureza humana. Ora, o liberalismo econômico foi colocado em prática e vemos as mazelas que causou. Será que a natureza humana também não é incompatível com o liberalismo? Não serão igualmente idealistas tanto os comunistas quanto os liberais?
Então, o liberal não pode acusar o comunista de idealista, pois ele também é. Não pode acusar a natureza humana de ser incompatível com o comunismo, pois também não é com o liberalismo.
8 - A Ignorância Simulada, também conhecida como cinismo de mercado
O erro do comunismo é o mesmo erro do liberalismo. As pessoas precisam se alimentar, trabalharem e terem um mínimo horizonte de expectativas de que seu empenho e esforço garantirão seu modo de vida. O liberalismo e o comunismo não garantiram isto.
O liberalismo, assim como o comunismo, foi extremamente violento com greves e manifestações de trabalhadores. Os sindicatos eram organizações semi-clandestinas e "criminosas".
O liberalismo fomentava o conflito de classes e ele só não abriu definitivamente o caminho para um comunismo em escala global por que aceitou a participação de trabalhadores e seus representantes na política. Sem a socialdemocracia, os conflitos sociais seriam insuportáveis tanto econômica quanto socialmente.
A única forma do liberalismo ter se salvado seria se transformar em algo muito parecido com o totalitarismo soviético. Teria que vigiar seus cidadãos, controlar a imprensa e estabelecer censura. Aliás, esta foi a receita que as ditaduras na América Latina adotaram com a ajuda econômica e política dos EUA.
Então fingir que luta de classes é uma invenção de comunista ou fruto das mentiras de Marx seria o mesmo que tampar os olhos diante de um problema grave acreditando com isto que ele irá desaparecer.
9 Mito da Ineficiência do Estado
Mesmo no Brasil, o Estado foi chamado para fazer o que o setor produtivo não queria fazer ou não tinha competência para fazer. Estradas, indústria pesada, telégrafos, exploração de petróleo, usinas, sistemas elétricos e exploração mineral. Onde não havia o lucro ou a capacidade o Estado fazia ou agia em cooperação com empresas nacionais ou estrangeiras.
Aparentemente, setores pouco lucrativos ou que exigiam muitos recursos, por sua complexidade ou por pouco retorno de ordem financeira, eram deixados ao Estado e não era de se admirar que não fossem tão bem administrados. No entanto era.
Empresas como os Correios, Petrobrás e outras de produção de energia deram conta da demanda de um país de dimensões continentais. Passam por problemas que tem origem não no fato de serem estatais, mas no fato da lei ter falhado em protegê-las de políticos e empresários corruptos.
Poderia citar aqui diversas empresas estatais estrangeiras e o papel que desempenham em seus países. Assim como a parceria entre o governo chinês e multinacionais fez de seu país a potência que é hoje.
10 - Mito do Herói Empresário
Nosso grande empresário, seja do agronegócio ou da indústria, não é nada liberal em suas relações com o governo. Hoje estamos vendo grandes empresas envolvidas envolvidas em escândalos como os do Petrolão, licitações fraudulentas, compra de candidatos, prejuízos urbanísticos patrocinados para fomentar especulação imobiliária, grandes bancos nacionais lucrando com juros altíssimos. São os verdeiros "parças" de governos municipais, estaduais e federal ao se tratar da grana que envolvem processos de compra e prestação de serviço.
Culpam o governo pelos altos impostos, são os primeiros a receber incentivos fiscais, juros baixos do Banco do Brasil para o agronegócio, a guerra fiscal que as leis deixam a vontade.
Reclamam da pouca produtividade do brasileiro e não elegem um político capaz de melhorar a qualidade da nossa educação. A educação não é uma preocupação dos nossos empresários, embora a China e os EUA encaram a questão como se disto dependesse onde eles estarão daqui a 20 anos em termos econômicos e tecnológicos.
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Espero que o texto não ofenda os liberais bem intencionados, assim como os empresários que geram emprego sem precisar sacanear seus empregados ou ter uma "forcinha" do governo para pegar um contrato.
Não sou dono da verdade, mas procurei falar somente com base em fatos. Mas o fatos por si mesmo não dizem muito, por isto aceito boas interpretações, mas não abro mão da empiria dos fatos na construção do raciocínio.